1.2.05

O beija-mão

O bicho homem tem rituais esquisitos. Tome-se como exemplo a cerimónia onde uma criatura toma posse num cargo político. Se o cargo for importante, a tomada de posse é revestida de uma encenação que faz corar de inveja os melhores encenadores da nossa praça. O ritual é composto por vários actos. A parte que mais me diverte é o final, quando se pensava que tudo já tinha terminado. A bem da verdade, é quando tudo começa. Depois do agraciado com a comenda pública lavrar a sua assinatura e jurar pela sua honra que vai desempenhar as funções com honra e blá-blá-blá, segue-se a parte mais demorada: o beija-mão.

É ver como as pessoas se acantonam numa longa fila para cumprimentar o felizardo. Os actos oficiais estão terminados; esse é o momento que serve de charneira para a parte, como direi, “social” do acto público. O aperto de mão de todas as pessoas que querem prestar a sua homenagem ao homem ou mulher que acaba de ser investido na importante sinecura. Um desfile de pessoas que, mais do que felicitar o investido, querem mostrar-se. Pode acontecer que, na distribuição de comendas que se seguem, o beija-mão venha a dar frutos.

Chegam a ser às centenas os funcionários públicos, de elevado estalão e a arraia-miúda, que se sacrificam na fila esperando largo tempo para se fazerem notados perante o homenageado. Arrastam vagarosamente os pés, à medida que a fila avança nuns lentos e esperançosos milímetros. Chegada a sua vez, desfazem-se em cortesias, derretem-se em lisonjas. No seu íntimo, cada um leva dali a esperança de que o beija-mão tenha colocado a sua pessoa na memória do figurão. Pode ser que calhe uma sinecura melhor, abrindo caminho à progressão na carreira. Outros, mais comedidos, prestam o tributo como exigência necessária. Marcam a sua presença, só para que o chefe saiba que eles existem. Temem que a ausência seja sinónimo de um acto de desrespeito. Não querendo arriscar as benesses instaladas, lá vão ao beija-mão.

Espanta estas pessoas julgarem que a sua presença na cerimónia é coisa decisiva para as suas carreiras. Mesmo que o cumprimentado tenha memória de elefante, alguém acredita que ele consegue fazer a contabilidade das presenças e das ausências? A menos que cultive um ego exacerbado (também os há), não estou a ver como se pode gastar tempo com essa contabilidade desprezível. Mas o ritual repete-se sem parar.

O beija-mão é uma estranha praxe. Desconheço se o ritual é exclusivo nacional, ou se reproduz o que se passa noutras paragens. Como perceber a necessidade do acto que prolonga por tempo indefinido a cerimónia de tomada de posse? Neste domínio onde a fogueira das vaidades atinge o seu esplendor, onde a luta de poder é coisa selvática, onde a mediocridade é premiada, talvez o beija-mão seja o necessário acabamento para embelezar a investidura. Se nada disto fosse apanágio do exercício da coisa pública, não seria importante estender a passadeira para sua excelência ser alvo da vassalagem dos súbditos. Se a meritocracia fosse o critério, as pessoas com mérito que fossem escolhidas não teriam a necessidade de ser aduladas.

O culto da personalidade faz-se de formas diferentes. Atingiu o seu apogeu nos regimes totalitários – fascismos e comunismos. Mas também se apoderou das democracias modernas, com o cortejo que se estende palácio fora na ânsia de estender a mão à proeminente figura que ascendeu na hierarquia. Este, investido na função tão importante, não se furta ao predicamento. Porque no passado também ele engrossou a fila por mais do que uma vez, sente-se engrandecido agora que chegou a sua vez de estar do outro lado, a receber intermináveis cumprimentos de quem o homenageia.

E se, em vez de se perderem horas com este ritual bacoco, toda esta gente estivesse a trabalhar?

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