17.2.05

O constrangimento libertador

"Entre a regra e a liberdade, não há nada mais libertador que um bom constrangimento" - M. A. Pina

Este é um trecho de uma entrevista feita a M. A. Pina na TSF. Apenas escutei esta parte, porventura seleccionada como síntese ou epílogo da entrevista do jornalista-poeta. A frase deu origem a um exercício interpretativo, que corre o risco de aparecer descontextualizado: não pude ouvir o resto da entrevista, nem apreciar o contexto em que a frase foi lavrada. Portanto, o ensaio que se segue tem algo de especulativo. Trata-se de uma contextualização minha de uma frase atribuída a outrem.

Ao escutar estas palavras fui assaltado por uma dúvida imediata. O que queria dizer M. A. Pina? O enigma ficou a pairar quando a TSF anunciou a entrevista com este cartão de visita. Pura estratégia de marketing: oferece-se um rebuçado tentador, os prolegómenos de um cardápio mais rico que levaria o ouvinte a sintonizar a rádio à hora anunciada, se o quisesse degustar.

A primeira imagem que surgiu diante dos meus olhos: a palavra “constrangimento” soltou-se das luzes da ribalta. Foi sobre ela que o exercício interpretativo se concentrou. Dei comigo a recordar aqueles momentos de constrangimento que, decerto, todos já passamos algures no tempo que ficou para trás. Momentos embaraçantes, situações que fazem corar de vergonha. Por imprevidência, ou por mero acaso, são momentos que ninguém deseja sentir na carne, porque nos expõem à chacota alheia.

E, no entanto, estes instantes de constrangimento são um roteiro de amadurecimento. Podem levar ao desnorte instantâneo, estimular a algazarra nas pessoas que testemunham o embaraço que nos armadilha. Mais tarde, quando se resgata da memória o momento de embaraço, acabamos por engrossar o coro dos que riram. É uma lição: apreciar com ironia a atrapalhação por que se passou. Táctica ideal para lidar com a zombaria que cada um de nós semeou. Aprender a rir com as atrapalhações individuais é um acto notável de crescimento. Um esteio da consciência dos padecimentos próprios, acto de humildade que se revê na percepção de que, algures no tempo, é a vez de sermos alvo da troça alheia. Toca a todos!

Horas mais tarde regressei à frase de M. A. Pina. Encontrei outra saída para o ensaio de hermenêutica. Um solução que me deixou mais inquieto. Desta vez não me enredei na sobrevalorização da derradeira palavra. Olhei para a frase no seu conjunto, descobri outro sentido. A parte mais importante localiza-se no início da oração: “entre a regra e a liberdade”…para asseverar que a libertação se encontra “no constrangimento”, ou seja, “na regra”. Perplexo, senti que M. A. Pina subscreve a ideia de que a libertação de cada pessoa não está na liberdade mas na regra, no respeito dos deveres que são auto-impostos pela abstracção da sociedade.

Cada indivíduo deve ser guiado por uma abstinência de liberdade no seu sentido mais puro. É o paradoxo de ver nas regras a espuma de liberdade que marca o reencontro de cada indivíduo com a vida em sociedade. Ideia paradoxal porque contém em si a negação do seu enunciado. O mergulho em regras, impostas do exterior, aniquila a liberdade individual. É um contra-senso com consequências conhecidas. Tem sido o terreno fértil para o cultivo de ideias totalitárias, para enraizar soluções arbitrárias que elevam ao grau mais alto do poder “engenheiros sociais” que se crêem dotados de uma aura iluminada, acima do comum dos mortais.

É a sacralização de homens comuns que se deificam através das soluções que conseguem impor aos restantes. Estes assentem, e entregam-se nas mãos dos novos deuses. Na antítese de um acto de libertação.

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