2.2.05

A violência doméstica: o dogma do absurdo

Rambos de aviário. É o que são os "heróis" que vingam as frustrações nas suas companheiras. Elas, mais fracas, incapazes de lhes fazer frente por inferioridade física, suportam na carne a dor. A dor física da violência. E a dor que não se ouve, a dor que só a elas consome, silenciosamente, por dentro. A dor interior de ver transformado um amor num inferno.

A violência doméstica tem deixado de ser tabu. Notam-se diferenças de lugar para lugar. Não vejo que o tema tenha a mesma actualidade que em Espanha, por exemplo. Aqui ao lado há campanhas contra a violência doméstica. A comunicação social exerce uma função pedagógica, não deixando passar em branco notícias de desacatos conjugais que trazem sacrifício físico e psicológico para a mulher. Por cá o assunto não tem a mesma acuidade. É difícil libertar as amarras dos constrangimentos do passado. Parece que ainda vivemos acorrentados ao dogma educacional (mas antítese do civismo) que apregoa que “entre marido e mulher ninguém meta a colher”. Entre as quatro paredes os segredos conjugais consomem-se. Com eles diluem-se, quantas vezes, casos de violência doméstica que repousam na poeira da memória. Outras vezes, o balanço é trágico: elas deixam de estar lá, prontas a suportar os anacrónicos maridos, porque entretanto a sua vida perdeu-se em mais um acto estúpido de violência doméstica.

Muita gente viva presa aos tabus enraizados. São hábitos inculcados, transmitidos de geração em geração. É difícil esbater esses tenebrosos costumes. É necessário ir combatendo a aleivosia, o que exige uma passagem de testemunho, de geração em geração, que quebre o imobilismo. É uma montanha enorme, escalada passo a passo. Mas há que ter a consciência que os maus costumes de antanho também têm os dias contados. Não será tarefa para o dia de amanhã, derrotar este estulto comportamento que vê na mulher o alvo para destilar ódios interiores. A denúncia exige uma interiorização do que somos, enquanto homens, e uma ruptura com um esboço da malévola submissão feminina a que os homens foram habituados.

Regresso à incompreensão da violência doméstica. Porque não percebo o que pode levar à transformação de comportamentos que fazem da fronteira entre amor e ódio um traço muito ténue. Parece que há um abismo profundo entre amor e ódio, mas os casos de violência conjugal mostram como a transição se faz num estreito passo. O que é angustiante. A incompreensão acentua-se quando sabemos de casos de violência reiterada ao longo do tempo, quando damos conta de um silêncio conivente da vítima. Resquícios de uma educação absurda, que encarcerou hábitos promíscuos: a mulher casa-se para a vida e deve submissão total ao marido. Daí aos actos de violência, um passo apenas. A tal violência abafada pelas vítimas, que a toleram para não desagregar os alicerces da vida familiar. São heroínas perdidas num estoicismo sem significado.

Quem leva a palma no absurdo de tudo isto são os varões que exibem a sua superioridade física através da violência indomável. Exemplos de uma coragem vã. Eles não merecem o mínimo respeito. A começar pela companheira que os atura nos seus caprichos de violência. São excrescências que merecem o isolamento, denunciados como fautores da incivilidade que emerge a espaços. É uma bravura esconsa, preenchida por frustrações íntimas, o espelho daquilo que ansiavam ser mas são incapazes de alcançar. As suas companheiras são os sacos de porrada que servem para equilibrar as descompensações interiores. São casos de internamento psiquiátrico, sem mais.

Há anos, estava na urgência de um hospital quando entrou um homem ensanguentado, estendido numa maca. Cercado por enfermeiros e médicos, envolto num reboliço que anunciava um estado grave, entrou directamente para um sala. “Sala de ressuscitação”, era o nome da sala. Passados uns minutos, os médicos saíram. “Nada a fazer”, disse um deles. Logo a seguir, duas enfermeiras trocavam impressões com o polícia de serviço. O homem, de impressionante envergadura física, morreu às mãos da sua mulher. Terá sido vítima de si mesmo, não fosse ele um exemplo de continuada violência doméstica. Ela fartou-se e desferiu o golpe fatal. Jamais seria a vítima da estúpida violência. As esquinas da vida apanharam-na nesta armadilha. Livre de um inferno, decerto pagaria o preço com a reclusão numa qualquer prisão.

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