É a mania dos penachos. A mania das importâncias. A melhor maneira de ostentarmos o pedantismo é chapar na cara dos outros que somos doutores ou engenheiros. Ainda que os outros também sejam doutores e engenheiros. Aliás, é curioso ver como se comportam dois nativos quando são apresentados. Aquele que toma a iniciativa de brandir com espalhafato o título universitário é imitado pelo comparsa, que não pode ficar atrás. Duas criaturas pavoneiam a vaidade académica, como se a partícula que antecede o nome fosse o necessário sintoma do valor que têm.
Há coisas difíceis de explicar. Quando pensava que os ingleses eram mais atreitos ao formalismo, presos às deferências que seriam consequência natural do seu comportamento fleumático, descobri o contrário. No tratamento pessoal, os títulos ficam engavetados. As pessoas fazem gala de serem tratadas pelo seu nome próprio, sentem-se incomodadas quando se insiste nos seus títulos académicos. Prevalece o informalismo, que habilita relações inter-pessoais mais familiares.
Por cá, o oposto. O cidadão que acaba de sair dos bancos da universidade salta para a luz da ribalta com o refulgente título de doutor ou de engenheiro. Nestes casos até é compreensível o comportamento. É próprio do deslumbramento de quem deixou para trás os calhamaços e as noites queimadas com o estudo que habilitou a usar o tão ansiado título. O bom senso aconselharia a que, passada a fase da excitação, as pessoas se aquietassem, que interiorizassem um espírito de humildade. Não é isso que sucede. Permanece a identidade alterada, como se após a obtenção do título houvesse a necessidade de alterar o bilhete de identidade para acrescentar “Dr.” ou “Eng.” ao nome com que nasceram. A obtenção do grau académico teria o mesmo significado legal da alteração do estado civil: a obrigação de um novo bilhete de identidade.
Passe o exagero da comparação, é esta a imagem que traduz os hábitos enraizados. De tanto mergulharmos no tratamento com habilitação do grau, até parece que os nomes se modificam pela partícula adicionada. Sinal de uma vaidade mal escondida para uns, ou da necessidade de verem o esforço gratificado pelo reconhecimento social, para outros. Ou as duas coisas ao mesmo tempo, para muitos. Certo é que o pedantismo é cada vez mais evidente, porventura por ser crescente o número de licenciados. Se, no passado, a licenciatura fazia a diferença entre uma casta reduzida de doutores e engenheiros e o resto do povo, agora os licenciados acotovelam-se em listas de espera para empregos que subaproveitam as suas capacidades. Mas somos todos doutores e engenheiros. Como se esgrimir a titulação académica fosse sinónimo imediato da capacidade das pessoas. É aqui que tomo contacto com uma recordação dos tempos de estudante universitário: foi aí que conheci as pessoas mais ignorantes. Hoje são advogados que passeiam toda a superioridade intelectual que gostam de exibir. Confirmando a percepção de que o mais burro de todos é aquele que o sendo se faz passar por inteligente.
A febre do grau estende-se a quem possui outros títulos após a licenciatura, em especial se as pessoas estiverem na vida académica. Por cá, os salamaleques dos títulos são o pavimento de uma coreografia inútil que consome as vaidades de muitos académicos. Lá fora, esses títulos não saem da gaveta de quem os possui quando as pessoas se relacionam. Diria que a febre do grau, que no passado se restringia a doutores e engenheiros como expressão da licenciatura, se estendeu aos que estão habilitados com títulos de pós-graduação. É vê-los a assumir, garbosamente, os títulos quando se assinam como tal. Mais ridículo é ver aqueles que alcançam o grau em universidades estrangeiras (sobretudo nos Estados Unidos ou no Reino Unido) e, após a assinatura, colocam um risível “PhD”.
No tempo de Salazar éramos um país de néscios. Só um reduzido escol de iluminados conseguia sair da universidade com um grau superior. Dando razão a quem sustenta que somos um povo de excessos e contrastes, agora damos a imagem oposta: só há doutores e engenheiros. Nem que, num dia destes, aconteça como no Brasil, onde aos doutores de muitas artes não resta outra opção senão conduzir um táxi.
1 comentário:
- Encima da pinta, ora pois, pois. Em linhas incisivas, brilhantes e no puro português europeu, Paulo Vila Maior destrói a arrogância e a petulância de Marco Antônio Garcia de Pinho (Advogados são doutores e excelências - "sic") e Marco Antônio Ribeiro Tura (Doutor é quem fez doutorado - "sic"), dois palermas que, em causa própria, se intitulam luminares da ciência jurídica no Brasil:
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