Estou a chegar a casa. Dobro a esquina e entro na minha rua. Em sentido contrário, o veículo utilitário, azul iridescente, leva o “par de jarras” – um casal de vizinhos assim conhecido. O jovem, ao que consta gerente do banco do Estado, transporta um palito na boca, apontado ao alto, preso nos seus lábios. Adivinho que o palito acabou de ser usado para retirar os excedentes alimentares agarrados ao esqueleto dental preenchido de buracos, sinal de que uma visita ao dentista não vinha a destempo. Com as mãos no volante, o palito servia para uma insólita massagem bocal, envolvendo lábios, língua e dentadura. Fruta seca.
Há uns espécimes que se passeiam e que chamam logo a atenção: são a antítese do que se projecta ser. No mais ínfimo pormenor, revelam facetas execrandas. Exibem um ar blasé, passeiam um nariz altivo, senhores de um ar empertigado. Querem mostrar que atingiram o estrelato possível. Entraram para o banco do Estado, saídos dos bancos da universidade com um curso tirado às três pancadas. O paizinho, ou o tio, têm uns conhecimentos. As portas do banco abriram-se e, com o culto da mediocridade que abunda na instituição, a ascensão interna foi meteórica. Ao fim de alguns anos, o supremo orgulho de ostentar o cargo de gerente de uma agência minúscula. A cereja no topo do bolo. As vistas curtas impedem-no de perceber que não sobe mais. O que explica a altivez, a vaidade inócua, o pedantismo.
Ponho-me a pensar outra vez no quadro (nada bucólico) do palito pendurado entre os lábios. A reacção instintiva: soltar um sorriso avantajado. Sempre que dou de caras com este “par de jarras”, coisas novas que não param de surpreender. É curioso o sentimento de daí retiro. São sinais de uma abominável piroseira. Ao mesmo tempo, esta reacção exala um snobismo que devo recusar. Dirão alguns, “fica-te mal”. Contorno o obstáculo. E dou comigo a reflectir no bem que me faz a colecção privada de cromos que vão surgindo diante dos meus olhos. É o aspecto folclórico que colora a vida. Já o povo cultivou o costume do folclore como expressão do ânimo que a vida recebe nos tempos livres.
Outra vez o palito: porque se terá convencionado que tragar negligentemente um palito é de mau tom? Aprendemos que certas coisas não devem ser feitas em público. Porque as convenções ditam que esses actos suscitam a reprovação das pessoas que os assistem – desde que o espectador de tais actos seja o “cidadão médio”, preso às convenções sociais. O palitar de dentes é um entre vários actos vedados pelo “estar bem” social.
Se os restos de comida incomodam os buracos dentais que povoam a negligência estomatológica, e se estamos num restaurante diante de uma plateia ávida em acenar a sua condenação caso o palitar de dentes seja ostentado, aconselham os “bons hábitos” a esperar pelo recato da solidão para extrair os incomodativos excedentes. Quando o palito vê a sua vida útil prolongada num acto lúdico – o jovem bancário ao volante do seu automóvel – surge a interrogação: os rebuçados não servem para isso? A bem da verdade, o palito é insípido. Não há memória da produção de palitos com sabores agradáveis, que levem os ogres a degustar pacientemente um palito enquanto conduzem.
Se calhar estou ultrapassado pela tecnologia. Porventura já há palitos perfumados com essências alimentares. Palitos com sabor a chispe, a feijoada à transmontana, a rojões à moda do Minho, ou a sarrabulho. Quem sabe se estes palitos são a terapêutica dietética que faz os mais gordos perder peso, as pessoas assoberbadas pelo colesterol a terem uma vida saudável.
E será que o homem do palito exibe, com garbo, o palitinho durante as horas de trabalho? Ou apenas o transporta nos momentos de laser, borrifando-se para o desdém que provoca quando se cruza com outrem? Cá para mim, é coisa que o transcende. Ele acha que é normal, como deve ser normal escovar a cera dos ouvidos com a unhaca bem crescida do dedo mindinho, ou limpar o salão perante uma plateia divertida.
Aposto que o homem do palito contribui para a esmagadora vitória cor-de-rosa do passado domingo.
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