Emolduramos o passado. Como se quiséssemos reter fragmentos da vida que ficou para trás. Reter a marcha dos ponteiros de um relógio que, sabemo-lo, continua na sua caminhada compassada rumo ao infinito tempo que há-de vir. Num acosso de nostalgia, tentamos imortalizar os momentos memoráveis que ficaram presos do passado.
No fio da memória, desenterram-se as recordações que trazem rejuvenescimento. Tudo se passa como se do baú das memórias viessem os flashes que abrilhantam a vida presente. Quando damos conta do acesso de nostalgia, e pomos os pés no chão, surge a interrogação: estamos presos à ditadura do tempo enterrado nos anos idos? Estamos embrulhados na memória das coisas boas, como se andássemos descontentes com o tempo presente?
As imagens retratadas surgem como memoriais ao que somos, naquilo que fomos. Parece que mergulhamos num esforço de auto-demonstração: as reminiscências são o património do que somos; o mergulho nos tempos de antanho respeitam o que fomos, sabemos que chegamos onde estamos porque percorremos uma árdua estrada que não pode ser esquecida. E, contudo, ficamos presos na ambiguidade. Entre prestar tributo às memórias reconfortantes, e resistir ao apelo do passado por conveniência da vida presente, pela consciência que o desafio vem com os dias que estão para vir.
Gastamos o tempo que ficou na bruma do passado? Ou foi tempo que perdemos, quando damos conta que tantas coisas projectadas não foram realizadas? Tempo gasto, tempo perdido, pouco importa. Porque é tempo que não se recupera, a não ser quando desfolhamos as páginas da nossa história muito particular. Nas convicções carregadas de dúvidas, a impressão que o tempo que se gasta a remoer as pedras gastas do passado é tempo perdido. Nos excessos de nostalgia que recuperam as boas recordações colocamo-nos nos trilhos do tempo perdido. Exaurimos o tempo que temos na busca das sensações que ficaram para trás. O tempo presente ausenta-se nas recordações, nas imagens que a memória já colocou nas devidas molduras. Os fragmentos do passado não devem ser revisitados com muita frequência. Perdem o seu sabor, tanta a assiduidade com que resgatamos os registos do tempo que se imortalizou no passado.
É um sentimento ambíguo: sentir que revolver o passado é desperdiçar o tempo presente que se vai esbatendo no recurso à memória; mas sentir, ao mesmo tempo, que renegar o passado que construímos é a denegação do que somos. Não sabemos onde nos situamos perante o dilema. Ficamos presos num ténue fio que balança entre os dois lados de um abismo. Entre olhar para trás e ausentar o tempo que escasseia para o futuro; e apenas olhar em frente, como se o passado deixasse de ter significado, num ensaio que apaga da memória o bom e o mau que deixámos na escala do tempo.
É nestes momentos que adensam as dúvidas. Por vezes impelidos a ir em frente, outras vezes perseguidos pelos fantasmas do passado, ou pelos belos momentos registados na memória. Sem saber o que fazer, porque a cada momento a opção tomada traz o contacto com a dúvida: e não seria melhor a opção contrária?
Onde está o tempo? Algures numa dimensão misteriosa, que se desdobra entre o que somos e o que fomos, a espessa capa que fomos edificando para sermos o que somos. Há uma ponte que se renova em cada dia. A ponte entre os dias enterrados no passado que não se repete, e o tempo incerto que o futuro anuncia. Nisto, a recusa em ver o tempo passado como tempo perdido. Antes o tempo necessariamente gasto, os caminhos percorridos, mais ou menos lineares, mais ou menos tormentosos, até chegarmos onde estamos. Temos apenas a certeza do passado que somos. É esse o tempo que sabemos. É esse o tempo que não podemos desprezar.
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