18.2.05

Metamorfose

Um súbito apelo, vindo bem do fundo, convocava uma mudança radical. De hábitos, de aparência, de gostos, de locais frequentados. Sentia-se cansado do que era. Ajuizando a necessidade de mudança como uma oxigenação da alma, um dia acordou e exigiu de si mesmo trilhar outros caminhos. A mudança assentava como a solução única para impedir que a assassina rotina o dominasse. Solução óbvia para não deixar que o descontentamento o levasse a perder a auto-estima que andava por níveis baixos.

Imaginou os actos seguintes, o calendário da metamorfose. Pôs-se a pensar nos hábitos adquiridos, na vida certinha que levava. Nesta viagem ao seu recôndito, reparou como se tinha robotizado, mergulhado numa sequência de actos rotineiros que o tinham transformado num ser maquinal, apartado dos arrebatamentos que trazem a grandiosidade da vida. Queria inverter um ciclo de vida. Viver mais quando estava habituado a dormir, dormir quando a luz natural ilumina o dia. Quem sabe, fugir do bulício, do contacto contrafeito com os rostos fechados que se cruzam na rua. Um roteiro ensimesmado. Queria estar com pessoas apenas quando sentisse o chamamento. Não queria ser forçado à convivência anónima e fria com os transeuntes de circunstância.

Quis renegar as referências do passado, os livros que leu, os filmes que trouxeram imagens retidas na memória, a música que cultivou com dedicação. Na procura dos novos caminhos metamorfoseados, a introspecção levou-o a empacotar em assoalhadas herméticas os quadros mentais que foram os seus alicerces. Tal era o desejo de mudança, tal era a sede de olhar para o mundo com outros olhos. No meio do caos de mudança que o assolava, só não quis renegar a família e os poucos amigos de longa data. Não por respeito ao seu passado – executado num processo de estalinista aniquilamento – mas por homenagem às pessoas que tanto lhe tinham dado.

Na busca de um ser diferente, começou a frequentar locais que antes eram desinteressantes ou impensáveis. Como se fosse um teste às suas capacidades, para levar bem longe as exigências de mudança que gotejavam com toda a intensidade desde o mais fundo de si. Contactou pessoas que sempre desdenhou. Tentou apreender outros modos de vida, outras concepções do mundo. Perceber como os outros olhos viam as coisas de forma tão diferente à estava habituado. Na busca pela metamorfose, o apelo de ver as coisas ao contrário.

Até a aparência foi ao encontro da sequiosa busca de mudança. Tornou-se numa figura exótica, cabelos desgrenhados, roupas descuidadas, piercingna orelha esquerda, tatuagem artística orgulhosamente ostentada no ombro direito. Por contágio dos meios artísticos que passaram a ser residência frequente, os hábitos de higiene deixaram de ter a mesma assiduidade de outrora. Amigos e família estranharam a mudança. Ao início, apenas o mostravam com o ar atónito com que o olhavam. O choque inicial foi dando lugar à perplexidade. Mostrava-se uma pessoa tão diferente do que estavam acostumados, defendendo ideias que antes lhe repugnavam, exibindo-se como a antítese do tinha sido no passado. Estranhavam a frequência do bas fond, ele que tanto execrava esses meios exibicionistas. Por pudor, ou por respeito, foram adiando a interpelação. Alguns foram perdendo o contacto com ele, não se revendo na figura problemática e provocatória em se tinha transformado.

Os meses passaram. A mudança radical tinha deixado as suas marcas. Ao fim de algum tempo olhou para trás e avaliou as sequelas da metamorfose. Sentia-se desidentificado. Algures perdido no meio de um vasto deserto, abandonado a si mesmo. Desenraizado, carente de referências – porque o antagonismo em que mergulhou trouxe um marasmo de valores, como se fosse um choque hipotérmico de onde não se conseguia libertar. Enregelado pelo banho de água gélida que decidira tomar.

Tinha agora outro problema: via naqueles meses de metamorfose uma espécie de anestesia de si mesmo. Simulava ser alguém diferente. Um ensaio de mudança, à força. Espreitou para trás, para esses meses intensos de fuga de si mesmo, e sentiu-se em hibernação. Os problemas não tinham sido resolvidos com a metamorfose. Apenas se adensaram.

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