Já não é a primeira vez que o ginásio aplaina caminho para um texto diário. A história de hoje é daquelas experiências bizarras, tão estranhas que quando passamos por elas apetece beliscar a pele para saber se é a realidade que vivemos ou se é apenas um sonho esquisito.
Estava no balneário, depois de sair do duche. Ao meu lado dois indivíduos, já na casa dos cinquenta. Dialogavam, entretidos, creio que sobre futebol. Decerto se conheciam bem, porque tratavam-se na segunda pessoa do singular, o que em pessoas desta idade revela alguma familiaridade. À boa maneira masculina, talvez ainda resquícios de uma educação militar que não se coíbe em, amiúde, empregar palavrões, a conversa decorria animada, com turpilóquios entrecortando o diálogo. Nisto entra de rompante outro homem, mais novo, que por ali anda de semblante sorumbático. Tão depressa entrou no balneário como, para surpresa de quem lá estava, disparou de forma intempestiva quem tinha acabado de soltar um palavrão:
- Faça o favor de dobrar a língua! Olhe que não está em casa.
Ficámos atónitos. Mais ainda o destinatário da advertência. Ficou sem reacção durante uns longos segundos. O puritano de serviço voltou costas e começou a remexer no seu saco, tentando nervosamente encontrar alguma coisa. Foi então que o acusado se sentiu na obrigação de ripostar.
- Vai-me desculpar, mas creio que não estava a incomodar ninguém…
- Incomodou-me com esse linguajar de lota, interrompeu, de dedo em riste, quem tinha provocado o incidente.
Já com a paciência a perder-se com a ebulição do momento, o homem acusado de linguagem imprópria defendeu-se, usando tacto e pedagogia.
- Sabe, entre homens, aqui no Porto, é comum usarmos palavrões. E ninguém se ofende. Estamos acostumados.
- Não venha com essa. A minha família é do Porto e não fui habituado a ouvir tantas asneiras.
Perante o absurdo do argumento, o homem feito réu de ocasião ficou desarmado. Começava a ferver perante a impertinência do moralista do momento. Virou-lhe costas, dando a entender que queria colocar uma pedra sobre o lamentável episódio. Parecia não querer dar a importância que o bizarro moralista convocava para si mesmo. De repente arrependeu-se, deu meia volta e, com um tom de voz agreste, retorquiu:
- Já reparou que a sua reacção foi despropositada? Por acaso notou que as outras pessoas que estavam aqui antes de você ter entrado não se melindraram com a minha “linguagem de lota”? Foi o senhor que fez disto um problema.
E virando-se para mim, perguntou:
- O senhor estava incomodado com a minha linguagem?
Disse-lhe que não. O excelso moralista, vendo que as coisas se tinham descomposto para o seu lado, abandonou o balneário sem mais nada dizer. Deixou o outro homem, especado, a falar sozinho.
Ser mais papista do que o papa dá para disparar tiros no próprio pé. Tão preocupado com a linguagem imprópria, como se o balneário de um ginásio fosse um local de trato e polé, o moralista incomodou-se com os excessos de linguagem mais ao jeito de uma caserna de trogloditas militares. A sua reacção despropositada trouxe à superfície a falta de verniz. Há coisas que têm esta veia surreal. Lança-se a rede para sublinhar uma faceta, e sai-se da faina com a imagem queimada, com a antítese do objectivo programado.
Os moralismos têm estas adversidades. Prega-se a superioridade moral aos outros, esquecendo-se os moralistas que, ao fazê-lo, cultivam a antítese do que um moralista deve ser: respeitar os outros, porque de outro modo não pode ambicionar ser respeitado por ninguém. Se não tivesse uma entrada de rompante, se aguardasse uns segundos para ver se as outras pessoas que ali estavam exibiam algum incómodo pela linguagem asnada, porventura não lhe teria acontecido a desdita de ter entradas de leão e saídas de sendeiro. Com a aura imaculada de um moralista de quinta categoria bem chamuscada.
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