Dizem os líricos que natal é todos os dias, é quando o homem quer. Porque não estender a vulgata ao Carnaval?
Há coisas que me metem espécie. Celebrar o Carnaval em apenas três dias é uma delas. Como se o espírito cínico se resumisse a uma ínfima proporção dos dias do ano. Quando, bem vistas as coisas, há motivos para uma celebração contínua. Bem sei que com a festança sempre em dia, as pessoas perdiam o gosto por ela. De tanto foliar, a folia deixava de ter significado. A tristeza emergia com a sua força tentacular. Por isso o Carnaval se restringe a três dias. Para fazer de conta que nestes três dias troçamos com o que somos ao longo dos outros dias do ano.
Os mais bem dispostos, sempre a postos para uma folia com requintes de máscaras imaginativas, dirão que “é Carnaval, ninguém leva a mal”. Como gostamos do lugar-comum! Este está para o Carnaval como o poético ditame que abriu este texto está para o natal. Ninguém leva a mal, portanto. Ninguém se importa que nestes três dias zombemos uns dos outros. Apela-se à capacidade de encaixe das pessoas trazidas para a arena da troça. A arraia-miúda vinga-se dos restantes 362 dias do ano, quando os figurões agora troçados andam na limalha da ribalta, espezinhando o povinho.
Interessante a sina carnavalesca. Reverte-se o leme da nau. Por três singelos dias, fazer dos poderosos o objecto da humorada ira popular. O Carnaval é o expoente da democracia popular. Nunca como no Carnaval o povo se diverte zombando de quem está no pedestal. As gradas figuras do país, que ondeiam nos outros 362 dias exibindo o seu garbo, refugiam-se no anonimato para resguardarem a sua dignidade. O Carnaval não é para eles. É uma festa das massas. Elas acorrem em massa aos locais emblemáticos onde se passeiam os corsos. Um ensaio contido da revolta popular. Um termómetro que mede o pulso aos desamores das massas.
Depois há os que não estão em nenhum dos lados da barricada. Escusam-se a engrossar as multidões que se inebriam com as festividades carnavalescas, e não podem (ou não querem) ser entronizados no elevado altar do reconhecimento público. A estética afasta-os de todos quantos se entusiasmam com a festança. O pudor distancia-os das veneráveis elites que enchem as parangonas carnavalescas nos cortejos que se aproveitam da magnanimidade festiva para zurzir nas figuras públicas.
O Carnaval é um paradoxo. Restrinjo-me à etimologia. O Entrudo é a razão. O Entrudo refere-se à zombaria festiva da ocasião, à boa disposição dos foliões que elegem a festividade que flutua no calendário para lavar a alma das tristezas mundanas que ocupam o quotidiano. O Entrudo é a necessária exegese que tece um cínico balanço, ao mesmo tempo que oxigena os neurónios para os disparates que as elites preparam para os tempos vindouros. Regresso à etimologia: o Entrudo é uma palavra que me soa ao contrário da folia reinante. Ouço a palavra e imediatamente a associo a carrancudo. Será defeito fonético, decerto. Mas uma face carrancuda é o oposto das gargalhadas sonoras, dos sorrisos de orelha a orelha, da boa disposição contagiante que flutua em tempos de Carnaval.
O mistério deslinda-se. É só recordar os corsos carnavalescos que prestam tributo à idiossincrasia nativa. E ver como as figuras retratadas desfilam na pele de horrendas caricaturas que desfeiam ainda mais as personagens que trazem toda a fealdade ao nosso quotidiano. São as carrancas sobre as quais se zurze, se destila o fel humorado de um povo cansado da vácua lengalenga quotidiana. É um Entrudo carrancudo.
Sem comentários:
Enviar um comentário