16.2.05

Criancinhas belicistas

Andar na rua, dar de caras com uma criancinha que carrega uma arma de fogo feita brinquedo – quem nunca deparou com este quadro? A criança ensaia a coreografia que aprendeu nos horrendos desenhos animados que estão na moda neste início de século. Da sua boca soltam-se onomatopeias que imitam os disparos saídos da espingarda modernaça que ostenta. Dispara em todos os sentidos. Como se quisesse atingir as pessoas que ousam cruzar-se com ela. Atrás seguem os papás, desligados do mundo, atentos às montras que desfilam à direita e à esquerda.

Não é honesto imputar culpas aos petizes. Na sua inocência, consomem com avidez o que passa à frente dos seus olhos. São os destinatários de uma linguagem de metamorfoses. Os desenhos animados de hoje são muito diferentes dos que a minha geração via. A violência gratuita é destilada em doses industriais. Os petizes são apanhados na voragem de imagens repletas de violência. As armas de fogo manuseadas pelos seus heróis disparam a torto e a direito, no afã de aniquilar os maus. A força responde à força, com o poder das espingardas que peneiram a justiça dos bons. As mortes são o código genético destes desenhos animados, na vulgarização da morte. Educam-se as crianças nesta forma de pensar: a desvalorização da vida humana, com a banalização da violência. Depois aparecem os especialistas, perplexos por vivermos asfixiados por uma violência indómita.

Natal atrás de natal, aniversário atrás de aniversário, os progenitores fazem a vontade aos filhos. Mais brinquedos que reproduzem armas de fogo dos heróis de banda desenhada. Mais crianças que desembainham armas, fazendo de conta que vivem dentro dos desenhos animados que povoam o seu imaginário. Elas são inocentes que pagam a factura da falta de siso dos pais. Não contesto a tendência de ter que satisfazer todas as vontades dos pequenos (ainda um dia destes, numa casa de banho pública, assisti à birra de um miúdo, perante a complacência do seu pai: reclamava uma prenda, apenas porque “estava quase a fazer anos”. Como se a antevéspera do aniversário desse direito a prenda. O pai deu a entender que até ia fazer a vontade à criança, quanto mais não fosse para calar a birra que incomodava os ouvidos). Não percebo como mergulhamos num comportamento ambíguo: denunciamos a excessiva violência que o mundo conhece, que leva o Homem a resvalar para o conflito que passa da fase verbal para a violência física; ao mesmo tempo, como pais, oferecemos aos nossos filhos armas de fogo na forma de brinquedos, na inocente ignorância que daí não vem grande mal para a formação da personalidade das crianças.

Os hábitos fazem-se desde a tenra idade. Acostumados a lidar com reproduções de armas de fogo, consumidores atentos de desenhos animados que são orgias de violência, estas crianças ficam dependentes da violência. A bebedeira de violência prossegue com o lamentável cortejo de mortes, como se a perda de uma vida fosse uma coisa banal. Muitas vezes o choque é maior quando deparam, pela primeira vez, com uma vida real que se esvai. Já não são as personagens de plasticina que fazem de conta que morrem. São pessoas de carne e osso, pessoas que podiam tocar. Acredito que a confusão nas suas cabeças seja terrível. Afinal a morte é uma coisa real, não uma mistificação que vem das horas infindáveis perdidas a ver filmes, ou no entretenimento de jogos de Playstation, com a macabra contabilidade simplória das mortes que se encavalitam num armário dantesco.

É nestas alturas que me gabo de nunca ter tocado numa arma de fogo. Nem das reais, as que roubam a vida, nem das que surgem na forma de brinquedo. Quanto às primeiras, nunca tive necessidade. Até porque o serviço militar me dispensou da sua convivência. Quanto às segundas, honro a educação que recebi dos meus pais, que nunca aceitaram oferecer brinquedos que me pusessem a fazer as vezes de xerife de ocasião. Que me recorde, nunca tive a tentação de pedir dessas coisas quando chegava a altura de receber prendas. A apologia do pacifismo – não do pacifismo folclórico das pombas brancas que por aí andam – eis uma das melhores heranças legadas pela educação dos meus pais.

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