24.2.05

Eu tive um sonho…

Sim, um sonho. Não tão idílico como o de Martin Luther King. Ainda assim um sonho. Ou antes um pesadelo? Resposta para o dilema, só no final.

Sonhei que descobri um projecto ambicioso para dois ou três anos. Um projecto que obrigava a mudar de vida, para que não desse um passo em falso, não comprometesse a refundação de identidade exigível para o sucesso do projecto. Sonhei que me inscrevia como militante do Bloco de Esquerda (de ora em diante apenas Bloco, carinhosamente Bloco). Não por convicção – longe disso. Apenas como pretexto para, no final do período de transmutação, escrever um livro sobre a vida interna do partido da moda.

Deixava de andar de carro. Os militantes de base do Bloco, aqueles que aderem ao partido pelas convicções ideológicas, não se dão ao luxo de aproveitar as benesses do hediondo capitalismo. Até o grande líder vai de metro para o parlamento. Sem querer ombrear com tamanha sumidade, temos duas coisas em comum: um doutoramento, a primeira; tirado na universidade de Sussex, a segunda. Já é um começo auspicioso.

Como universitário, e para ser um émulo do grande líder, teria que me despojar das gravatas que costumo envergar. Seria um ponto de partida para a necessária metamorfose de imagem, para não ser olhado de soslaio pelos camaradas de partido. Seria mais fácil apostar na imagem cultivada por certos dirigentes bloquistas, também eles universitários: na ausência de gravatas, roupa de marca – e decerto não adquirida em feiras do povo, a comerciantes ciganos. O corte com a postura exigia medidas radicais. Nem essa fase de transição podia atravessar. Adivinho a surpresa com que colegas, funcionários e alunos passariam a olhar para mim, agora vestindo roupas négligés, com predominância do negro. O cabelo teria que sofrer uma transformação, exibindo-se desgrenhado, a aparência (mas só a aparência) de não ver água há largos dias.

Nas aulas, a intervenção cívica de que não abdico manter-se-ia. Agora com roupagens opostas. Em vez do professor controverso que provoca os alunos com ideias ultra-liberais, a defesa das “causas fracturantes” do Bloco. Insistiria na obrigação do referendo sobre o aborto, diria que até seria lógico que apenas as mulheres e os homens que já experimentaram a gratidão da paternidade teriam o direito de se pronunciar nas mesas de voto. Teria ocasião de divulgar a coerência das propostas económicas da extrema-esquerda (perdão: lapsus linguae a evitar; aprender a mencionar apenas “a esquerda”, com aquele timbre característico do grande líder que soa a raiva espumada, como se todos lhe estivessem a causar grande perjúrio). Educaria os alunos sobre o fascismo que anda de braço dado com o grande capital. Encorajaria os alunos a desfilar em “manifs” contra a globalização. Evitaria as perguntas de algum aluno mais atento, sobretudo quando fosse inquirida a alternativa defendida pelo Bloco.

Iria às reuniões partidárias. Daria o meu contributo, com discursos inflamados contra a direita – e aqui vão no mesmo barco o CDS, o PSD e o PS. Não devia invocar certas passagens dos estatutos dos partidos membros (PSR e UDP), em particular onde se defende a via da ditadura do proletariado, o azimute que deve guiar a acção estrutural. Não o faria para não me desmascarar. Teria que aprender a conviver com a grotesca manobra de hipocrisia que o evangélico líder não se cansa de denunciar: fazer de conta que esses não são os objectivos, para não enxotar o eleitorado urbano, jovem e na casa dos trinta, pequeno burguês, os clientes que se vão fidelizando no Bloco.

Passaria a fumar charros nos locais de culto frequentados pela fauna bloquista. A violentar as preferências pessoais, sendo assíduo nos acampamentos do Bloco realizados nas faldas da Serra da Estrela. Teria que admitir o amor livre; desconheço se a minha cara-metade teria flexibilidade para embarcar neste modus vivendii bloquista. Se tivesse algum mérito – afinal este é um partido elitista, onde abundam professores universitários nos lugares de destaque, só para confirmar a base humilde e operária do partido… – nas próximas eleições podia ambicionar um lugar elegível nas listas. A manter-se a tendência para o Bloco ser o partido da moda, mais deputados seriam eleitos. Entre os quais eu, acorrentado aos ditames de um projecto prestes a concretizar-se.

Esse seria o momento para revelar a farsa. O momento para coligir as notas armazenadas ao longo dos anos de militância bloquista. Passá-las para letra de forma, dá-las à estampa num livro que denunciasse o que é o Bloco de Esquerda. Rompendo com a opacidade dominante. Seria então que, desnudado o disfarce, renunciaria à mordomia parlamentar e à militância bloquista. Voltaria a ser o eu que sou.

Sonhei que o livro seria um êxito. E o começo do fim de um partido totalitário, um anacronismo em pleno século XXI.

1 comentário:

Anónimo disse...

Xefe: desde que li que os meninos do Bloco andavam para os lados de Viana a refestelar-se com lampreia, o meu sonho também se desfez de imediato; nem é pela exorbitância do preço da lampreia (que qualquer pessoa deve ter as suas extravagâncias e prazeres privados) mas sim pelo delírio de ideias que acompanha aquela gente! Apanharam-me uma vez - por ingenuidade...a propósito, desta vez votei Partido Humanista, porque levei o Alexandre comigo e pensei que seria um mau exemplo encher o boletim de voto com desenhos obscenos...

Já cheira a terra revoltada pelos picos de binário dos S1600!!