21.2.05

A democracia alegre e colorida!

Há mais de um mês que não escrevia sobre política. Um exercício de refrescamento mental. Não foi uma ausência forçada. Foi uma distância construída com espontaneidade, um afastamento voluntário que trouxe compensações. Um afastamento que é para manter. Hoje tenho que furar a regra, para expiar a azia pós-eleitoral.

Dos derrotados não reza a história. Para bombo da festa, já bastou o muito que neles se arreou antes das eleições. Só interessa pôr os olhos nos vencedores. Aclamados com glória, do alto da sua pertinência vieram tranquilizar o país. Agora temos rumo, já avisavam em gigantescos cartazes que poluíram a vista dos transeuntes. Acredita-se que vão manter o prometido rumo. É isso que me preocupa. O rumo. Se – e sublinho o “se”, essa enorme contingência da propaganda eleitoral, o abismo entre as promessas megalómanas e o espartilho da governação – o rumo traçado for cumprido, a deriva para o abismo que começou com o outro engenheiro cor-de-rosa será culminada com o novo engenheiro da mesma cor.

Entretanto, as hostes vão preparando o banquete. Nas mentes com uma insaciável sede de poder, começam a esboçar-se os cenários de distribuição pessoal do espólio herdado. Socorrem-se de um arsenal de vassouras para escorraçar a tralha que passa o testemunho. É o primeiro acto que exprime a grandeza da vitória: a passagem de testemunho, a alternância que sublinha a essência da democracia. Ao mesmo tempo, a humilhação dos derrotados e o emproamento dos vencedores, empossados numa incontestável superioridade moral que a contabilidade dos votos sentencia.

As bases e os barões começam a fazer contas de cabeça. O assalto do aparelho do partido ao aparelho do poder anuncia-se como único motivo de preocupação para as semanas que se seguem. Há que distribuir os pedaços da carcaça pelos fiéis, pelos carreiristas que sempre demonstraram fidelidade canina, que agora querem o seu quinhão. Adivinham-se lutas intestinas dentro do aparelho. Camaradas que trepam às costas de camaradas mais influentes, assenhoreando-se de mordomias no governo, na administração pública, nas empresas do Estado. As cumplicidades do bloco central perpetuam-se. Gestores públicos, principescamente pagos, continuam a lambuzar-se num lauto banquete. Gestores alaranjados hão-de manter-se em empresas públicas, como agora gestores cor-de-rosa já lá estavam. É o odor pestilento do regime: um cocktail de laranja perfumado com pétalas cor-de-rosa, ou um bouquet de rosas aspergido com flor de laranjeira.

As grandes figuras apressaram-se a discursar. As “figuras gradas”, os “ministeriáveis”, aqueles que não há muito tempo fizeram parte de uma equipa que pôs o país ligado à máquina, com respiração artificial. O “Dona Constança” foi dos primeiros. Excitado, sempre pronto a disparar pérolas de humor que só ele consegue entender, não fez a vontade aos senhores jornalistas que queriam saber se depois de Bruxelas se segue um assento no Terreiro do Paço. O “Dona Constança” foi salvo pelo gongo da vitória esmagadora. Estava-lhe reservado um lugar no elenco dos “Malucos do Riso”, para exercitar o seu sentido de humor de fino recorte. Agora vai para o governo.

Para o final, as lágrimas vertidas por um abstencionista militante. Outra vez, ninguém liga aos números. Nós, os abstencionistas, não contamos para nada. Esta democracia é uma batota suprema. Abstencionistas foram 3.072.721. Mais, muito mais, dos que acreditaram no engenheiro com nome de filósofo: 2.573.302. As regras estão viciadas. Com estes números, ninguém deveria ser autorizado a formar governo. Venceria a anarquia. Por falta de comparência.

A perversão é tanta que o quórum não conta para as eleições. Só vale para assembleias de condomínios, para assembleias-gerais de empresas, para decisões no parlamento. Com isto, acho que descobri a solução milagrosa para diminuir a abstenção: inscrevia-se uma regra na Constituição, proclamando um quórum mínimo para a validade das eleições. Sob pena do poder cair no vazio. O povo, amedrontado pelos tenebrosos malefícios da anarquia, passava a afluir às urnas em massa. E os políticos teriam a legitimação que lhes falta nesta altura. Mais um número confirma-o, para terminar: dos 8.784.702 inscritos, apenas 29% votaram no partido que nos vai (des)governar doravante.

Nota final: o próximo parlamento vai ser uma paródia. Com oito anacletos eleitos, vai ser uma risada a toda a hora!

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