30.6.05

Desobediência civil: um manual de instruções

Se queres fazer carreira nas manifestações de protesto contra o malfadado capitalismo. Se queres engrossar a turba que não cala a voz contra as injustiças provocadas pela globalização selvagem. Se estás contra o lucro, o individualismo, a opressão dos pobres e indefesos pelos poderosos. Se queres participar em acções de desobediência civil que mostrem à sociedade o caminho para a felicidade (qualquer que ele seja, pois ainda não estamos certos de ter encontrado os trilhos para lá chegar…). Se te revês neste retrato, junta-te a nós. Milita na causa bloquista e inscreve-te no workshop de desobediência civil que vamos organizar para ti, jovem insatisfeito com o curso do mundo.

Garantimos a presença de formadores de elevado calibre. Agitadores profissionais com passagens pelas manifestações que acompanham, em tournée, as reuniões do G8, Organização Mundial do Comércio, Fundo Monetário Internacional, Fórum de Davos, Conselho Europeu e tudo o que tiver o bafiento odor do conservadorismo anquilosado que deprime esta sociedade apodrecida. Vem até nós. Aprender a ser um agitador social. Vamos ensinar a seres a anónima carne para canhão que alimenta uma causa colectiva. Nós, os grandes líderes, os pensadores das causas justas que nos arregimentam em torno de um ideal, asseguramos a presença na retaguarda. Enquanto tu, depois do tirocínio, andares a dar o corpo ao manifesto e apanhar cacetadas policias, lá estaremos, no conforto dos hotéis, a dar entrevistas à imprensa veiculando as nossas ideias – as ideias que estão certas, que ninguém ponha dúvidas.

Jovem, não te deixes possuir pelo conformismo. É uma doença letal, que ameaça fazer de ti mais um alienado membro da sociedade consumista inquinada pela despersonalização. Oferece-te para participar nas agitações que levam destruição às ruas das cidades onde o maldito capitalismo se pavoneia em cimeiras que perpetuam um sistema putrefacto. Vamos-te ensinar a iludir as forças policiais. Como elaborar um cocktail molotov, como o arremessar. Terás os rudimentos da intifada – porque contra o poderio bélico instalado devemos recorrer ao que a natureza nos dá, as pedras espalhadas pelas ruas. Vem aprender essa coisa tão bela que dá pelo nome de resistência pacífica. Ensinaremos como te deves plantar, estático, acorrentado se preciso for, a objectivos que queremos boicotar.

Garantimos treino mental, para poderes oferecer mais resistência às investidas da polícia quando estiveres a ser interrogado numa esquadra e nós, os timoneiros, regalados num hotel de cinco estrelas a fumar o nosso havano e a tragar o delicioso whisky velho. Também asseguramos um curso intensivo de lavagem cerebral, para que possas interiorizar a cartilha ideológica que nos guia (ainda a estamos a reciclar…). No final do workshop, jovem, estarás habilitado a ser um agitador profissional. Com as nossas ligações internacionais, e com a ajuda de misteriosos financiadores, terás pela frente uma promissora carreira que passa por espalhar a confusão, desestabilizar os costumes estabelecidos. Com a vantagem de viajares pelo mundo, envolvido numa rede que contraria o mundo que somos sem, contudo, adiantar propostas para uma alternativa de mundo melhor.

Jovem: não te contentes com a aparência de intelectual de esquerda deslavado. Não basta trajar roupas negras, compradas numa feira de ciganos, orgulhosamente ostentando a ausência de marcas chiques (não te esqueças que o privilégio de vestir roupa de marca, ainda que vinda do inimigo maior – os Estados Unidos da América – fica reservado às elites pensantes que dirigem os destinos do nosso movimento). Não basta cultivar chocas no teu cabelo de rasta. Nem exibir a falta de banho, atitude ecológica porque se a água escasseia ela deve ser poupada. Tens que estar comprometido com a acção. Como sabes, os holofotes, a ribalta das aparições na comunicação social, estão reservados aos que lideram as massas que se insurgem contra o pensamento dominante. A ti, a militância começa pelas tarefas de base, pela agitação que dá corpo aos nossos protestos contra a sociedade em que vivemos. Tenhas sucesso na empresa que te propomos e ascenderás na hierarquia.

Jovem, sabes que professamos o desprendimento dos valores materiais (hum…para vocês, carne para canhão, que nós já comemos o pão que o diabo amassou e agora temos direito a usufruir de regalias materiais – mas não consintas que o adversário o saiba!). Não te garantimos remuneração pela militância na desobediência civil. Ficarás com a consolação de saber que dás um contributo inestimável para uma causa justa – aliás, “a” causa justa, que, como sabes, somos detentores da verdade absoluta. Ficarás alojado em pousadas de juventude, comerás comida macrobiótica de um dos nossos patrocinadores (será tempo para deixares esse hábito execrável de comer animais…). O acesso a drogas leves terá a nossa caução. Deves interiorizar um novo ascetismo em nome da causa colectiva que nos mobiliza.

Vem fazer o nosso curso de desobediência civil. Uma porta que se entreabre para uma vida só comprometida com os ideias justos que prossegues.

2 comentários:

Anónimo disse...

Existem pessoas que são diferentes, que não se revêm nos valores da maioria amorfa e silenciosa, nos costumes da medíocridade nem no espartilho mundano da rotina.
Existem pessoas que acreditam que com a sua acção podem mudar algo, tornar a vida melhor, pessoas que sentem e cruzam por outros caminhos, que por serem diferentes não quer dizer que sejam maus.
Existem seres humanos para lá dos consumidores.
Existem pessoas, como eu que fazem e lutam diáriamente através de pequenas grandes acções; se todos o fizermos, o mundo será um local bem melhor para os nossos filhos.
Conheço muitas pessoas como eu, e como sei como sou, porque me conheço e porque acredito em mim,só te posso dizer....
que foste infeliz.
E é essa infelicidade que transparece da tua escrita,com rasgos de genialidade mas de uma amargura e imaturidade enorme.
Desejo-te as maiores alegrias nessa tua vida, e no dia em que a tentares tornar grande talvez te lembres destas minhas palavras, ou não....

PS: tiveste a oportunidade de ter aqui um espaço de discussão e critica; com as tuas reacções afastaste muitas pessoas.
Continuarei a ler e a retirar da tua escrita, o sumo.
Fica Bem

PVM disse...

Carter:

É a ironia de se brincar, mesmo com “coisas sérias” (será que a confundiste com amargura e imaturidade?). E o direito a exprimir a diferença daqueles que são diferentes de nós. Reconhecendo a sua afirmação de diferença, mas reclamando desses que são diferentes a mera possibilidade de nos seus antípodas outros bem diferentes deles poderem afirmar o seu direito à diferença (ufa!).
Post scritpum: parabéns pelo teu blog! Do que já li, a saudável inveja de te ver escrever sobre coisas simples mas que são as que trazem as grandes recompensas ao espírito.

Paulo Vila Maior