6.10.05

Apimbalhar, sem dar conta

Afasto-me de restaurantes brasileiros como o diabo foge da cruz. Por causa do débito de decibéis de axé, samba, outros sons afro-brasileiros repenicados, de vez em quando, com uma colherada de balofa música romântica. A fórmula tem sucesso, ao calcular os restaurantes do tipo e a clientela fiel que se alambaza com picanhas, caipirinhas e entusiasmo a rodos oferecido pelos músicos de serviço.

Aposto que a muita desta gente o ambiente é familiar: reminiscências daquelas férias no Brasil, de como vieram contagiados pelos sons pimba à brasileira. Sem darem conta, aplaudem uma modalidade de pimba e, quando olham para o lado e ecoam sons de Emanuel, Clemente, Tony Carreira e quejandos, vituperam o pimba nacional. Cada um à sua maneira, do rótulo apimbalhado não escapam. A burguesia, saudosa do clima tropical das praias brasileiras em pacotes comprados a 1000 euros por pessoa, mergulha numa vertiginosa contradição.

Dizem-me, em defesa dos ritmos que vêm do outro lado do Atlântico em doses maciças, que o pé se deixa deslizar, empurrando as ancas para um maneio ondulante. É o efeito contagiante dos ritmos dançáveis, a herança mexida que os escravos africanos deixaram na miscigenação cultural do Brasil. Os sons entram pelos tímpanos, colonizam os neurónios com aptidões dançantes, tomam conta do resto do corpo. Que obedece como um autómato, enchendo-se de boa disposição e alegria. Isto da música brasileira é uma bebedeira de alegria. O mostruário de como um povo cercado pela miséria se pode enganar a si mesmo, viver engarrafado em doses ilusórias de alegria enquanto vai penando na carência de bem-estar. A versão acabada de como o Homem se pode entregar à plenitude da alegria na desmaterialização da vida. Um alento para os últimos românticos, que persistem na utopia da não materialização da vida.

Também aqui o par não dança a um ritmo compassado. A vida trilhada pelo brasileiro médio está longe da fartança material do protótipo de burguês lusitano que se banha nas águas tépidas das praias do Brasil. Os nativos refugiam-se nas batidas tropicais da música parola exportada com sucesso para o mercado português. Fazem-no como tónico para esquecer as necessidades que não conseguem satisfazer, o muito que fica por cumprir. Os burgueses arrevesados que vão em hordas salpicadas de felicidade arrebatadora em charters duvidosos para o Brasil, vêm de lá como embaixadores destes sons. Não alinham pelo mesmo diapasão do nativo: os ritmos alegres não são a cortina de fumo onde se escondem as mágoas da escassez material. Não é de carências materiais que se fala ao olhar para o turista vindo do Brasil, quando espera pelas malas no aeroporto, acabado de desembarcar das férias sonhadas.

A História, por vezes, inverte o sentido dos ponteiros à sua clepsidra. Outrora, a gesta de conquistadores lusitanos deu a conhecer as terras brasileiras ao mundo. Povoámos o Brasil, lá fomos fazendo a civilização. Cedo tiveram carta de alforria – e Napoleão terá sido o inspirador indirecto da emancipação do Brasil. Séculos mais tarde, é o Brasil que influencia os anteriores conquistadores. Das novelas que são um must, à música variada que empesta a comida servida em restaurantes brasileiros. Alinha-se a fasquia por uma bitola inferior. Quem não conhece o Brasil fica com a impressão que o país é a imagem vendida por cá, em restaurantes brasileiros. Curiosamente, uma imagem campestre, a ruralização do Brasil. Nem aí a burguesia que continua a ir, plácida, a banhos para o Brasil compreende a incoerência em que gravita. Por cá desdenha, com um esgar irónico, tudo quanto cheire a ruralidade. Sem compreender que o Brasil que importa é a mesma ruralidade pacóvia, nos antípodas da estética.

Não esquecer: esta burguesia não tem aspirações elitistas. Gostam dos “artistas” brasileiros que são o expoente brega, ícones da poluição sonora que se sente por aí. Verberam a música pimba com rótulo nacional. Não gostam do folclore português, com destaque para o pior entre o mau – o folclore minhoto. Desconhecem a analogia que irmana os estilos separados pelas águas atlânticas. Por hipocrisia ou ignorância. Não se lhes pode exigir o que não têm para dar.

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