7.10.05

Navio errante

Chega vindo das sete partidas do mundo. Sem aviso, de surpresa, ao anoitecer. Aporta com o silêncio dos fantasmas que o maneiam. O seu capitão, personagem austera, dá a voz de comando aos marujos obedientes. Solta-se a voz cavernosa, com a autoridade das rugas marcadas que tingem o rosto. Os marinheiros, formigas laboriosas nas suas tarefas maquinais, esperam pelo fim da jornada para irem a terra. Estão cansados de semanas de alto mar, rodeados pelas vagas alterosas que ondulam o navio e outrora foram razão para enjoos que terminaram em vómitos. Querem ir a terra, cruzar-se com caras de pessoas reais, cansados das mesmas caras, as caras uns dos outros.

O navio vagueia de porto em porto, vindo de lado algum, amanhã partindo para lado nenhum. A sua voz fantasmagórica anuncia-se quando vem atrelado no rebocador que lhe franqueia a entrada no porto. Fantasmagórica e rouca, com a rouquidão própria de uma cansada vida a sulcar oceanos, com o salitre a corroer os recantos metálicos do casco. Dir-se-ia que é um navio tresloucado pelas figuras anónimas que o povoam. Os seus marinheiros, personagens de um conto imaginado, saídos dos impermeáveis que os abrigam dos salpicos que dançam, desgovernados, por entre uma tormenta que atira o navio de um lado para o outro. Aproveitam a quietude das águas mansas do porto, a bonomia climatérica que os acolheu; desnudam os corpos enquanto labutam nas tarefas fatigantes – a limpeza do navio, os misteres do descarregamento, a que se segue o carregamento de outras mercadorias.

O navio entrega ilusões e vai carregado com outras ilusões. Esteio dos sonhos que flutuam, indeléveis, entre as vontades humanas que algum dia dependem do que vem no navio. Essas pessoas saberão alguma vez que a espera é saciada pela enésima viagem do navio, quando beija outra vez o ancoradouro envelhecido do porto? Entretidas ou distraídas, passeiam pela rua que bordeja o porto e olham com indiferença para o navio, como se fosse um fantasma bem visível, o mastro do seu desprezo. O navio erra na indiferença dos passeantes. A mesma indiferença com que o mosaico de nacionalidades que habita o navio trata as pessoas que passam lá fora, nos automóveis apressados, nos autocarros vagarosos, ou os poucos transeuntes que percorrem a pé a rua paralela ao cais. Como se o navio e os seus tripulantes e os habitantes da cidade estivessem de costas viradas.

O navio que chega sem frequência habitual pinta o quadro do porto. Ele, e tantos outros que demandam o porto, em visitas fugazes, no ritual de sempre – descarregar coisas e arrumar espaço para abrigar outras em inestéticos contentores elevados por guindastes metálicos. São peças anónimas que engrossam as fétidas águas do porto. No anonimato habitual, o navio errante parece mais indiferente que os outros que por ali aportam. Talvez por cativar a atenção de quem o observa na condição de navio fantasma, escapa à gesta indiferente, vestindo os trajes do errante que chega sabe-se lá de onde e parte em busca de refúgio não menos desconhecido.

Com a sua vagarosa marcha prossegue caminho, mar adentro, sem se amedrontar com as tempestades que lhe fustigam o casco. Os seus mastros, antenas que trazem equilíbrio ao mastodonte que desafia a cama alterosa de um mar que borbulha com o sopro endoidecido dos ventos violentos. Sem medo, avança rumo à tempestade: sabe que é o caminho mais curto para dobrar os ventos tempestuosos, as vagas alterosas que se desfasem, com estrépito, contra o casco que não se cansa de ver o mar rebentar em si. Quando chega ao outro lado da tempestade, e repousa em águas mais calmas, recompõe-se como se a tormenta tivesse sido apenas mais uma vírgula escrita no livro da sua existência.

Não há lugar à canseira. É andarilho de um lado para o outro, sem sentido inteligível. Que não seja percorrer as salgadas águas dos mares do mundo, aqui e ali tocando abrigos que saciam a sua busca de víveres. Apenas um hiato nas demoradas jornadas sem ver as cores da terra, apenas o azul sem vista, o azul do mar que o cerca, perdido no meio dos oceanos que são o seu repouso.

1 comentário:

Anónimo disse...

Somos todos navios errantes. Sempre na ansia de chegar a um porto e, depois, partir para outro. Esquecemo-nos demasiadas vezes de que o verdadeiro sentido das coisas não está na chegada ao porto, mas nos caminhos que fomos percorrendo até lá chegar. Sim, porque mal chegamos ao porto, começa logo a gerar-se a vontade de partir para outro.
Ponte Vasco da Gama