10.10.05

E se o voto fosse transaccionável?

Há alguns anos, o economista Pedro Arroja chocou o pensamento politicamente correcto ao defender a possibilidade dos eleitores colocarem o voto à venda – fosse essa a sua vontade. Logo vieram os moralistas do costume, de dedo em riste, com a acusação “modelo cinco”: ideia disparatada, só possível na mente distorcida de um adepto dessa “coisa horrível” que dá pelo nome de “neo-liberalismo”. Logo vieram estas virgens, do alto da sua pudibunda pureza, reclamar contra a perversa materialização de tudo. Agora até o voto podia ser trocado por dinheiro, num convite à prostituição dos eleitores.

A ideia de Arroja era insólita no panorama nacional. Lá fora já era defendida por pensadores do liberalismo radical. Ocorreu reflectir sobre a ideia porque ontem, dia de eleições autárquicas, não hesitei ao tomar uma decisão. A ausência das mesas de voto. E daí pensar: qual seria a minha reacção se acaso um dia as mentes brilhantes que nos governam aceitassem que o voto fosse transaccionável?

Talvez não seja descabido pensar na hipótese, mais ainda para os que defendem com unhas e dentes as virtudes do sistema de voto que é o esteio (retórico) da democracia vigente. Sobretudo porque a abstenção teima em rondar cifras elevadas. Mesmo em eleições municipais, aquelas que tocam mais de perto o cidadão, a taxa de abstenção atingiu quase 40%! Quem sabe se a criação de um mercado de voto não seria a solução para empurrar a teimosa abstenção para níveis que não ponham em causa a legitimidade de quem fica com o poder nas mãos.

Como concretizar o mercado do voto? Antecipo três hipóteses: um mercado aberto, em que o voto dos abstencionistas (declarados) seria lançado no mercado e adquirido por quem estivesse disposto a licitá-lo pelo maior valor; uma variante da hipótese anterior: a diferença estaria na inexistência de licitação, para não acentuar a mercantilização do voto; e um mercado fechado, em que o pretendente a usar o voto de outrem teria que lhe fazer uma proposta de compra, num típico negócio bilateral.

As três possibilidades desfilam pela minha cabeça e não auguro grande futuro a nenhuma delas. O que é curioso, atendendo à minha predisposição para aceitar o princípio do voto transaccionável, como radical liberal que sou. Em qualquer das três modalidades equacionadas só havia transacção de voto se o abstencionista manifestasse essa vontade. Não seria aceitável utilizar automaticamente o direito de voto do abstencionista – até pela sua impraticabilidade, pois os que se recusassem a colocar o seu voto abstencionista no mercado podiam esconder a intenção de não ir às urnas.

A primeira hipótese não me seduz. Tem o risco da incerteza: se colocasse o meu voto num mercado aberto, exposto à licitação, perdia-lhe o rasto. O mais provável seria a criação de pujantes sindicatos financeiros, ligados aos partidos mais poderosos, em condições privilegiadas para arrebatar os votos colocados no mercado. Corria o risco do meu voto ser utilizado para acentuar a oligarquia do mafioso bloco central, responsável pela desgovernação que nos tem pautado.

A segunda hipótese é ainda mais aleatória. Na recusa da mercantilização do voto, havia um sorteio dos votos colocados à disposição pelos abstencionistas. Esses votos seriam rateados entre os eleitores que se propusessem a votar mais que um vez, pagando uma quantia certa pelo segundo direito de voto. O carácter aleatório é semelhante à hipótese anterior: perder o rasto do voto, com a forte probabilidade da pessoa a que calhou em sorte o exercício do meu direito de voto decidir votar num partido que execro. Podia bem acontecer que o meu voto fosse engrossar a maquia eleitoral dos deploráveis socialistas, por exemplo.

Resta a terceira hipótese, o negócio bilateral entre quem se apresta a vender o direito de voto e quem se propõe a comprá-lo. Parece a hipótese mais sedutora. Eliminava-se o risco de incerteza e a nódoa aleatória dos outros dois modelos. Persistia um problema: só estaria disposto a ceder o direito de voto na condição de saber como ele ia ser utilizado pelo comprador. Com o cepticismo metódico que conduz ao abstencionismo militante, e a recusa em votar no “mal menor”, seria impensável colocar o meu voto no mercado, ou negociá-lo directamente com um pretendente: o meu direito de voto seria usado para escolher alguém que não reconheço capacidade para ser timoneiro do nosso rumo.

Não fosse o autismo das luminárias do regime, que insistem em assobiar para o alto quando chega o momento de interpretar as elevadas taxas de abstenção, e a ideia do voto transaccionável podia arrepiar caminho para diminuir a ausência das mesas de voto. Pela parte que me toca, a ideia serve para demonstrar como o argumento típico dos anti-abstencionistas ("quem não vota permite que outros escolham por nós") é uma falácia. Afinal, isso também acontece caso o mercado do voto fosse autorizado.

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