18.10.05

A pedagogia do lenço branco

Mandam os bons costumes: usar lenço branco, guardado num bolso das calças, para limpar as excrescências que o organismo expele para o exterior. Mandam os costumes evitar os escarros brutamente atirados para o chão. Mandam os costumes não tirar catotas do nariz. Servem os lenços, brancos ou de outra cor, que fazem parte da indumentária habitual. Para os mais tradicionalistas, lenços de tecido; para os modernaços, lenços de papel, descartáveis, sem ser necessária a lavagem que devolve a limpeza aos lenços que cumpriram a sua função. Lenços para variadas funções. Um amigo meu contou-me, em tempos, que tinha um amigo que usava dois lenços: um para as tarefas costumeiras, outro para limpar as gotas finais que ficavam a baloiçar depois de expulsa a urina!

São muitas as tarefas atribuídas aos lenços. A mais mediática dos últimos tempos é a de acenar em tom de despedida para treinadores de futebol incapazes de colocar as suas equipas na senda das vitórias. É um lugar comum, para os Gabriel Alves da modalidade, dizer que na falta de sucesso é a cabeça dos treinadores que vai para o cepo. Os adeptos são exigentes, e desfraldam os lenços brancos em sinal de desaprovação. Querem o despedimento sumário. Não interessa se há lugar a justa causa. Nem averiguar se o despedimento vai custar soma avultada aos cofres do clube. Querem, apenas, que aquela criatura deixe de ser o timoneiro da equipa da sua preferência.

Estes adeptos corporizam um fenómeno interessante. Exigem muito da equipa: não transigem com o insucesso, não compreendem que num jogo o factor aleatório da sorte é a pequena grande diferença entre os louros da vitória e o cadafalso do insucesso. Exigem dos outros, talvez porque interiorizem a complacência consigo. Porque não são capazes de exigir muito de si mesmos, exigem que os outros vão para além das suas capacidades. Transportam para os estádios as frustrações individuais. Se acaso a campanha desportiva se salda por derrotas humilhantes, adensa-se o malogro da vida que já lhes corre mal. É então que se abastecem de um lenço suplementar ao saírem para o estádio: mandam os bons costumes que não exibam o lenço conspurcado quando exigem a despedida do treinador incompetente.

Fazia sentido que fosse o lenço já gasto a ser desfraldado. Seria a ilustração de como estava gasto o tempo do timoneiro à frente da nau. É uma incongruência mostrar lenços imaculadamente lavados se queremos mandar embora alguém. Só se for em homenagem aos bons costumes, uma imagem de urbanidade, para que o vizinho não tenha que testemunhar a imundície depositada no lenço de um adepto insatisfeito. Como nisto do fervor clubista avultam os comportamentos mais exacerbados, do último fim-de-semana vem a derradeira novidade: em vez de lenços, alguns deram-se ao trabalho de trazer de casa lençóis, adivinhando a derrota inscrita na agenda. Não é um pequeno lenço que esvoaça ao vento em sinal de reprovação do treinador. É um lençol de generosas dimensões, a mensagem de que não há a mínima empatia entre o homem do leme e os adeptos.

Mergulha-se na antropologia dos lenços em campos de futebol. Os lenços agitados com frenesim são exibição tradicional em praças de touros espanholas, quando o infeliz animal recebeu a estocada final e se ajoelha no seu leito de morte. A turba animalesca vai aos bolsos e saca os lenços, entusiasmada, despedindo-se do touro que se acabou de despedir da vida. Nas arenas onde se dá a estúpida arte de tourear os bichos, lenços exibidos em uníssono representam o aplauso ao corajoso carrasco que acabou de ceifar a vida do bovino, depois de uma luta desigual. A moda foi exportada para os campos de futebol, com uma simbologia diferente: nas praças de touros, acenar lenços brancos é sinal de contentamento pelo espectáculo oferecido; nos estádios de futebol, ilustra o enfado pela inépcia de um artista mor.

O uso dos adeptos anteciparem o despedimento de um treinador através da exibição de lenços mostra a dimensão animalesca do espectáculo. Busca-se nas raízes das touradas o hábito de exibir lenços brancos. Nas arenas, os lenços dizem adeus ao bovino que feneceu instantes antes; nos estádios de futebol, os lenços exigem que se coloque a cabeça do treinador debaixo do cepo, pronta a ser guilhotinada.

O futebol é uma tourada.

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