28.10.05

O Vitorino herói

Vitorino é nome próprio, não o nome legado pela tradição familiar. Vitorino, nesta história, não é a minorca socialista personagem que abrilhanta os locais por onde passa com a sua devastadora inteligência. O herói não é o político meia-leca-rabo-de-pato que trouxe amargos de boca aos camaradas socialistas que tanta fé nele depositam, que tanto dele esperam como o seu Messias que podia combater o outro Messias, o da direita.

O herói Vitorino é um anónimo jovem que saltou para o estrelato porque cometeu a façanha de ser apanhado sessenta vezes pela polícia enquanto conduzia sem estar habilitado pela obrigatória carta de condução. O jovem foi entrevistado por um canal de televisão. Contou que começou a transgredir com catorze anos. E tantas vezes foi detectado pelas brigadas da GNR que, a certa altura, os policiais nem sequer o mandavam parar para a necessária autuação: bastava o contacto visual com o adolescente Vitorino em aventuras a alta velocidade para que a GNR registasse o local e a hora do delito. Mais tarde, o Vitorino seria notificado pela enésima vez para comparecer em tribunal.

Enquanto decorria o relato das façanhas, Vitorino dava a cara às câmaras, sem o mínimo pudor. O que me intrigou: como pode uma criatura aparecer diante das câmaras da televisão confessando o seu avantajado cadastro? Como se pode expor ao ridículo? Não teria consciência de que esta entrevista, dando conta de uma bizarria que alimenta as opções editoriais da comunicação social, o cobria de ridículo perante a audiência?

Talvez o jovem Vitorino quisesse surgir como herói junto de um séquito de adolescentes inconscientes que vê naqueles feitos a aspiração máxima que as hormonas gotejantes podem desejar. Vitorino expunha-se ao ridículo perante uma larga franja da audiência – os sensatos e sensaborões telespectadores já amadurecidos, para quem estes arroubos aventureiros não passam de excitações inconsequentes, bizarrias que tocam o limiar dos desvios comportamentais que entretêm psicólogos. Se até o seu advogado é da opinião de que a justiça devia ser mais branda: para o causídico, o gosto pela velocidade na idade adolescente deve ser tolerada, compreendida no contexto próprio de quem adolesce.

Continuei atento à reportagem, meio boquiaberto meio entretido com a fanfarronice relatada. Deitei-me a adivinhar como centenas ou milhares de adolescentes sequiosos de sensações fortes elevavam naquele momento Vitorino ao altar maior da heroicidade. Não vou aqui engrossar as fileiras dos que exigem da comunicação social maior pedagogia social. Nem protestar contra a reportagem, num pudor hipócrita e bafiento. Nem sequer me indignar com os critérios editoriais que privilegiam o sangue, a baixeza, o incrível. Que interessa que bandos de jovens venham para as ruas com motas e automóveis, num sorvedouro de velocidades vertiginosas até que os veículos parem, esborcinados, contra um poste, um muro, no fundo de uma ravina?

Agora Vitorino arrisca quinze anos de cadeia. Se reincidir, a liberdade coarctada será o preço a pagar pela ebulição das sensações fortes que um acelerador a fundo traz a tantos. Tirar a carta de condução será um preciosismo desnecessário: pois se é verdade que ele conduz bem sem ter passado pelo crivo de uma escola de condução, para quê gastar tempo, dinheiro e paciência e ter que mostrar a um instrutor que já está capacitado para conduzir? Faz-me lembrar uma conversa que escutei há largos anos, num autocarro. Dois populares discordavam da decisão de encurtar os limites legais de etilização ao volante. Um dos populares sentenciou a conversa: “o meu cunhado, que conduz camiões TIR, diz-me que conduz melhor quando emborca uma garrafa de tinto ao almoço”.

Só no final da reportagem percebi a intenção. O jovem Vitorino afinal não se estava a gabar para um reduto de fiéis seguidores. Estava a manifestar arrependimento. Ouvi-o dizer que não sabia o que fazia, não tinha consciência do perigo nem da ilegalidade que cometia. Para evitar tentações, a mãe acompanha-o para todos os lados. É a liberdade manietada que comprou, para não ser obrigado a dizer adeus ao que lhe resta da liberdade que todos temos fora das prisões. A exposição perante as câmaras – a expiação pública dos erros do passado, uma espécie de “serviço à comunidade” para evitar a aplicação da pena de prisão?

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