21.10.05

A inesperada discriminação (sida e a ignorância de duas enfermeiras)

Pertenço a um centro de investigação que estuda as discriminações que afectam minorias (Centro de Estudos de Minorias). Sou uma espécie de pára-quedista no centro de investigação: do muito que por lá se investiga, entra em domínios que escapam aos meus conhecimentos. E não me revejo em alguma da metodologia, algum do discurso que preenche o imaginário da lógica bem pensante da protecção de supostas minorias.

Uma retórica incompreensível: estudar as causas das discriminações que condenam ao ostracismo certas franjas, daí em diante acantonadas no papel de minorias; e depois concluir que elas merecem uma compensação pelos atropelos cometidos pela História, compensação que surge com a designação de “discriminação positiva”. Não consigo aceitar esta forma de pensar: é inaceitável propor discriminações (ainda que “temperadas” com o adjectivo “positivo”) para combater discriminações que remeteram alguém à condição de “minoria”. Sejam homossexuais, mulheres, crianças, minorias religiosas, étnicas, políticas, artísticas, etc.

Em tempos pedi a demissão do centro de investigação. Não me revendo nas linhas de investigação, nem percebendo como podia dar um contributo válido para as acções de investigação escolhidas (porque escapavam aos meus conhecimentos), em nome da honestidade intelectual abdiquei. Um ano mais tarde voltei a ser convidado. Acenaram-me com um refrescamento do centro, um enxugamento das linhas de investigação (que já não era uma espécie de albergue espanhol – onde tudo lá cabia), que o centro tinha sido alargado a novos membros, reflectindo maior diversidade de conhecimentos. Convencido, reentrei. Na primeira reunião após o regresso, afinal pouco mudou. Tudo e mais alguma coisa serve para descobrir uma minoria que passa a ser alvo privilegiado de investigação do centro.

Na tal reunião, falou-se dos que são excluídos pelo sector da saúde. Outra categoria de excluídos, engrossando o catálogo de minorias. As crianças e os doentes de sida são os que sentem com maior intensidade o tratamento discriminatório. Foi aí que me recordei de um episódio vivido numa urgência de um grande hospital do Porto, há cerca de dois anos. Enquanto os meus colegas se entusiasmavam com mais uma discussão estéril, em busca do sexo dos anjos e passando ao lado do essencial, embrenhei-me nas memórias desse acontecimento.

Ao fim de longas horas de espera, deambulando pelos frios corredores da urgência do hospital, esperando pelo diagnóstico de vários exames feitos à pessoa que acompanhava, deparei com o impensável. Numa das muitas macas espalhadas pelos corredores da urgência jazia um homem esquálido, causticado por inúmeras chagas que não tinham tempo para cicatrizar. O homem gemia de dores enquanto esperava que alguém o atendesse. O que demorou tempo demais. Quando chegou a hora de ser visto por médicos, vieram duas enfermeiras – ou auxiliares, não consegui perceber – que o moveram da maca para uma cadeira de rodas. Antes de o fazerem, segredaram algo e, zelosamente, calçaram luvas. Ainda hesitaram antes de se debruçarem sobre o homem: perguntaram-se se deviam usar máscara protectora. O homem padecia de sida.

Depois de entregarem o homem aos cuidados da equipa médica, as duas enfermeiras regressaram ao corredor onde estava a maca agora desocupada. Olharam para o lençol que tinha sido o demorado leito do doente. Continuavam na dúvida: o que fazer ao lençol, como o manusear. Temiam que a mortífera doença se pudesse contagiar pela simples manipulação do lençol. Como antes haviam receado que o ar expelido pelo doente pudesse ser o foco de contágio da terrível doença (e daí a dúvida sobre as máscaras protectoras).

Este é o tipo de discriminação mais repugnante. O homem não se terá apercebido de nada, mergulhado num torpor que lhe tolhia o discernimento. Para quem estava a assistir, para quem tivesse o mínimo de conhecimentos de como se contagia a sida, a cena foi pungente. Pela ignorância que campeia entre os profissionais que lidam com estes casos, que deviam ter conhecimentos que impedissem as hesitações mostradas. Entende-se que os profissionais da saúde estejam mais expostos, que sejam uma profissão de risco. O que não chega para que estes profissionais descambem para atitudes lamentáveis como a que presenciei. Onde a ignorância arrepia caminho a doses intoleráveis de discriminação que cai, pesada, sobre quem sabe ter lavrada sentença de morte devido à doença que transporta.

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