3.10.05

Vatanen, o euro deputado voador

Foram as façanhas do jovem finlandês, há vinte e cinco anos, que me fizeram despertar para o meu desporto favorito. Alto e loiro, como quase todos os ases de ralis do viveiro finlandês, Vatanen era o mais jovem dos destemidos que voavam nas estradas florestais em derrapagens infindáveis. Os pilotos que vinham das terras frias tinham o sangue quente. Malabaristas, atirando os carros para as curvas, dando a impressão que não as conseguiam dobrar. E eis senão quando, com um golpe de asa, num truque só ao alcance de predestinados, iam em demanda da curva seguinte, para a próxima derrapagem que fazia trinar de entusiasmo os adeptos que se colocavam loucamente nas bermas das estradas de terra.

Ari Vatanen era o delfim. Na idade tenra da carreira, tinha que mostrar serviço. Se os outros nórdicos asseguravam espectáculo estrada fora, Vatanen era o mais esperado pelas loucuras que fazia ao volante, com o volante. O Ford Escort era um brinquedo nas mãos dos rivais; nas mãos do virtuoso Vatanen era uma miragem que transcendia o limiar do possível. Tinha uma tendência irreprimível para estragar a lide, entregando nas mãos de um rival a vitória que parecia certa. Porque Vatanen não se entregava à frieza do resultado; porfiava ir mais além, teimando nos malabarismos que faziam desfraldar aplausos acalorados. Até transigir no exagero, e desnudava-se perante a sua condição de simples mortal. Ficava-lhe o amargo de boca de uma vitória desbaratada. Aos adeptos, uma entronização no lugar mais alto dos preferidos.

Vatanen envelheceu. Os automóveis brutalizaram-se numa escalada de potência, ficaram indomáveis. Mesmo para os eleitos, para aqueles que percorriam estradas na tranquilidade de um pai de família domingueiro, quando afinal arriscavam a cada centímetro tragando a poeira vomitada para os adeptos que reincidiam em não descolar das bermas. Os carros passaram a ser adamastores sem freio, e Vatanen pagou pela ousadia de os querer vergar. Dois graves acidentes, num dos quais esteve nos beirais da morte, temperaram o endiabrado Vatanen. Amadureceu com o estigma da morte que pesou sobre ele, nos tempos que esteve em coma depois de um assustador acidente na Argentina. Acalmou, congelou as tropelias diabólicas. Domesticou os instintos, entrando na recta final da sua carreira – uma carreira que merecia ter brilhado mais, não tivesse o jovem Vatanen estropiado tantas vitórias em nome da adrenalina. Da sua, e da de milhões de espectadores que foram testemunhas dos seus feitos.

Quis uma reforma dourada: deixou os ralis, cada vez mais para jovens tresloucados, e refugiou-se na acalmia dos Paris-Dakar. E ganhou uns tantos, sem correr os riscos que o faziam tão admirado pelos adeptos da pureza dos ralis. Até que se cansou de correr atrás da vida à velocidade que só está ao alcance dos destemidos. Deixou o vício da velocidade, estacionou o fato de competição, possuiu-se pelo vício da política. É deputado ao Parlamento Europeu há cerca de dez anos. Agora está na ribalta – não pelos dotes de quem dominava uma fera cheia de cavalos, mas como parlamentar que quer mostrar serviço.

Ari Vatenen, no sossego dos seus cinquenta e poucos anos, dá a cara por uma campanha de segurança rodoviária. O que parece um paradoxo, olhando para o final da década de setenta e para estes anos que inauguram o século XXI. Outrora, a imagem de um louco agarrado ao volante, inspiração para anónimos destemperados que queriam imitar nas estradas as façanhas dos ases dos ralis. Muitas vezes pagando a audácia com a própria vida. Agora, como se estivesse entregue a um descomplexado exercício de introversão, feitor da segurança nas estradas, convencendo os automobilistas que é estúpido colocar o pescoço no cadafalso quando vão ao volante.

Lá virão as virgens negras da desgraça alheia, de braço dado com preconceituosos ambientalistas, aproveitar-se do exemplo de Vatanen para asseverar a estupidez das competições automóveis. Tremendo erro de análise: o empenhamento de Vatanen não é a negação do seu passado. Nem Vatanten, o euro deputado, alguma vez renegou o seu passado de piloto de ralis. Desenganem-se os que acreditam que a causa eleita pelo euro deputado finlandês será o opróbrio dos ralis. A mensagem é outra: façam ralis no local próprio, em vez de semearem loucura estrada fora. E sejam os adeptos da modalidade os expoentes do bom exemplo, bofetada de luva branca aos que teimam em ver a realidade desfocada.

Ninguém os obriga a tecer loas aos loucos do volante que deixam um rasto de poeira. Mas que deixem em paz os lunáticos que se deliciam a ver carros à beira do desgoverno numa correria contra o relógio.

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