25.10.05

Morrer da cura

Frequentar hospitais públicos. Nas urgências, em visitas, em demoradas esperas por uma consulta ou um tratamento. No convívio forçado com o desgraçado povaréu. Desgastando a paciência com inenarráveis atendedores, o arquétipo do funcionário público: eles existem para serem servidos pelo utente, em vez do contrário.

Podem mudar as instalações dos hospitais. Podem-nas modernizar. Ou mesmo construir hospitais novos de raiz. O mal há-de lá estar, sejam os hospitais edifícios emproados de estilística arquitectura, sejam vetustas, medonhas construções. O estigma dos hospitais públicos moveu-me a contratar um seguro de saúde. Sei que duplico a factura pessoal em gastos de saúde, pois no Estado infamante em que vivemos não é dada a opção de descontarmos para o sistema nacional de saúde ou para um seguro privado.

Naquelas ocasiões em que o seguro se saúde não serve de tábua de salvação que impeça a visita ao hospital público, a dor de cabeça é fatal. Os guichets de atendimento, onde começam as filas para tudo e mais alguma coisa; o atendimento impessoal, desinteressado, porque cada “paciente” é mais um estorvo para os funcionários administrativos que muito gostariam de ter menos gente para atender em cada dia. É nos hospitais que faz sentido rotular os utentes como “pacientes”. Pela paciência chinesa exigível para aturar as horas infindáveis perdidas nos corredores do hospital em tarefas que, à primeira vista, parecem tão simples.

Em esperas nos hospitais públicos encontra-se um laboratório sociológico das lusitanas gentes. O povo rasteiro: senhoras hipocondríacas dadas a achaques à mínima dor, quase imperceptível; as misérias sociais que mostram como ainda estamos longe da Europa, uma miragem no imaginário; ali desaguam casos sem fim onde apetece, num acto de hipocrisia, virar a cara para o lado. Numa sala de espera apinhada de gente, com um odor pestilento que vai tomando conta da atmosfera fechada, o burburinho próprio de um ajuntamento popular. As conversas passam em revista as moléstias pessoais. As senhoras revisitam o cadastro das maleitas coleccionadas no passado. Parece um cantar ao desafio, a ver quem tem mais operações no passaporte, quem passou mais dias acamada no hospital.

Pelo meio, enfermeiras e maqueiras que furam o caminho com uma maca vazia, maltratando duas hesitantes senhoras que estavam grudadas à porta por onde a maca tinha que passar. O espelho de como o povoléu é tratado abaixo de cão por quem trabalha no hospital. Os maus-tratos estendem-se, num mostruário do hospital como laboratório da sociedade. No altifalante é chamada uma senhora para o consultório número-qualquer-coisa. Uma, duas, três vezes. É o marido que a vai buscar à casa de banho e, em maus modos, na grosseria marialva que é património genético de uma certa educação popular, passa-lhe um raspanete com a voz grossa de quem “manda lá em casa”. Empurra-a vigorosamente para a porta e depois fica a olhar em todas as direcções, com o orgulho másculo de “quem manda lá em casa”, decerto à espera de ser aplaudido pela turba.

Na sala de espera, mesmo à minha frente, uma voluntária serve um sucedâneo de pequeno-almoço aos pacientes e acompanhantes. Como coisa gratuita que é, a senhora desdobra-se em trabalho. Uns atrás de outros, é uma enxurrada de pacientes que aproveita a borla para reforçar o pequeno-almoço tomado em casa – mesmo que àquela hora pouco tempo haja passado desde o bucho matinal. Uma borla nunca se desaproveita. A mesquinhez em todo o seu esplendor.

Ao regressar ao hospital, uma e outra vez mais, a sensação de sempre. Ao sair, um inexplicável cansaço que se apodera de mim. Ainda que a demora tenha sido menor, mesmo que o tempo de espera estivesse ocupado com a leitura de um jornal, os olhos cruzam-se fatalmente com as ladainhas, as desgraças pessoais que são sempre as mais inditosas, a boçalidade a jorros, a desdita de quem vai ao hospital em busca do bem-estar pessoal e de lá sai com uma cruz carregada às costas. Entrar no hospital, supõe-se, é em busca da cura. O longo caminho para extinguir os males que povoam os pacientes defronta-se com a inépcia do hospital. Hospital fadado para germinar o mal.

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