31.1.06
Desnudamento
Há tempos escrevi sobre uma espécie escondida de voyeurismo, dos aspirantes aos estrelato social. Hoje reflicto sobre a tarefa de escrever e de expor a escrita. De como existe exposição do eu aos olhos de outros. Um certo desnudamento do autor, quando o texto resvala para o pessoal ou para a exposição de ideias embrulhadas em polémica.
Sempre tive pudor em revelar certas dimensões de mim. Às vezes olho para trás, viajo pelos textos publicados, e sinto que está lá uma parte indelével de mim. E interrogo-me se não estou a permitir uma violentação do eu reservado que se quer manter assim. Sabia que a escrita (ou os ensaios dela) constitui um acto de revelação pública. Já me disseram que isso requer coragem. Nunca o encarei por esse prisma. Já antes de ter gerado o blog escrevia com a mesma regularidade matinal. Decidi fazê-lo por imperativos de higiene mental. Para não viver cerceado pelas muralhas da investigação científica que a profissão exige. O blog terá sido um modismo, uma aventura ao que tanto recusava: a exposição da escrita, da opinião.
Na encruzilhada é difícil discernir por onde ir. Por momentos, a pulsão de deixar de escrever – ou apenas de o revelar aos olhos dos outros, como agora. Noutros momentos, a necessidade de partilhar com a restrita audiência. Por vezes, a forma encontrada de desempacotar coisas que é mais difícil libertar nas palavras que se dizem. Dividido entre os dois lados que se antagonizam. Há alturas em que a revisitação de certos textos faz sentir que parte de mim se desprendeu, agarrada a esses textos. É deste desnudamento que falo. Este o desnudamento que me inquieta.
Não há ambições mediáticas. Nem projectos de carreira literária, apesar do prazer incomensurável da escrita. Se acaso algum dia viesse a publicar escrita (não o que já está publicado, que esse não é de gesta literária), saberia que a exposição era a mesma, talvez numa escala amplificada. A escrita, essa, tanto pode ficar resguardada numa pasta secreta do computador, inacessível, como florir em forma de letra publicada, num blog como num livro. Para adensar o dilema da encruzilhada, questiono-me para que serve uma escrita mergulhada para o íntimo de mim mesmo, invisível aos olhos dos outros, porque deles escondida pelo recato da não publicação. Seria uma escrita narcísica, ainda com os predicados profilácticos, mas sem um destinatário.
Outro dilema semeado: deve a escrita ter um destinatário? Por vezes, nem que seja por portas travessas, nas entrelinhas fica sugerido o destinatário. Outras vezes o texto é enviado para essa comunidade gigantesca que navega na rede, pondo o pedaço do eu que vai incrustado no texto à disposição do aleatório acto de pesquisa de quem o encontra. Resta-me a opinião, desbragada por vezes, outras tantas excessiva apenas com o fito de exercitar a veia provocatória. O preço a pagar é a exposição do excessivo, um autor desalmado que caustica demais, expondo-se aos maus fígados alheios (afinal, maus fígados que destilam contra o mau fígado que opina deste lado).
Não sei se não serei voyeur de mim mesmo, com estes textos. Involuntariamente voyeur de mim mesmo. O quanto me custa sentir com a revelação através da escrita: invasão que faço a mim mesmo. Matéria para introspecção pelos tempos que se seguem. Com as devidas proporções, há algo de perturbante na ideia: como angustiante deve ser, para as figuras públicas, andar na rua e ver que as pessoas que com elas se cruzam os fitam, reconhecendo-os na qualidade de figuras públicas. Com as devidas proporções, às vezes sinto que a revelação dos textos é a revelação da minha nudez. Só ainda não sei se o recato trará mudança, com o irromper de um novo tempo, um encerramento nas masmorras de mim mesmo.
O nirvana (5)
Agradeço todos os esclarecimentos. E achincalhamentos. Hoje cresci muito com os respingos de tradição das tunas que me foram ensinados. (Aprendi que a palavra "tuno" já tem utilização ancestral...)
A caixa de comentários continua aberta. Como tenho mais que fazer do que ir respondendo à enxurrada crítica, declaro tréguas a partir deste momento.
Divirtam-se a fazer aquilo que gostam: a "tunar", coisa de que continuo a não gostar, se me dão o direito a tal gosto pessoal. E de o pôr por escrito, já agora.
30.1.06
Nirvana (4)
De regresso à censura, portanto. Teria condescendência, acaso a crítica não tivesse sido "tão feroz"?
Nirvana (3)
"Vamos generalizar? E não é que o senhor Professor Doutor, com apenas 37 anos de idade, é licenciado em Direito, numa privada, mas só com 14 valores? O que é que andou a fazer durante o curso? Certamente não perdeu tempo com actividades extra-curriculares ou até académicas, por isso não se compreende como não se dedicou mais ao estudo para apresentar uma média de relevo! Para além disso, é docente na Universidade Fernando Pessoa, uma escola bem conhecida pela sua (suposta!) categoria... Só lá entram alunos com médias brilhantes e os professores são sujeitos a uma selecção muito rigorosa! Por que não lecciona numa Universidade Pública, senhor Professor?"
O Google é fantástico. A incisiva menina foi à minha (desactualizada) página para a perseguição ad hominem. Mas se tivesse visto o post anterior, teria reparado que o curriculum vitae, lá colocado na webpage, é um embuste.
Interpretação alternativa: é pena que a falta de inteligência não pague imposto.
O nirvana (2)
Cultura.
Há quem goste de Emanuel. Há quem se extasie num concerto de Clemente. Ou de Ágata. Dino Meira. Roberto Leal. Trio Odemira. Tunas.
O conceito de cultura é abrangente. Muito subjectivo. Posso concordar com muitos dos pontapés que recebi dos tunos que levaram a mal a minha antipatia por tunas. Serei um péssimo professor. Licenciatura às costas dos colegas, sempre com a alavanca dos auxiliares de memória. O que publiquei até hoje é um mar imenso de plágios. Desonestidade intelectual. Doutoramento por correspondência, depois de ter regado as mãos do júri com um suborno magistral. Confesso: destilo a acidez estomacal nas tunas por despeito: eu, que tanto queria entrar na tuna (para comer umas gajas, piorando o diagnóstico), e nunca me deixaram.
Só não concordo quando usam a palavra "cultura" para caracterizar a actividade das tunas. Mas, lá está: subjectividade, só subjectividade.
O nirvana (1)
Há, mas… (a vitória do Hamas, ou da democracia relativa)
Anda meio mundo preocupado com a vitória do Hamas nas eleições palestinas. O Hamas nunca renunciou ao terrorismo. O ocidente, fielmente ao lado de Israel, senta o Hamas no banco dos réus pelos hediondos actos de terrorismo que patrocina. Não está em causa legitimar os actos de terrorismo, do Hamas ou de quem quer que seja. Nem muito menos enveredar pelos caminhos da desculpabilização, sob pena de se ofender a memória das suas vítimas inocentes.
Na história do conflito entre israelitas e árabes, sempre a postura enviesada dos advogados ao serviço de ambas as causas: como se as palas impedissem de perscrutar para o lado, para ver que entre os seus há também culpas no cartório. Os americanistas de serviço só erguem o dedo aos movimentos terroristas árabes, esquecendo-se do terrorismo de Estado das autoridades de Israel. O mesmo comportamento da parte das esquerdas militantemente arregimentadas ao lado dos palestinos, no afã de desculpabilizar o enésimo acto de barbárie de kamikazes que dão a vida com a promessa de terem para si setenta virgens.
Este comportamento que olha só para um lado é contagiante. O oportunismo da análise engrossa fileiras. Dos fervorosos partidários de causas – o que não surpreende – aos comentadores que passam para o exterior uma aura de insuspeição, a todos atingeo vírus da interpretação enviesada de acontecimentos. O mais recente episódio, a semana passada, com as eleições na Palestina. Para surpresa de muitos, os radicais do Hamas tiveram uma vitória esmagadora. Logo saíram da toca os habituais defensores de Israel, com o governo dos Estados Unidos a servir de testa-de-ferro, mais os tradicionais acólitos que acham que tudo o que os Estados Unidos fazem está sempre bem feito. Bush Jr. teria que proferir mais uma daquelas declarações que se distinguem pela carência de inteligência: a democracia é virtuosa, as eleições são a suprema manifestação da democracia, mas – inquiria o presidente dos Estados Unidos – o que dizer quando os vencedores são os maus da fita?
Este tipo de análise diz tudo de quem a titula. Valha a verdade que o comportamento não é exclusivo de Bush, ou dos defensores de tudo o que vem de Washington. Atinge o outro lado da barricada, as insuspeitas esquerdas que se gabam de serem líderes do campeonato da tolerância. Foram as esquerdas que gritaram de pulmões cheios, tão ofendidas estavam, quando a extrema-direita ficou em segundo lugar nas eleições austríacas em 2000, formando um governo de coligação com a direita moderada. O mundo à esquerda ficou chocado, incapaz de perceber como tantos eleitores austríacos exibiram semelhante falta de inteligência para permitir que a extrema-direita ascendesse ao poder. Brandiram-se, alarvemente, fantasmas do passado. Esboçaram-se cenários dantescos: era a democracia que estava em perigo, passando-se um atestado de menoridade cívica aos austríacos. Nessa altura, à direita apenas o silêncio, um silêncio comprometedor.
Agora os papéis inverteram-se. O Hamas ganhou as eleições, para desprazer dos sectores conotados com a direita tradicional. Estes sectores vieram para a ribalta, dizendo-se preocupados com o futuro da paz no Médio Oriente (como se tal objectivo possa ser acautelado, independentemente de quem estiver no poder de ambos os lados). Foram eles que, com meias palavras, questionaram o resultado das eleições. À esquerda, ou o silêncio ou palavras que sublinham como os resultados das eleições devem ser respeitados, sempre, para que os eleitores não sejam desautorizados. Pena que diferente tenha sido o seu comportamento há seis anos, depois das eleições na Áustria.
De um lado e do outro, tresanda a intolerância. Os resultados de eleições são enaltecidos quando convêm à facção. De contrário, assinalam-se os perigos, questionam-se os resultados, insulta-se o eleitorado que contribuiu para o escrutínio que traz o desgosto à facção. Como se o eleitorado flutuasse em discernimento. À esquerda e à direita, de forma mais ou menos encapotada, os mesmos trejeitos de intolerância.
Por cá, ainda no doloroso rescaldo das eleições presidenciais, houve comentadores que não pouparam ofensas aos eleitores pela derrota humilhante de Soares. Apoiantes cegos passaram um atestado de menoridade intelectual aos 86% do eleitorado que preferiu colocar a cruz noutros candidatos. Alguns sugeriram que a não escolha de Soares foi uma afronta de um povo que não quis honrar a memória. A falácia do “pai da democracia”, na enésima revisitação. E a ideia de que para certos “democratas” da nossa praça, o povo é estúpido demais para votar – sobretudo quando não escolhe o candidato ou o partido que esses “democratas” sancionam como escolha inevitável. A minha sugestão: porque não cadastrar o povo, vedando o voto aos que votam estupidamente?
É nestas alturas que me pergunto: não estaremos inquinados pelo vírus do totalitarismo que vem do passado? Ainda não nos conseguimos desprender da tutela salazarista, que parece ter moldado os quadros mentais de tanta gente, à direita e à esquerda?
27.1.06
O paradoxo da alegria africana
Enquanto desgastava calorias no ginásio, a televisão passava um jogo do campeonato africano de futebol. Jogavam Angola e o Congo. Ao intervalo as câmaras cirandavam pelas bancadas em busca de animação. E se era coisa que não faltava, naquela noite fria do Cairo, era animação entre as claques angolana e congolesa. Cores garridas, um mole que, em uníssono, pulava ao sabor dos sons de tambores, um respiro de tropicalismo.
Quando se pensa na África martirizada pela pobreza e se testemunham ímpares exibições de alegria, há qualquer coisa que está errada. Porventura entre os africanos, que passando por carências infindáveis conseguem mostrar uma alegria indómita de viver. Estranharemos nós, ocidentais, como podem povos que vivem à míngua ser levianos ao ponto de exibirem uma invejável alegria de viver. Será apenas mais um sinal do antropocentrismo que nos manieta. Asseveramos: por aqui, onde a abundância material estende a passadeira ao bem-estar, os psiquiatras são um ramo de negócio bem sucedido; na África sub-sahariana a miséria parece conviver com a alegria, como se estes povos rejubilassem por levar a sua vida cercada de miséria.
Porventura o que está mal é a ocidental maneira de ajuizar os outros. Talvez África seja uma lição para a vida fátua que se apodera de nós, sem que consigamos recusar a entrada da fatuidade. O contraste vem em desabono dos ocidentais. Como se explica que a fartança material, com as condições de bem-estar que gera, nos mergulhe numa tristeza irreprimível? Como se explica que sejam pessoas sem preocupações de bem-estar material que enriquecem a classe bem sucedida dos psiquiatras? Do outro lado, no continente negro, milhões permanecem agrilhoados à preocupação da subsistência diária – algo impensável para o cidadão médio dos países ricos. E nem assim perdem a alegria de viver, essa invejável forma de olhar para a vida.
Dirão que é inato. Que os africanos se contentam com pouco. E que do pouco conseguem extrair toda uma sumarenta maneira de viver. Dir-se-á que os africanos percebem que a carência material já basta para mergulhar as suas vidas na iniquidade. Algures do fundo das energias que se renovam, o motivo para celebrar uma vida que se arrasta na penúria. Amarrada ao estigma da penúria, a vida tem que ser festejada nos momentos em que conseguem encontrar forças, num qualquer compartimento estanque, para esquecer as desventuras semeadas no caminho.
Invejo os africanos. Apetece fazer o paralelo com o imaginário que tantas vezes tece a história de Portugal: invocar o milagre das rosas. Numa adaptação às circunstâncias, os africanos fazem o milagre da alegria. Sem saberem, são professores dos ocidentais que teimam em vaguear pela vida, aos tombos, entristecidos, descontentes com a abastança material que, todavia, é o seu oxigénio. Parece que o mundo nasceu de voltas trocadas. Em paragens causticadas pela pobreza, uma força indomável mostra a alegria contagiante. Em locais que se distinguem pela riqueza, povos macambúzios, padecentes de doenças modernas que (quantas vezes) só existem na cabeça de cada paciente.
Acreditasse numa justiça divina, outras dúvidas estariam a pairar sobre a minha cabeça: como pôde este deus agraciar um continente com tanta alegria de viver se o votou à miséria? A interrogação surge com outra cambiante: será um deus injusto, este, que penalizou a alegria congénita dos africanos com o preço da pobreza que se enraizou bem fundo nas entranhas do continente?
Deixo a metafísica para trás. Retomo as imagens, retidas na memória, daquele estádio no Cairo, das animadas claques de apoio às equipas do Congo e de Angola. Lembro-me dos adeptos em festa permanente. No intervalo atinge o auge: têm que se entreter enquanto os jogadores descansam no recato do balneário. Mesmo durante o jogo, é incessante o pulo colectivo que acompanha o batuque ritmado. Parecem mais atentos à coreografia da alegria que ensaiam do que ao jogo que vai acontecendo no relvado. Os felizardos congoleses e angolanos que viajaram até ao Cairo (decerto emanação das oligarquias que sedimentam as cleptocracias respectivas) ensinam que o que está em disputa não é a competição: é a sagração de uma alegria infindável.
Do lado de cá, persistimos no haraquiri: sem razão adejando na melancolia, que não seja por cansaço de estarmos bem. De regresso à metafísica, para concluir que acaso o tal deus existisse, era um deus a padecer de injustiça, a ajuizar pelos paradoxos que campeiam pelo mundo por ele tutelado.
26.1.06
Astrologia e treta-e-meia
Algumas vezes por semana, à hora do almoço, enquanto a televisão debita aquele irritante programa para entreter velhinhas, aparece uma astróloga. Sempre atravancada numas roupas dois números abaixo do seu corpo, banhas a transbordarem as ditas, lança uns palpites astrológicos acerca de umas vítimas que se põem a jeito. As vítimas, crentes na “ciência”, telefonam para os estúdios, informam data e hora de nascimento e esperam que o software vomite a carta astrológica. É um autêntico roteiro pelo passado da vítima. Por norma, um chorrilho de desgraças que merece a confirmação da alma penada que está do outro lado do telefone. Para desanuviar, a astróloga trata de anunciar, do alto do seu oráculo, bons ventos para o ano que se avizinha.
Que me perdoem os que acreditam na coisa. Este é apenas o testemunho de alguém assoberbado pela ditadura do racionalismo. De alguém que teima em se reger pelos cânones da cientificidade. Uma forma diferente de cumprir a máxima de S. Tomé: ver para crer. Afastar do horizonte qualquer vestígio paranormal, esoterismos ou explicações que fantasiam acontecimentos. As coisas: ou aconteceram, ou não foram. Um pragmatismo doloroso. Na senda deste pragmatismo racional, a astrologia é coisa que me faz rir.
Eis o que me espera no dia de hoje, se se cumprirem as previsões mapeadas para o signo de Peixes, algures na Internet. Um artista prevê que eu tenha que “lidar profissionalmente com mulheres de grande prestígio social e poder. Não deixe que a sua carreira dê cabo da sua vida pessoal”. Outro expoente do esoterismo paroquial fixa o seguinte destino:
“Saúde: tenha cuidados alimentares que mantenham o seu peso estável. Amor: é importante que seja moderado e justo evitando reagir de forma impulsiva e sem cometer excessos. Dinheiro: faça economias e uma gestão sensata dos seus movimentos financeiros. Não é a altura mais propícia para fazer sociedades ou tentar conseguir financiamentos. Hora mais protegida: 11h ás 13h” (“ás” não foi propositadamente corrigido. O erro é de quem fez o horóscopo…).
Fico intrigado. Para hoje a agenda não mostra nenhuma reunião com mulheres de prestígio social e de poder. Ainda bem. Para não enfrentar as tentações carnais de uma delas (ou várias), a acreditar no aviso da segunda cartomante. Teria que reagir moderadamente, com justiça, não cometer excessos. Suponho que com as mulheres de poder e de prestígio social que o primeiro astrólogo coloca no meu caminho para hoje. Seria um dilema embaraçoso: o sucesso profissional dependente da satisfação dos apetites carnais de uma daquelas mulheres prestigiosas. Com o risco de destruição da harmonia familiar, não fosse esquecer a advertência: “não deixe que a sua carreira dê cabo da sua vida pessoal”. Estes astrólogos passam o dia a ver telenovelas…
Faz-me espécie a padronização dos humanos da autoria dos astrólogos. Tudo se resume a doze signos do Zodíaco, a que se junta uma mão cheia de variáveis: os “ascendentes”, relacionados com a hora a que nascemos. Tudo misturado, os milhões e milhões de pessoas que vivem no planeta reduzem-se a algumas dezenas de estereótipos. A astrologia é a negação da diversidade humana, uma lápide a essa riqueza que nos distingue. Quando se pensa que o conhecimento de pessoas nos traz sempre diferença, estamos enganados. Todas encaixam num dos estereótipos das cartas astrais.
Que interessam as múltiplas variáveis que interferem com as complexas personalidades que conhecemos? Acaba tudo por ser reduzido ao espartilho da astrologia. Independentemente do lugar onde se viva, sem saber a formação da personalidade com os contributos da educação, das relações com outras pessoas, das vicissitudes da vida, etc., os astrólogos enfiam toda a gente em doze signos. Todos os milhões de peixes terão um dia igual, como todos os milhões de leões terão um dia igual. Sem ofensa aos que acreditam na coisa, é caso para dela escarnecer.
Noutro local, consegui desenhar a minha carta astrológica. Deu resultados que estão nos antípodas do que conheço de mim. Alguns exemplos: “a maioria dos seus fracassos resulta da falta de senso crítico” (nada mau para quem tem a crítica sempre na ponta da espada); “possui habilidade mecânica e científica e gosta de trabalhar em equipa” (detesto trabalhar em equipa e sou uma nódoa nas coisas que exigem destreza mecânica); “as suas ligações amorosas costumam ser inconvencionais, superficiais e variáveis” (o passado rejeita esta fama de doidivanas). E podia seguir, até à exaustão, na amostra de predicados que são de outrem que não meus.
É o que dá, quando a astrologia se arvora em ciência, apenas porque joga com o movimento cientificamente estudado dos astros, como se isso tivesse influência no percurso que as pessoas seguem. Como se todas as pessoas estivessem enfiadas num dos doze harmónios moldados pelas convenções dos signos. Charlatanice em estado puro.
25.1.06
Negativismo militante
Chegam-me aos ouvidos perplexidades alheias sobre o negativismo do que escrevo neste blog. Dizem que tenho sempre uma palavra de áspera crítica para tudo o que se mexa. Ao fazer um balanço dos temas tratados, reconheço que a desconstrução vence por goleada textos que enaltecem algo, que destacam um aspecto positivo da vida. Não posso negar que esta tendência avassaladora me inquieta. Reflexo de um estado de alma, de uma insatisfação que demora em desprender-se.
E, contudo, é irreprimível. Ainda não percebi se é por ser exigente comigo mesmo. Sinto-me no dever de estender a mesma bitola para o que me rodeia. Por vezes, com consequências desagradáveis: o descontentamento com os outros depressa motiva o descontentamento dos outros comigo. É uma sensação que dobra os meus sentidos, sem forças para a combater. Para onde quer que olhe, sempre uma palavra crítica, sempre a mesma insatisfação, sempre a percepção de que as coisas giram no sentido errado, como se fossem um relógio que teima em rodar os ponteiros da direita para a esquerda.
Ao jeito de peregrinação interior (roubando o título de um livro de Alçada Baptista), confesso que não me traz alento a postura crítica que exibo. Não é confortável esboçar a desconstrução do mundo tal como ele aparece diante dos meus olhos. Interiorizo o comportamento desconstrutivo como algo semelhante à desconfiança metódica perante qualquer credo: concluo que o caminho que escolhi esbarra numa parede impossível de escalar. Tal como se no fim da calçada estivesse um muro, tão alto que não deixa ver sequer o céu. De tal alto ser, insuperável. Resta o dilema. De não saber o que sucede quando esbarro no impenitente muro. Sabendo que o percurso da vida não admite retrocessos, chegar ao muro equivale ao torpor que se eterniza. Ou ao fim da linha, um definitivo ponto final que não contempla mudança de parágrafo.
Se há consolo na exegese da impiedosa crítica, é o falso refrigério de encontrar tema para escrever todos os dias da semana. Só um pretexto, porventura. Ou a ideia de que é mais fácil encontrar temas para destilar a veia crítica, porque na desordem harmoniosa que é o mundo os assuntos que dão lenitivo à desconstrução saltam da toca como férteis coelhos. Pode a veia desconstrutiva ser desagradável à leitura. Sobretudo de quem afina por um diapasão antagónico, para quem consegue encarar o mundo com um optimismo desarmante (ou simula a hercúlea tarefa).
Insisto: na desconstrução de algo há sempre um reduto construtivo. A menos que a persuasão da crítica esteja ausente, a tarefa de desconstruir tem o condão de indicar que o que existe está mal, carece de mudança. Eis como a desconstrução aplaina o caminho para o diferente do que está. Nessa característica, há um caminho de construção que se abre pela frente. A crítica militante não se limita a destruir apenas por destruir, como se os seus cultores se regozijassem com a imagem de um bulldozer que tudo espezinha, deixando terra queimada para trás.
Para quem se cansa de ler crítica atrás de crítica, a sensação de que este é um mundo onde não há merecimento de viver. Falsa ideia. O valor maior é a vida. Mesmo num sítio tão imperfeito. Haverá decerto alternativa ao mundo imperfeito que cativa as artes da desconstrução. Como se trata de insondável mistério, ainda por descobrir, o mundo melhor fica remetido para a gaveta das coisas que hão-de vir (mensagem de esperança…). Que não me seja pedida a receita milagrosa depois de rejeitar o que desconstruo. Humano e cravejado de imperfeições, confesso a minha incapacidade para descobrir o caminho alternativo. Entretanto, vou-me entretendo a denunciar as vergonhas que enxameiam o sítio fétido onde vivemos. Seremos desgraça de nós mesmos? Ou por nos resignarmos a viver, silenciosos, no lodaçal; ou por marcharmos contra a maré dominante sem encontrar resposta para dobrar o cabo das tormentas que incendeia o descontentamento. Não, apenas o que somos, na provocatória faceta de não gostarmos do que vai ao sabor do erro.
Quase sempre, apenas exercícios de retórica. Doutras vezes, esboços de respostas aos dilemas que se colocam. Sempre com a cautela de perceber que as respostas se abeiram de utopias – como utopias, irrealizáveis. Sempre, sempre, uma inquietação que milita em nome de uma tempestade cerebral que não cessa de disparar os seus trovões. Ao menos estou vivo!
24.1.06
A fábula do “gato constipado”
O Procurador-Geral da República está sob ataque cerrado. Movido pelos boys socialistas, que não lhe perdoam a suposta perseguição judicial a um dos seus no processo Casa Pia. Alguns falam de assassinato político: do rapazinho em causa e do anterior líder do partido, que terá caído em combate, incapaz de suportar o troar das baionetas da Procuradoria. Fica-lhes bem a solidariedade com um dos seus. Uma lição de solidariedade, um esteio da sua “ideologia”, tão mais necessária quando mergulhámos numa deriva individualista que nos afasta dos deveres solidários. Já não ficam bem no retrato ao misturarem política com justiça, passando lixívia num legado da revolução francesa (que tantas vezes invocam como fonte de inspiração): a separação de poderes.
Não interessam os meandros da investigação que incriminou o boy socialista. Tão pouco saber se houve perseguição política à maralha socialista. Suspeito que é a velha teoria da conspiração a respingar em voz alta. Uma forma de arregimentar fidelidades partidárias e trazer mais eleitorado para as franjas do PS. Ou não fôssemos atreitos a estar ao lado dos que são alvo de perseguições “ignóbeis”. Um derradeiro comentário: custa-me a acreditar que haja tanta incúria nos responsáveis pela investigação criminal. Andará a justiça pelas ruas da amargura, decerto. Se as acusações da escumalha socialista baterem certo, é a justiça que bateu fundo, bem fundo.
O que me interessa é a perseguição ad hominem a Souto de Moura. Vale tudo. Até troçar das características físicas do Procurador-Geral. Foi Eduardo Prado Coelho que tirou da cartola o cognome que delicia a horda socialista: Souto de Moura é o “gato constipado”. Não basta denunciar a inépcia do Procurador-Geral, a ousadia de “perseguir” um boy socialista. O Procurador-Geral devia saber que há políticos que estão acima de qualquer suspeita. Meter-se com a classe política é uma deriva intolerável da justiça. Para reforçar o ataque pessoal, depreciam-se os atributos físicos de Souto de Moura. É a machadada final. A imagem de uma personagem que junta a incompetência para o cargo com os risíveis atributos físicos. Como se as duas coisas andassem de mão dada.
Os mesmos que se ofenderam quando o patético presidente da juventude centrista teve a falta de inteligência de zombar da deficiência física de Sousa Franco, mostram sinais de memória curta e procedem da mesma forma quando chamam “gato constipado” a Souto de Moura. A coerência em todo o seu esplendor. O pensamento enviesado, que proíbe aos outros aquilo que eles fazem quando lhes convém. Quando o juízo devia ser uniforme. Tinham razão quando se indignaram com a canalhice do imberbe centrista. Deviam apelar à memória para não fazerem o mesmo quando a chinela lhes descaiu para a brejeirice de apoucar as características físicas de um adversário de estimação.
Se não bastasse a chacota sobre Souto de Moura, a coisa fica enigmática quando o cognome é dissecado. “Gato constipado”. O que há de mal num gato constipado, para além da maleita que afecta o bichano? Quando nos cruzamos na rua com um gato vadio que está constipado, acaso nos rimos dele? Ficamos a olhar para o gato constipado com ar de gozo, escarnecendo do remeloso animal que não pára de espirrar? Podem-me dizer que Prado Coelho tirou da sua fértil e impenetrável imaginação uma metáfora para apoucar Souto de Moura. Gato constipado, como podia ter sido mosca amestrada, furão rezingão, doninha venenosa. Uma metáfora tem a linguagem simbólica que vai além da estreiteza de uma interpretação literal. Ainda assim, não consigo olhar para Souto de Moura e ver um gato constipado. Poderei ver outras coisas, mas não um gato constipado.
E, já agora, Prado Coelho alguma vez se terá visto ao espelho para julgar a falta de atributos físicos alheios? Cá por mim, a vista não fica afectada pela poluição visual quando me cruzo na rua com gatos constipados. O mesmo não poderei dizer de figurinhas ridículas como a de Prado Coelho e certos socialistas que jamais se terão encarado de frente ao espelho para fustigarem Souto de Moura da forma tão abjecta.
23.1.06
Decadência (ou os mitos também se abatem)
Fim da linha. Há homens providenciais que se extinguem ainda antes do decesso. Figuras que se fizeram emblemáticas, cultoras de uma superioridade que fez dos outros gentios vassalos. Um cocktail de cultura democrática e tolerância, mas nada mais do que truques de retórica. Um longo historial de maquinações, de intolerância destilada em doses generosas para os que ousavam dissidir. Um constante achincalhamento dos adversários, acusados do crime de lesa-majestade de lhe surgirem pela frente como adversários. Ainda assim, o paladino da democracia. Vergado à humilhante derrota, pela democracia que tanto enaltece.
Tempo de epitáfios. Involuntariamente, os que sempre o coroaram num estatuto sobre-humano farão o seu epitáfio. Na contrariedade da derrota, começarão a disparar em todas as direcções. Para aquietar consciências. E para que o sumo patriarca durma o sono dos justos, ciente que cumpriu história e teve coragem de avançar para a derrota que levita a sua carreira política para a terra das lápides.
Foi emproado mito, personificação de uma providencial aura que dele fazia um acima dos demais. Um timoneiro, sempre com uma corte bem comportada a fazer de pajens, num nunca escondido paradoxo de querer ser rei de uma república. Dos anais, a versão oficial: a ele se deve a democracia, ele que deu o peito contra os totalitarismos de extrema-esquerda que ameaçavam suceder-se à ditadura deposta. Somos educados nas verdades que convêm. Nem hesitamos em as absorver, como se fossem verdades inquestionáveis. E contudo, não o são.
Aprendemos com a história a vangloriar personagens como se elas fossem arquitectas únicas dos feitos. Esquecendo a mole humana invisível, mas determinante, a trave mestra das proezas. O mesmo com a consolidação da democracia. Não é a ele que me considero devedor da liberdade que tenho. Não é ele o penhor das nossas liberdades. Não foi ele que afastou os ventos de uma ditadura comunista. Foram os eleitores que o escolheram, através dele dizendo não ao totalitarismo orquestrado por comunistas e militares sedentos de protagonismo.
O cadáver político ainda está quente. As cerimónias fúnebres terão lugar nos dias que se seguem, com manifestações de pesar, a convocação da memória para o derradeiro tributo ao suposto “pai da democracia”. Não irão faltar engenhosas teorias que desprezam o povo eleitor, incapaz de perceber a superioridade da candidatura que se estatelou na derrota. O intelectualmente indigente povo será acusado de não fazer justiça a quem tanto deu de si pelas liberdades. Como se isso bastasse para caucionar a vitória de uma candidatura. Como se o passado fosse o fiel da balança onde se pesa o tempo que há-de vir.
Sinais de um processo de crescimento. A emancipação de amarras que foram sendo tecidas pela oligarquia dominante. Aplaudidos os que não se deixaram quebrar pelo ferrolho da disciplina imposta pelos seus pares. Uma figura humana deificada, nos seus pés-de-barro, perde a aura divina e morre aos pés frios de um povo cansado de viver agrilhoado ao tempo que passou. Desafortunado destino de uma carreira terminada com a suprema humilhação de uma derrota sem mácula. Para uns restarão as memórias do animal político que tantas vitórias granjeou. Ou o gosto sublime de resguardar as imagens de um homem despido das seus vestes divinas, com os pés já despidos do barro feito em pedaços. Um cadáver político, enfim!
Ocorre-me dizer, a concluir, que não devia ter escrito este texto. Diz o povo que não é de bom-tom “bater em mortos” – tarefa que aqui se cumpriu. Dirão alguns que é sinal de desrespeito por quem o merece, mau grado a derrota devastadora. Contra as compungidas almas, direi que são os mistérios da antipatia pessoal por alguém que pairou tempo demais como condutor dos nossos destinos. Se hoje somos o que somos, se tantas lamúrias levitam pela crise de onde não conseguimos escapar, a ele muito devemos. E ao que o derrotou e que foi coroado. Sinal de uma tendência irreprimível para premiar os medíocres.
20.1.06
Pode um liberal votar Cavaco?
Ponto de ordem: longe de mim questionar a liberdade de voto de quem quer que seja. É um acto de consciência; nas profundezas da consciência há o recato de não entrar. Duvido que seja um exercício de pura liberdade para as ovelhas bem mandadas que engrossam o imenso rebanho da partidarite nacional, ou o exército de centenas de milhar de funcionários públicos com fidelidades caninas aos partidos que os colocaram no posto de trabalho.
Não querendo beliscar a liberdade de escolha de ninguém, não posso evitar a perplexidade de ver tantos liberais a fazerem figas para que Cavaco vença. Outra explicação, para moldar o contexto: entre a brigada do reumático que se candidata à sinecura, todos estão longe de se aproximarem das minhas simpatias (pessoais e ideológicas). A distância é ainda maior em relação aos cinco candidatos das esquerdas que são canibais uns dos outros. O que não significa que escolha por exclusão de partes. Não é por não me rever em nenhum dos cinco candidatos das esquerdas que sou votante natural do professor de Boliqueime.
Volto à interrogação: pode um liberal votar em Cavaco, quando entre um liberal e o candidato há um imenso oceano de divergências? A resposta é linear: pode. Como um liberal dos sete costados pode escolher Soares, por mais contra-natura que a escolha pareça. (Um dirigente do partido de Manuel Monteiro, professor universitário no Porto, surpreendeu ontem com artigo no Primeiro de Janeiro em hossanas ao vetusto candidato do PS.) A questão tem que ser reformulada: deve um liberal votar Cavaco? É uma diferença abissal: entre o pode e o deve, a diferença entre uma liberalidade e um imperativo. No último caso, tenho dúvidas que um liberal deva escolher Cavaco sem prejudicar a coerência do que defende.
O que me intriga é saber que estes liberais se afadigam por mostrar a superioridade intelectual de teorias que apelam ao emagrecimento do Estado e depois, por magia ou por artes de conveniência momentânea, põem as ideias em banho-maria. É o que se passa quando se alistam entre os apoiantes de Cavaco. Que sejam ingénuos ao ponto de caírem na ratoeira dos apóstolos das esquerdas, que colocam em Cavaco o rótulo de direita, é um mistério insondável que os apouca. Vão no engodo e colocam-se ao lado de alguém que é erradamente rotulado daquilo em que eles, liberais, se revêem.
O apelo da memória é profiláctico. Cavaco tem um registo enquanto primeiro-ministro. Talvez mais importantes sejam os episódios de intervenção cívica, os artigos de opinião em jornais, as conferências principescamente pagas em que difundiu ideias, o magistério universitário. É daí que vem um acervo de ideias que faria corar de vergonha os liberais. Esses, os mesmos que o apoiam. Cavaco não mudou. Foram os liberais, que por momentos se esqueceram do que andaram a defender até à campanha eleitoral.
Compreendo-os, em parte. O discurso das esquerdas tem sido o de dramatizar as eleições. Como se elas fossem importantes, quando o não são pelo esvaziamento do cargo – pouco mais do que simbólico. É a tendência reiterada de um povo que dá atenção ao pormenor e passa ao lado do essencial. Percebo que haja um impulso de apoiar o homem de Boliqueime quando uma matilha passa os dias num exercício colectivo de diabolização. (A matilha não percebe que o povo português mostra comiseração em relação aos coitadinhos – e as esquerdas fazem de Cavaco um coitado, o melhor trunfo que lhe podiam oferecer.)
Com tanto disparate que anda no ar, com a imagem de demónio associada a Cavaco, não fosse a minha repulsa congénita pelo homem de Boliqueime e lá estaria, no domingo, a votar nele. Também percebo os liberais que se colocam ao lado de Cavaco: porque as esquerdas, do alto das suas verdades incontestáveis, acham que devem continuar a ter o monopólio do cargo. Por entre o chorrilho de dislates, já houve quem falasse em golpe de Estado constitucional caso Cavaco seja eleito. Fica a sugestão: anulem-se as eleições se ele ganhar!
Compreendo estas motivações dos liberais que votam Cavaco. Contudo, sou incapaz de imitar o comportamento. Primeiro, porque esse é o móbil de tantos esquerdistas histéricos que se arregimentam com todas as armas legítimas e ilegítimas para impedir a ascensão de Cavaco a um trono que consideram reservado a um dos seus. Motivam-se pela negativa, não por algo construtivo. Segundo, porque Cavaco é de esquerda, a antítese de um liberal. Na minha teimosia, recuso-me a escolher um candidato que seja o mal menor.
19.1.06
O dançarino desengonçado
Vejo um cartaz anunciando um qualquer concurso de dança, estilo danças de salão, como se fossem os “Alunos Apolo” do Porto. Daqueles certames onde os pares se aperaltam em fatiotas de cerimónia e ensaiam passos de dança harmoniosos. Ao sabor de músicas de antanho, que continuam a servir de suporte aos passos compassados da parelha. Manifestações que não colhem a minha simpatia. Coisas da estética, com padrões orientados para outros diapasões.
A dança é coisa estranha para mim. Sejam as danças que se harmonizam nos passos bem estudados, com o fino recorte que só o muito treino habilita; seja a dança transformada em arte, em coreografias ousadas que encantam pela densidade; ou a dança livre, os passos soltos e desordenados que corpos libertados professam ao sabor de música que se põe a jeito, em discotecas. Sempre foi um corpo estranho, a dança, para o meu corpo, estranho à dança.
Via, com inveja, como outras pessoas se libertavam quando sons convidativos ecoavam. Como jorrava uma imensa energia, transbordando a alegria de abanar a cabeça e movimentar pernas e braços com desorganização. Eu não conseguia sentir o mesmo. Quando ensaiava a dança colectiva, sentia-me sempre desengonçado, como se o corpo se desarticulasse em movimentos absurdos. Se as pessoas que gostam de dançar se sentem libertadas pela dança, para mim a dança era uma prisão pelo desconforto que trazia.
Será preconceito pessoal – o de sentir que o dançarino recalcitrante que pulava a custo para uns pálidos saltos de dança era desajeitado na performance. Eram tempos em que cuidava de evitar que os outros zombassem de tristes figuras que acaso fizesse. E como se dava o caso de ajuizar que pela dança tristes figuras fazia, tinha o pudor de evitar o colectivo abanar de cabeça nos tempos em que era mais assídua a frequência de locais de diversão nocturna.
É com pena que o digo, por ser tão grande o gosto pela música (pela música que gosto, bem entendido). Ter passado ao lado de uma educação musical é uma frustração pessoal. Gostava de perceber mais de música, para compreender melhor o que escuto. O gosto pela música não se expressava num correlativo gosto pela dança (naqueles géneros musicais que se prestam ao ondulante movimento dos corpos a acompanhar a melodia dançante). Reprimia a agradável sensação que a música causava ao penetrar no sistema auditivo: as ondas de energia, que impeliam o corpo a uma movimentação conforme com os sons escutados, não deixavam passar senão um ululante serpentear do corpo que era mais imaginado do que real. Era daqueles que se remetia a um canto, copo numa mão e a outra no bolso das calças, batendo o pé e deslizando palidamente a cabeça de um lado para o outro. Invejando os frenéticos dançarinos que mostravam todo o seu bem-estar com a energia transbordante da dança descomprometida.
As coisas mudam, como muda o tempo em que vivemos. A paternidade é pródiga em transformações. Hoje dou comigo em coreografias sem sentido com a minha filha, que ensaia movimentos de dança sempre que do computador ecoam as músicas mais ou menos esquisitas que o pai gosta de ouvir. A rapariga terá o jeito da mãe para a dança e a sensibilidade auditiva do pai para a música (perdoe-se-me a imodéstia). Tanto abana a cabeça e deixa deslizar o corpo com as patéticas músicas fabricadas para petiz gostar (a dita "música infantil", que reserva um tratamento de atrasados mentais às criancinhas), como com os sons alternativos que o pai põe no éter.
Em compita com a filha, o pai dança como nunca ousou dançar. Continua a ser um desengonçado dançarino, que não fiquem dúvidas. Que interessa, se a filha se entusiasma com os trejeitos de dançarino que o pai se esforça por praticar? Eis-me chegado aos trinta e muitos, dançarino como nunca outrora fui. Metamorfoses necessárias; um elixir da vida, a essência da paternidade.
18.1.06
As tunas
Ainda não é tempo delas. São um epifemónemo sazonal. Gotejam com intensidade no início do ano lectivo, com a socialização forçada dos caloiros. O auge, quando os estudantes atingem o zénite de um ano inteiro passado em festanças – a semana da queima das fitas. São uma casta de privilegiados entre os estudantes. Um escol, confraria onde a entrada só é franqueada aos que porfiam pelas inatas qualidades de instrumentistas, ou aos que se distinguem pela apetência apalhaçada.
Quando actuam, em momentos de arrebatamento colectivo, é todo um fervor universitário que vem ao de cima. Um sinal de pertença, um orgulho em serem estudantes universitários – como se as tunas fossem o sinal obrigatório de identificação. Ainda que tantas vezes o que os tunos (étimo por mim inventado para os membros das tunas) fazem seja tudo menos estudar. Pavoneiam a sua pertença à tuna, como se isso fosse o apogeu da carreira de um estudante. Desdenham dos que passam ao lado do fenómeno das tunas. Não hesitam em remeter estas ovelhas tresmalhadas ao ostracismo, párias que não se identificam com o que deviam ser.
Os tunos são espécimes mais curiosas do que as suas congéneres femininas. Noto que nelas a pertença à tuna é mais genuína, mais artística – se é que se pode falar em arte quando as tunas são mencionadas (concedo: o problema pode estar em mim, que sou tão esquisito no que toca a gostos musicais). Os tunos fazem parte da tuna como sinal garboso de masculinidade, diria mesmo prova de virilidade. Ser tuno é ter o tapete estendido para levar donzelas desvalidas no engodo. Daquelas que se deixam inebriar por meia dúzia de patacoadas de mentes ocas. Quando acordam, reparam na vacuidade perene que anda de mão dada com os tunos marialvas que coleccionam damas como semeiam na sua batina dísticos das cidades visitadas, quais medalhas de generais vitoriosos em tantas frentes de batalha.
Os tunos representam uma excrescência do estudante universitário: aqueles que se vão demorando nos bancos da universidade, porque são tantas actividades “extra-curriculares” em que embarcam que não chegam a ter tempo para estudar. Eternizam-se em matrículas sucessivas. Entronizam-se na condição de veteranos, de que se orgulham como se fosse a máxima aspiração de qualquer estudante universitário: arrastar-se na universidade por tempo infindável. Não contentes com o ridículo de que não dão conta, os veteranos exigem respeito de todos os outros, como se fossem suseranos. Talvez pela bazófia do “saber acumulado” (mas, que saber?). Tenho para mim que estes garbosos veteranos são o microcosmo dos parasitas sociais, como o são, em versão macro, os sindicalistas.
Para eles, ser estudante universitário é o supremo projecto de uma vida inteira. Chegam à universidade e o tempo pára. Gostava de saber o que é feito de tantos veteranos que andaram anos a fio a vegetar nas universidades; gostava de saber o que é feito das suas vidas, depois de se convencerem que tinha chegado momento de pôr fim à veterana condição. Terão encontrado forças para se reconverterem à vida das pessoas normais? Quantos levarão uma vida comezinha, frustrada, imersa na nostalgia do “brilhante” passado dos dez, quinze anos demorados a tirar um curso universitário?
Já o disse, os tunos consideram-se um escol. Os primus inter pares, como se sabe, acham-se no direito de usufruir de regalias vedadas à pessoa comum. Os tunos, investidos nos privilégios que se auto-concedem, não fogem à regra. Laureiam a pevide ano fora, em festanças sem fim, actuações pelos caminhos de Portugal e além-fronteiras (nessas convenções masturbatórias colectivas que são os “festivais de tunas”) e depois reclamam direitos especiais.
Em tempos, fui abordado por um tuno que, pose cabotina e ar de superioridade a rodos, exigia uma época “para-além-de-especial” para fazer um exame a que iria faltar. Ia em representação da tuna (e, considerava ele, da universidade) para o Brasil, o que o obrigava a faltar à última chamada de um exame. Perguntei-lhe porque não se acautelou, porque não foi a uma das anteriores chamadas. Fez de conta que não percebeu e insistiu na exigência. Desejei-lhe boa viagem e que teria todo o gosto em avaliá-lo no ano seguinte.
17.1.06
O império das mulheres
De acordo com um estudo, 80% das decisões são tomadas por mulheres. Podem estar marginalizadas da política – e talvez por isso ela seja tão pálida e desinteressante – mas são as amazonas do mundo contemporâneo. Este era o anúncio de uma reportagem de fundo, a passar mais tarde num noticiário televisivo. Como estou num recolhimento de noticiários até que passem as eleições, não pude ser testemunha viva da descoberta que veio revolucionar os costumes. Afinal, elas mandam!
O estudo viria – e agora estou a adivinhar – confirmar que este é um mundo injusto. Como, em tantas coisas na vida, quantidade não é qualidade. Pois se é verdade que 80% das decisões do dia-a-dia são tomadas por mulheres, isto não encontra espelho na qualidade das decisões que influenciam as decisões tomadas por elas. As decisões que condicionam são um império masculino. Decisões políticas, decisões das empresas, quem as toma? Homens, na sua esmagadora maioria. Eis a injustiça: elas ficam com as decisões corriqueiras, com as decisões desvalorizadas pelos homens. Eles reservam para si as grandes decisões. Só aos poucos as mulheres vão entrando nesta coutada reservada aos exemplares masculinos.
Há mensagens enganadoras. Quem ouvisse o anúncio da reportagem seria levado a pensar que a desigualdade de sexos invertera o sentido. Os homens seriam os marginalizados, submetidos a uma ditadura impiedosa do mulherio. Quando se descodifica o sentido das relações entre os dois sexos, a ingrata surpresa – para as feministas exacerbadas – que os homens continuam a dominar. Os números conferem um manto ilusório. Que interessam os 80% de império feminino, se são os restantes 20% que contam? A reportagem seria um falso tónico para aquietar consciências mal amanhadas pela ancestral desigualdade entre homens e mulheres. Ou isso, ou uma máscula lança espetada nas tentativas feministas de forçar a igualdade de sexos.
Não é a primeira vez que escrevo contra as palavras desabridas das feministas de serviço, sempre prontas a disparar contra a histórica desigualdade que as tem remetido a um injusto papel. Não sou daqueles que dá para o peditório da tensão sexista. É uma falsa questão que alimenta uma discussão estéril. Fico perplexo com os sedimentos de pensamento politicamente correcto que aceitam uma desigualdade para corrigir a desigualdade do passado. Chama-se a isto “discriminação positiva”: como as mulheres têm sido atropeladas pela marcha inexorável de homenzarrões insensíveis, eis que é chegado o momento da vingança das mulheres, emproadas em amazonas dos tempos modernos. Os homens de hoje têm que se resignar, pagando pelos erros dos antepassados. Somos nós, convocados a pagar essa factura. E a sofrer na carne o preço de uma nova desigualdade.
O pensamento politicamente correcto tem várias manifestações. As mais absurdas são as quotas impostas, por decreto, como se a igualdade pudesse ser imposta à força. Na política vão-se impondo essas quotas: não interessa saber se, com a quota mínima reservada a mulheres, se excluem pessoas que são melhores que as mulheres que têm o beneplácito da quota. Ontem li algures que foram publicados anúncios para os jovens candidatos a mancebos no exército. Alertam para o dever de recenseamento militar. Paralelamente, outro anúncio faz chegar a informação às meninas que queiram engrossar as fileiras do exército. Outro exemplo: a federação automóvel mudou as regras relativas aos comissários técnicos para os ralis. Uma das inovações é que um dos comissários tem que ser uma mulher – sem que haja qualquer explicação para reservar o lugar para um espécime do sexo feminino.
A fobia anti-sexista está mais arreigada Europa fora. Em trabalhos académicos, por exemplo, os autores têm um cuidado extremo para evitar referências que reforcem a desigualdade. Sempre que fornecem exemplos que impliquem o uso de sujeitos, não aplicam o masculino indiferenciado – como é norma na língua portuguesa, pois o “ele” ou “lhe” valem para os dois sexos. Lá por fora, existe o cuidado de escrever “him/her”, ou “he/she” quando se utilizam pessoas como sujeitos de exemplos que explicam uma ideia. Para que tanto eles como elas se revejam, evitando estéreis mas complicadas discriminações.
Um dia destes, caminhamos para a indiferenciação de sexos. Que a obra demore umas gerações. Sendo contra a espúria desigualdade que condena as mulheres a um papel subalterno, não compreendo a manobra que passa um pano sobre algo que é desigual – os sexos. Sem que isto possa ser entendido como uma caução aos atropelos do passado. Condenáveis, são também incorrigíveis. Senão a desigualdade há-de se inverter e os novos excluídos passam a ser os que tiveram o azar de nascer com o sexo masculino. Uma responsabilidade inter-geracional?
16.1.06
Um “nevão”, o colapso instalado
Bragança, depois de um “nevão” – e faz todo o sentido grafar a palavra, pela queda de neve que tingiu de branco a paisagem. Ora um nevão não é isso. Um nevão acontece nos países onde a neve cai com mais abundância e assiduidade. Um nevão enche as ruas com um espesso manto, de trinta, quarenta centímetros. Uma capa de meia dúzia de centímetros não é um nevão. A paisagem fica coberta com um manto de alvura, mas não basta para se empregar a palavra nevão.
No nordeste transmontano há alguma probabilidade de queda de neve. Se as estatísticas fossem lidas com cuidado, veríamos que a terra fria transmontana não é lugar onde a neve seja visita frequente. Uns escassos dias por ano. Quando não se passam anos a fio sem que haja notícia dos brancos flocos que pousam, leves, nas terras do nordeste. Quando a neve começa a cair e as estradas ficam com uma pálida camada de neve, está instalado o caos. Pela inépcia dos condutores e pela falta de diligência das autoridades.
As pessoas que conduzem deixam-se tomar pelo pânico, como se a neve fresca acumulada na estrada sinalize paragem obrigatória. Não temos a experiência dos automobilistas onde a neve é usual. Estão acostumados a conduzir com estradas cobertas de neve, com prudência, sem se atemorizarem com o piso escorregadio. Por cá, neve no asfalto é sinónimo de impossibilidade. Muitos abrandam para além do necessário. Outros estancam em plena via, temendo que o estacionamento na berma atasque os veículos sem hipótese de remoção. Desconhecem que a neve fresca não é a armadilha que supõem. Com cautela, os automóveis circulam sem dificuldade em estradas onde a neve acabou de pousar. Mas também há um punhado que se enche de brios nórdicos e circula como se o piso estivesse seco. Acabam espetados contra valetas, surpreendidos com a falta de prudência. O de sempre: somos do oito ou do oitenta.
A paralisação do nordeste transmontano quando a neve tomba durante umas horas deixa-me atónito. Ontem voltou a acontecer. O governador civil queixou-se que só tinha um limpa-neve disponível e que o distrito de Bragança é dos maiores do país. Contra a segunda queixa, nada a fazer. A geografia não se refaz quando ela mostra os seus inconvenientes. Se existe a possibilidade das terras de Trás-os-Montes se encherem de neve, não se percebe porque só existe um limpa-neve operacional. Como ele não tem o dom da omnipresença, não há que culpar a extensa geografia do distrito para sanar a inépcia de quem toma decisões. Depois falam-nos da infalível ciência da planificação, como se esta gente tivesse especiais dotes prospectivos, que não tem.
Lembro-me, já lá vão dez anos, de ter visitado Bragança durante um “nevão”. Foi difícil lá chegar, mais pelo trânsito a passo de caracol e pelos disparatados candidatos a pilotos de ralis entretanto capotados na berma do IP4. Bragança parecia uma cidade fantasma. Contavam-se pelos dedos das mãos os carros que circulavam pelas ruas. No dia seguinte fui até Rio de Onor, uma das aldeias que conserva tradições comunitárias, estendida entre Portugal e Espanha, sem que a fronteira consiga separar o que só a artificial divisão entre os países coloca no mapa. Numa estrada com pouco movimento, fui andando entre os trilhos sulcados por um tractor. A frente do carro varria a neve, como se fosse um limpa-neve. Não arrisquei a inversão de marcha. A neve acumulada era muita e começava a gelar. Temia que, ao fazer inversão de marcha, não conseguisse sair do sítio. Restava-me prosseguir até Rio de Onor, para sair por Espanha e tentar reentrar por outra fronteira.
Os últimos três quilómetros foram feitos sem a ajuda dos trilhos abertos pelo tractor. A estrada estava coberta de neve. Na descida para a aldeia, com cuidado e algumas escorregadelas excitantes, fiquei com a certeza que só conseguia regressar a Bragança entrando em Espanha e voltando por outra fronteira nas proximidades. Ou com ajuda de um tractor que me rebocasse até ao planalto, onde a neve ficava mais fina. Parei em Rio de Onor, mesmo junto à fronteira. Do lado espanhol a estrada estava desbloqueada. O limpa-neve já lá tinha passado, o asfalto estava à vista. Perguntei a um habitante se valia a pena sair e tentar reentrar por outra fronteira (Portelo ou Quintanilha). Disse-me que era tarefa inútil. Só ia queimar gasolina, porque as estradas espanholas até àquelas fronteiras estavam desimpedidas. O problema era do outro lado da fronteira: o limpa-neve ainda não tinha lá chegado.
A neve caiu com a mesma intensidade dos dois lados da fronteira. Ao ver como estavam as estradas do lado espanhol e do lado português, diria que um milagre atmosférico fez do cantinho colocado no Parque de Montesinho um estanho microclima. Desenganei-me. O que estava mal era a falta de competência de quem (não) planeou os meios para varrer a neve das estradas. À vista desarmada, a desigualdade de capacidade de previsão dos espanhóis e dos portugueses.
E depois há quem se abespinhe quando iberistas exclamados equacionam a hipótese de uma grande ibéria, ou da entrega, em saldo, das lusas terras aos espanhóis.
13.1.06
A metáfora do pescador
Ia o comboio em demanda do sul. Cruzava-se com o Mondego, chancela da artificial barreira entre norte e sul. Lá baixo, junto a um canal, um velho debruçava-se sobre a cana de pesca. Envergava um oleado esverdeado para se proteger contra o frio húmido que as águas do Mondego regurgitam por estes dias que afagam um ano que acabou de nascer.
Porventura um reformado, sem nada para fazer a não ser a pesca no tempo que passa enquanto se encurta o tempo até à fatal despedida final. O velho, a pôr-se a caminho no seu carro apodrecido, embrenhado em pensamentos distantes, ora vagos, ora cultores de uma nostalgia que resgata as memórias gloriosas do tempo em que vitalidade gritava de pulmões cheios. Agora, limita-se a esperar. Com o olhar perdido no horizonte, à espera que um inditoso peixe morda o anzol, à espera que os dias corram devagar, uns após os outros.
Apascenta a sua vida que, dir-se-ia, já foi vivida. Horas infindáveis na margem do rio, segurando a cana enquanto se demora o sacrifício de mais um peixe. A indiferença contagia-se à cana de pesca, como se fosse imperativo trazer os peixes fluviais da sua calmaria, rio abaixo rio acima, para a ira invisível que os olhos do velho não deixam transparecer. São eles, os peixes, as vítimas de um velho que não consegue discernir o horizonte. O dele não vai além das águas lamacentas que vão rio fora, em direcção ao mar.
Quisera o acaso que nesse momento passasse os olhos por um livro que divagava ciência política. Quisera o acaso que o sol que entrava pelo vidro baço do comboio iluminasse palavras escritas que mereciam ser despojadas do livro, fazendo companhia ao velho no seu pastoreio malsão da fauna fluvial. No livro, mais uma utopia descerrada, como tantas que vou lendo. Fogueiras onde se consomem profícuas investigações de eméritos investigadores, perdidos em lucubrações infindáveis, teimando em ver o mundo como ele não é – nem menos como eles o projectam na sua finita sabedoria. No livro, teoria a rodos, uma apologia da “democracia participativa”. Ênfase nos predicados de um sistema onde todos os cidadãos não se demitem de uma responsabilidade participativa, onde o debate é aberto e franco, sem truques de retórica nem manobras para achincalhar adversários que custam a dobrar.
As teorias são belas, sobretudo quando estão tão longe de serem sacralizadas. Lia aquelas palavras e lembrava-me do pescador: mais um dia passado a ver as águas do Mondego na sua correria imparável para o mar; no rescaldo do dia, esfregando as mãos no vácuo contentamento da contabilidade da pescaria. Deitei-me a adivinhar: sobre o interesse do velho pescador num sistema que lhe dá a palavra, que o educa para a convicção que pelo debate ele dá o seu contributo para resolver problemas. Continuo no profético exercício de carácter. Vendo o velho pescador olhar para o lado, cuspindo na oferta participativa que lhe faziam os arquitectos de uma sociedade que tem que ser mais justa e perfeita – e porque serão sociólogos e politólogos tão teimosos na busca do zénite?
Na sua fátua vida de casa para a margem do rio e de regresso a casa, um velho abúlico desinteressado de votações e eleições, de polémicas estéreis entre pomposos políticos, ou de prédicas de lentes que tentam sair do casulo universitário. Será um apócrifo visionário, que sente o fio de vida ficar mais delgado com o tempo que se esgota. Será apenas incultura genética. Será o velho pescador a imagem de tantos velhos e não tão velhos pescadores, os ponteiros do relógio na sua marcha incessante, e tanta coisa importante que se passa lá fora, no mundo, que não consegue atravessar o inexpugnável alvéolo que os velhos pescadores erguem detrás de uma cana de pesca.
Ao velho pescador interessa o percurso do fio de nylon que o liga à agua onde nadam as presas que nunca tardam. Podem-lhe oferecer um lauto jantar, feito de plateias onde discute com responsáveis e decisores, e outros actores tantos que aparecem. Prefere a dietética iguaria que pesca, venha ela conspurcada pelas águas tingidas por esgotos sem tratamento que desaguam no leito do rio.
12.1.06
O ambiente e a psicologia
As cintilantes personagens que vertem lágrimas por cada atentado ao meio ambiente não percebem a incongruência em que se metem quando acusam os países pobres de serem fautores dos mais graves danos ao ambiente. Estes ecologistas de pacotilha, sem o perceberem, fazem o jogo dos países ricos quando acusam os países pobres de estarem na idade média da preservação do meio ambiente. É neste contexto que se discutem as externalidades ambientais psicológicas.
Por estranho que pareça, há uma ligação estreita entre ambiente e psicologia. É o que acontece quando os países ricos congeminam uma hipócrita estratégia de erguer o dedo contra atentados ambientais perpetrados por países pobres. Alguns exemplos: a fabricação de cosméticos que se serve de experimentações cruéis em animais que permanecem em cativeiro; a produção de medicamentos inoculados em cobaias, para se perceberem os seus efeitos antes de serem lançados no mercado. O avanço tecnológico conhecido nos países ricos dispensa crueldades em animais. Os países pobres vivem à míngua de capital; não têm condições para investir nas tecnologias mais avançadas. Persistem nas condenáveis práticas que sacrificam animais inocentes em nome do bem-estar humano.
As autoridades dos países ricos apelam à consciência dos consumidores. Orquestram campanhas que funcionam como coacção psicológica junto dos consumidores. A intenção é chamar a atenção para as crueldades impostas a animais, enfatizando o anacrónico da situação em pleno século XXI, agora que a ecologia conquistou primazia junto dos corações. As autoridades dos países ricos são acompanhadas pelos arautos do ambientalismo, sempre na linha da frente quando se trata de defender a preservação do meio ambiente.
Nos países ricos, por detrás da argumentação ambiental – e da persuasão psicológica que penetra, indelével, no subconsciente de desatentos cidadãos – encontra-se o receio de que a concorrência acrescida possa destronar as empresas de países ricos do protagonismo a que estão habituadas. A entrada de empresas de países pobres, que alicerçam a sua competitividade na dispensa dos padrões ambientais mais rigorosos dos países ricos, é uma séria ameaça à hegemonia das empresas destes países. A perda de quotas de mercado convoca à reacção defensiva das autoridades dos países ricos. Uma reacção encapotada, escondida detrás da sensibilidade ambiental atormentada pela insensibilidade dos países pobres.
A hipocrisia dos países ricos é visível à vista desarmada. Primeiro, reagem não por estarem preocupados com os atentados ambientais, não por serem sensíveis aos direitos dos animais, não por manifestarem repulsa pela brutalidade exercida em criaturas indefesas. Aliás, os países ricos não podem aparecer como advogados de defesa dos animaizinhos: basta relembrar quem encabeça o comércio de peles dispendiosas que madames envaidecidas envergam para se protegerem dos rigores do frio invernal.
Segundo, a hipocrisia está também no tipo de reacção dos governos dos países ricos. Recusam-se a reagir frontalmente contra as vantagens adquiridas por empresas de países pobres à custa dos atropelos ambientais. Em vez disso, endossam a responsabilidade aos consumidores, habilmente instruídos a não comprarem os produtos vindos de países pobres que desrespeitem os standards ambientais modernos. Sem coragem para imporem uma reacção directa, que contrabalance as vantagens artificialmente conquistadas pelos países pobres, os governos dos países ricos ficam-se por meias medidas, convidando os seus consumidores a um embargo implícito aos produtos dos países pobres.
Terceiro: compreende-se a falta de coragem dos países ricos. Num passado não remoto, eles foram pródigos nas mesmas técnicas deploráveis que agora censuram. Não têm legitimidade para acusar os países pobres, porque a pedra lançada estilhaça-se nos seus próprios telhados. Daí que empurrem o ónus da reacção para o cidadão comum. Que é laboriosamente educado a ser uma pessoa responsável perante os crimes ambientais que se observem mundo fora. Com o cuidado de abafar os atentados ao meio ambiente que se continuam a cometer no próprio país, afastando as atenções para os desmandos além fronteiras.
Os amigos do ambiente, tantas vezes alistados nas fileiras dos detractores da globalização (e, portanto, denunciam os países ricos e o capitalismo que servem), não percebem que a cruzada ambientalista os coloca como aliados dos países ricos. E não percebem que os países ricos estão desprovidos de razão quando incutem nos cidadãos a responsabilidade de não comprarem produtos que dependem de métodos que sacrificam animais. No passado eles fartaram-se de fazer o mesmo. Se os países pobres fossem impedidos de produzir com estes “métodos ancestrais”, talvez deixassem de produzir e de gerar riqueza. Com uma consequência que não deve ser do agrado de ninguém: ficarem ainda mais pobres.
11.1.06
No reino do cinema militante: “O fiel jardineiro”
O cinema pode ser militante nas causas que o realizador defende. Como pode ser uma miríade de outras coisas: fantasmagórico, romântico, reconstituição histórica, ficção científica, ou uma vitrina de efeitos especiais, só para mencionar uma mão cheia de exemplos. Quando é militante, o cinema arrisca-se a dividir a audiência. Cativa os aplausos dos que se revêem na causa retratada no filme. Não leva ao arrebatamento os que visionam o filme sem se identificarem na militância.
Sabia ao que ia quando comprei bilhete para “O fiel jardineiro”. Tinha lido a sinopse: um diplomata britânico em serviço no Quénia perde a sua jovem mulher num acidente que levantou suspeitas. Mais tarde vem a saber que o acidente foi provocado por um emboscada em que a activista mulher e um médico de uma organização não governamental pagaram com a vida a ousadia de denunciarem uma grande empresa farmacêutica. Esta empresa ministrava um medicamento entre os nativos sem que estivesse segura dos efeitos secundários. Que entretanto se revelavam em falecimentos súbitos, passando a ideia de que a farmacêutica usava os quenianos desfavorecidos como cobaias. Pelo caminho, descobre-se a cumplicidade do governo britânico com a empresa farmacêutica. E as manobras para que as denúncias dos activistas fossem silenciadas.
O realizador Fernando Meirelles contribui para o peditório da grande teoria da conspiração que acusa o mundo de ser dominado por um punhado de grandes empresas multinacionais, sacrificando milhões e milhões de indefesos, preteridos no jogo de interesses. Como se as gigantescas empresas multinacionais estivessem irmanadas num complot, em nome do sacrossanto lucro, essa coisa terrífica que as leva a espezinhar vidas humanas sem qualquer misericórdia. O mito do capitalismo nefando, que mergulha as massas numa opressão sem fuga possível.
A retórica não é desconhecida. Faz parte da linguagem que dramatiza as tensões entre quem produz e quem consome, entre quem detém abundante riqueza e quem vive do outro lado – seja a burguesia remediada, sejam os milhões de pobres que penam para apenas sobreviver. Na diabolização das multinacionais que açambarcam o lucro na opressão de quem consome, Meirelles dá voz aos insatisfeitos deste mundo. O capitalismo é o mal supremo, a razão de todos os males que pousaram na face do planeta.
Esquecem-se os Meirelles que povoam o planeta que se o mundo fosse tão singelo como retratam as denúncias chegariam a bom porto: as massas revoltar-se-iam contra a ditadura do grande capital. Como se as grandes empresas fossem estúpidas ao ponto de não perceberem que uma estratégia autista, que atropela o ser humano em nome do prioritário lucro, é um tiro no pé. Como se as multinacionais não tivessem sofisticados departamentos de marketing e de comunicação que cuidam da sua imagem perante o grande público. Podemos acreditar na dicotomia (multinacionais que espezinham pessoas se elas se atravessarem na frente do tão desejado lucro)?
De regresso à narrativa do filme, impressionam as imagens de miséria quando as câmaras passeiam pelos bairros da periferia de Nairobi, onde vivem acantonadas as pessoas abandonadas pela sorte. São sofridas as imagens de uma tribo sudanesa, perdida no meio do imenso território, quando sofre um ataque de bandidos a cavalo. É sublime uma mensagem que o protagonista ensinou à sua mulher e que, mais tarde, toldado pela saudade, se esqueceu de pôr em prática: quando o coração apertado clamava pela ajuda a dois irmãos quenianos que empreendiam uma marcha de quarenta quilómetros até casa; ou quando o diplomata tentava resgatar uma criança sudanesa das mãos de um bando de assassinos, uma lição de vida na mensagem. Eles são milhões e a ajuda a um só nada resolve, a não ser apaziguar a consciência de quem ajuda. O problema há-de persistir para todos os outros milhões que os olhos não vêm para ajudar no momento.
Não percebi que “O fiel jardineiro” fosse inspirado numa história verdadeira. Pura arte de romancear, com a especulação que anda à solta quando o género é escolhido. Serei inocente, mas custa-me a acreditar que uma empresa que produz medicamentos se aventure numa campanha de medicação em massa sem ter a certeza de todos os efeitos do medicamento. Serei ingénuo, mas custa-me a crer que uma empresa considere que as vidas já de si desgraçadas dos excluídos em África valham menos do que uma vida humana algures.
Por entre as imagens pungentes que encerram o filme, saí com a imagem naïve de que a terrível história contada é isso mesmo, uma terrífica história que pinta de negro os impessoais detentores do capital, mas só uma história imaginada. Continuo a não acreditar que alguém, no seu juízo, desvalorize vidas humanas quando as elege para a condição de cobaias. Mas isto pode ser apenas a minha ingenuidade, contra as certezas inabaláveis de certas militâncias.
10.1.06
Caloteiros
O Banco de Portugal divulgou os dados estatísticos sobre os cheques carecas passados em 2005. Entre os cheques sem provisão assinados, cuja cifra não consigo lembrar, um número ficou na retina: o valor correspondente aos cheques carecas representou 2% do PIB nacional! Quando tanto se fala dos 6% de défice orçamental, de como este valor é astronómico para o Pacto de Estabilidade e Crescimento (não mais que 3% do PIB), o valor de cheques sem cobertura é assustador.
O estudo era omisso quanto à evolução recente da tendência caloteira dos cidadãos nacionais. Faltava saber se, com a passagem do tempo, o valor dos cheques carecas tem aumentado ou diminuído. Seria um dado interessante, até para o encaixar na crise – económica, mas sobretudo de valores – que atravessamos. Na ausência desses dados, fica apenas a percepção de que há muita gente que não hesita em assinar um cheque sabendo que a conta bancária não tem dinheiro para o cobrir. Dois por cento da riqueza gerada é muito dinheiro. Representa um duro golpe nas empresas e pessoas defraudadas pelos cheques sem provisão que receberam.
Se há surpresa é apenas no valor do somatório de cheques carecas. Quanto ao resto, apenas confirmações. Gente que não hesita em enganar o próximo. Vale muito o princípio de que temos que enganar o próximo senão somos nós os enganados – ou outros terão o ensejo de o enganar, conquistando a oportunidade de ouro que perdemos apenas porque um rebate de consciência nos levou a não defraudar o outro. Há muitos traços que preenchem a idiossincrasia nacional. Ruas pejadas de Chicos-espertos é um deles. O despudor é outro, de braço dado com o primeiro.
A cada um as dores de consciência. Por mim falo, incapaz de passar um cheque sabendo que a conta está despida de fundos para o cobrir. Não arrisco lições de moral, porque a moral é muito subjectiva, e porque não sou ninguém para as dar. Apenas quero afirmar a estranheza pela prática reiterada de quem assina cheques sabendo que eles vão voltar para trás, numa má notícia para a pessoa ou empresa a quem os cheques se destinavam. Pela parte que me toca, gosto de olhar para a cara que está do outro lado do espelho quando faço a barba. Sem ter que me esconder detrás de um imaginado biombo, por vergonha de ver a cara que se reflecte no espelho. Outros estarão habilitados a olhar de frente para o que os seus olhos vêm. Não se envergonham de espoliar quem recebe os seus cheques descobertos. Mais uma prova do princípio, tão divulgado pelo seu máximo inspirador (Mourinho), de que todos meios justificam os fins.
Tenho conhecidos que trabalham em bancos. Confidenciaram-me, em tempos, que anda por aí afamada gente, que aparece com assiduidade nas revistas do socialite, com o nome enlameado, registado a vermelho na base de dados do Banco de Portugal. Eles e elas, que se pavoneiam na escala gradativa da ascensão social e que ostentam uma parafernália de sinais exteriores de riqueza. As mesmas pessoas que saltam de banco em banco numa fuga para a frente, de cheques carecas em série. Depois, adivinha-se, há um bando de aspirantes a figurões emergentes da escala social que investem o que têm e sobretudo o que não têm para, em bicos de pés, entrarem no desejado Olimpo do resplandecente jet-set.
Há também muitos cheques sem provisão nas relações comerciais. Empresas que não pagam a fornecedores, quantas vezes condenando-os a uma vegetativa existência, quando estes fornecedores são pequenas empresas que dependem de pagamentos atempados. A fraude, muitas vezes, vem em cascata – uma empresa que não paga a outra, que por sua vez fica impossibilitada de pagar a uma terceira que lhe forneceu matéria-prima, e assim sucessivamente.
Antes referi como seria interessante observar a tendência recente no montante de cheques sem provisão, para indagar se temos crescido no grau de “caloteirice”. Outro dado seria ainda mais revelador: fazer uma comparação internacional. Para ver se a apetência para sermos caloteiros é inata aos genes lusitanos, ou se é mal espalhado por todo o lado, em mais uma exibição da globalização – de uma globalização para o mal, neste caso.
9.1.06
Paradoxos do desenvolvimento: esperança de vida decrescente
As estatísticas dizem que a esperança de vida nos países ricos está a diminuir. Por causa dos hábitos de vida associados ao desenvolvimento, às sociedades onde o bem-estar é caudaloso. Sedentarismo, maus hábitos alimentares, poluição atmosférica que empesta o ar nas grandes cidades – onde cada vez mais gente vive – os artificialismos que enxameiam os alimentos que ingerimos. São os sintomas da doença do desenvolvimento, causando uma trajectória descendente na esperança de vida.
Quando se compraram países ricos e países pobres, a esperança de vida é um dos critérios que faz a diferença. Nos países pobres as pessoas não vão além dos quarenta anos de vida, em média. Nos países ricos o limiar ultrapassa os setenta. O fenómeno traz implicações com sinais diferentes. Nos países pobres, a indignidade de uma vida não ultrapassar pouco mais do que quarenta anos. Pessoas que se despedem da vida ainda com a vivacidade que, em países ricos, aquela idade anima. A exibição de uma injustiça que nenhuma força divina consegue corrigir. Nos países ricos a esperança de vida encontra-se nos antípodas, causando o envelhecimento da sociedade, pela extensão da duração média da vida e pela diminuição do número de nascimentos. A imagem de contrastes de que este mundo é feito: lado a lado, convive o excesso com o défice de vida.
Arriscando algum cinismo, a inversão da tendência da esperança média de vida nos países ricos tem predicados: pode corrigir o envelhecimento da sociedade, salvando a segurança social da falência. Se as pessoas passam a morrer mais cedo, o dilema da pirâmide demográfica invertida não se coloca com tanta intensidade. A taxa de natalidade continua a ser reduzida – outro espelho da sociedade moderna, porque ter filhos é uma opção dispendiosa, que ultrapassa as recompensas intangíveis de ver nascer e crescer um filho. A doença da civilização avançada começa a levar as pessoas para o reino dos mortos em idades mais precoces. A sociedade não envelhece tanto. Quem sabe, um balão de oxigénio para a vegetativa segurança social, a boa nova para os defensores do modelo social europeu.
São as mortes necessárias para o equilíbrio da sociedade nos países ricos. Um estímulo para os que continuam a acreditar na bondade de generosos esquemas de segurança social. É o desenvolvimento desenfreado, com as inovações que trazem até nós mais bem-estar, que nos leva mais cedo da vida. É interessante observar histórias de longevidade contadas desde remotos lugares perdidos no interior. Histórias de homens e mulheres que franqueiam a barreira dos cem anos, mostrando uma vitalidade invejável. Ouvir com atenção as palavras dos anciãos, que testemunham hábitos de vida que são hoje entendidos como meio caminho andado para uma sepultura prematura.
Os anciãos contam que nunca tiveram uma vida regrada: beberam e comeram sem conta e medida, e aposto que acaso fizessem análises sanguíneas o colesterol e outras maleitas não habitavam neles. A diferença está na origem dos alimentos digeridos anos a fio. Agricultura biológica no seu esplendor – ainda antes do marketing ter inventado a agricultura biológica hodierna que, ao que consta, muitas vezes tem pouco de biológica. Vinhos sem tratamentos artificiais, legumes cultivados na ausência de pesticidas, carnes vindas de animais que não eram alimentados com rações fabricadas em laboratórios que desvirtuam as reses. Uma vida ao natural, com uma ajuda suplementar: pessoas rijas, carnes curtidas pelas adversidades da vida, corpos massacrados pelas lides da agricultura, no sol a sol que é o anátema do sedentarismo que campeia nas cidades modernas.
O desenvolvimento e a falácia do bem-estar semearam a ideia (errada) de que o conforto de hoje é a prioridade. Curtas vistas que desvalorizam a factura a pagar mais tarde, com o desprendimento da vida em idades surpreendentemente jovens para a bitola a que os países ricos se acostumaram. É a doença do desenvolvimento, um tiro no pé que o Homem moderno não combate. A imagem de que hoje tudo se faz na voracidade do tempo. O tempo que parece escapar-se entre os dedos, porque assusta a ideia que ele passa a uma velocidade vertiginosa. Vivemos depressa, no receio de que a vida passe na janela ao lado. Quando despertamos, a percepção de que passámos depressa demais pela vida, que se despede cedo.
6.1.06
E se a extrema-direita fosse proibida?
Há um jogador de futebol italiano (Di Canio) que ergue o braço direito, fazendo a saudação fascista, quando marca um golo. Diz que é a forma de comunicar com uma claque do seu clube, composta por saudosistas de Mussolini. Tem sido perseguido pelas autoridades desportivas italianas e pela UEFA. A sua atitude é condenada por desrespeitar a sacrossanta democracia e os seus valores. Acusa-se Di Canio de incentivar a violência, o ódio racial, a intolerância – alguns dos traços distintivos do hediondo fascismo.
A ideologia fascista repugna-me. Como deploráveis são todos os extremismos que não olham a meios para atingirem (inconfessáveis) fins. Venham os extremismos de onde vierem, ainda que alguns mereçam a condescendência do pensamento dominante. Não consigo perceber a perseguição à extrema-direita. No caso italiano, a perseguição a Di Canio é ainda mais incompreensível, porque os partidos de extrema-direita (desde os moderados do Movimento Social Italiano aos ortodoxos do saudosismo fascista) são admitidos a eleições e entram no parlamento. Se as leis permitem a convivência da democracia com partidos que renegam a democracia, que autoridade tem a federação italiana de futebol – e a UEFA – para tanto banzé por causa de uma saudação fascista de um praticante ao festejar golos?
Ironia do destino, são as autoridades do futebol que não percebem a contradição em que mergulham. Num fascismo imperceptível, quando mantêm em vigor regulamentos anacrónicos que irradiam quem recorrer aos tribunais comuns. Os agentes desportivos que quiserem ir além da justiça desportiva, utilizando os tribunais comuns, são acusados do pecado maior que se pode cometer no futebol. Quando se acusa o futebol caseiro de ser um país à parte (ou um país dentro do país, com regalias que mais ninguém consegue ter), o privilégio existe noutras paragens. É alimentado pelas autoridades internacionais que regem o desporto. Vedar o acesso aos tribunais comuns, como se os tribunais desportivos fossem infalíveis, é um acto de deplorável fascismo. Como podem elas perseguir um atleta que ousa fazer a saudação fascista?
Custa-me observar a incongruência da democracia, um pouco por todo o lado, ao condenar a extrema-direita ao ostracismo. É a democracia na negação da sua essência. A democracia, que se reivindica tutora do valor da tolerância, a exibir intolerância em relação a uma facção que tem um passado deplorável. Uma antinomia que mancha a credibilidade da democracia, quando ela cerceia direitos de participação política a quem perfilha teses fascistas ou afins. Um paradoxo: a bitola não é a mesma quando se ajuízam outros extremismos, do comunismo à extrema-esquerda. Eles têm um passado de atropelos aos direitos humanos, como teve a extrema-direita. O tratamento continua a ser desigual. Basta ver o que se passa por cá: a Constituição proíbe a existência de partidos de cariz fascista, não proíbe o partido comunista nem outros grupelhos de extrema-esquerda, apesar do tenebroso passado dos inspiradores destes movimentos.
Não tenho problemas em conviver com partidos de extrema-direita. Em vez da diabolização que sobre eles cai, vejo-os como um salutar exercício pedagógico. Olho para eles, e para a ideologia que professam, como a antítese da organização social. As propriedades terapêuticas vão mais longe: memória viva que ensina às gerações mais novas o que é uma ideologia baseada na intolerância, na perseguição violenta, no silenciamento das vozes que ousam ser diferentes. O fascismo e o nazismo – como o comunismo e outras ideologias menores, mas que renascem encapotadas, como o trotskismo – são museus vivos edificantes. Dos caminhos que não devem ser percorridos pelas gerações vindouras. A democracia só será construtiva quando tolerar a convivência com a extrema-direita da mesma forma que recebe no seu seio as extremas-esquerdas.
Alguns dirão: o cadastro da extrema-direita é pior que as vergonhas das extremas-esquerdas. Percebo o esforço em graduar as atrocidades cometidas no passado, num ensaio para justificar a tolerância em relação às extremas-esquerdas. Dirão, ainda, que sobre o fascismo e o nazismo pesa a sordidez dos desvarios praticados durante a segunda guerra mundial (enquanto o comunismo aparece entre os triunfantes, entre os libertadores do jugo nazi-fascista).
Quem o faz passa uma esponja pela história, numa memória selectiva nada imparcial. A história não findou em 1945. Os atropelos do comunismo e das pérfidas ideias que inspiraram a extrema-esquerda já vinham de trás e prolongaram-se depois da guerra. Não tiveram a dimensão internacional da segunda guerra mundial. A louca deriva totalitarista, com a mácula de cemitérios cheios de pessoas que ousavam dissidir, não se apaga da história. Colocando no mesmo saco fascismo, nazismo, comunismo e outros totalitarismos avulsos.
5.1.06
O beijo dos namorados
Pela rua fora, de mão dada, ou abraçados como se fossem um só. Os casais de namorados, adolescentes, numa embriagada exibição de afectos. Mostram-no em público, desinteressados dos olhos de reprovação dos mais velhos – carentes, na nostalgia de um passado que ficou imortalizado, algures, distante. Desinteressados dos olhares de inveja, que manifestam desdém pela ridícula figura de quem se entrega a carinhos sem cessar. Adolescentes namorados, só olhos um no outro, como se o resto do mundo deixasse de existir naqueles momentos em que as suas mãos se entrelaçam.
Os casais de adolescentes namorados personificam a descoberta do afecto. Como é coisa nova, entregam-se de corpo e alma no carinho que os faz andar abraçados, na troca de beijos, em carícias nos bancos dos jardins. A descoberta para uma vida que desponta. Vivem o outro com uma intensidade que só a ingenuidade cauciona.
Passeiam-se entre os transeuntes, como se os transeuntes fossem estátuas imóveis. Os outros não existem quando os namorados, do alto da sua adolescente lhaneza, se deixam levar sem rumo num passeio a dois. Como se respirassem em uníssono, como se os seus corações batessem compassados. O tempo das elevadas expectativas. Das promessas eternas que são tão eternas como o desvanecimento dos sentimentos que chega com a alvorada de um novo dia.
Aos que chegam a uma idade que reduz a adolescência a uma nostalgia, a imagem dos pares de namorados que passeiam a enxurrada de afectos provoca ora indiferença, ora curiosidade. A indiferença, quando na bulimia da vida corrente os olhos se perdem no infinito, mergulhados em pensamentos trazidos pela voracidade do quotidiano. Uma amostra do desprendimento do eu, da entrega a coisas elevadas ao patamar das prioridades – o emprego, a carreira, os planos que se materializam ou apenas conduzem ao travo amargo da decepção. Abismo do ensimesmamento, na estreiteza dos laços que outrora aportaram na pessoa amada. Na indiferença, um olhar que se desvia para outro lado. Propositadamente de soslaio, para não convocar as lembranças dos tempos em que os ideais flutuavam com o suave peso das coisas belas.
A indiferença é o corpo de um esqueleto de pragmatismo. Já não há lugar ao que agora entra no rótulo de patéticos afectos. As relações pragmatizam-se. Tornam-se carnais. Perdida a chama da paixão, enterrada com a idade das descobertas, ou com o fogo intenso da descoberta do outro, quando o outro se dá a descobrir, e quando o eu se revela no seu lado belo. Uma entrega recíproca que aquieta o receio da solidão.
No casulo do pragmatismo, emerge o desdém quando um casal de adolescentes namorados pavoneia a entrega apaixonada. Pela cabeça ondeiam palavras: “patético”, “infantilidade”, “exibicionismo”, a espontânea reacção quando a imagem do casal passeando de mão dada entra pelos olhos. É quando o pragmatismo vai ao encontro da indiferença. Que pode ser sintoma de coisa distinta: curiosidade para reviver, em memórias que seja, o que já foi sentido no passado.
A velocidade do tempo presente e a acomodação sentenciada pelo pragmatismo imperador condenam os afectos de outrora a um lugar pequeno. Esparsos momentos, que por não serem assíduos vão perdendo o gosto que a intensidade ingénua das coisas vividas na adolescência trazia. As mãos raras vezes se entrelaçam. Os olhos não se fundem como dantes. E, no entanto, a vida só faz sentido se for vivida com a pessoa com quem foi assinado um contrato de cumplicidade. Cumplicidade. Palavra-chave que distingue o frémito adolescente que cativa os afectos, porque têm que ser continuamente redescobertos. Distingue-o da calmaria que paira no ar quando os anos de vida a dois cimentam um indizível sentimento.
O tempo faz as oportunidades. Tempo para a bebedeira de emoções, quando a imaturidade vagueia, vadia, e as expectativas se sedimentam com a ingenuidade latente. Passam os anos e aprendemos a viver as coisas de maneira diferente. Crescemos: esfumam-se os idealismos, julgamo-nos desapossados da ingenuidade. Embuídos de um pragmatismo que, tantas vezes, nos torna distantes, frios, carnais. Melancólicos?
4.1.06
O mito dos homens de barba rija (se pudesse deixava de fazer a barba…)
Acabo de me cortar a fazer a barba. Será a falta de paciência, apenas o desajeitado que sou para escanhoar a face; seja o que for, maltrato a pele quando os pelos irrompem para além do que a estética aconselha. A cada manhã em que o ritual de fazer a barba está agendado, o sacrifício de passar o creme pela cara, o sacrifício de empunhar a lâmina e rapar, com o cuidado com a escassa diligência permite, a parca barba semeada cara fora.
É então que, de repente, surge a lembrança de um mito perene: o homem de barba rija. Reconheça-se que não é um mito segregacionista. Não se pense que são apenas homens que se gabam de os ter no sítio que propalam as virtudes da barba rija como exigível barómetro da masculinidade. Muitas mulheres sofrem do estigma. Elas também alimentam o mito, julgando que só cumprem a sua feminilidade, só satisfazem a sua heterossexualidade, se estiverem acompanhadas por um espécime de barba rija, uma máscula figura com abundante pilosidade.
Não venho em defesa da condição “metrossexual” que, consta, está em voga. Não tenho apetência para moldar a figura ao jeito desses homens efeminados que escondem uma sexualidade dúbia. Não que tenha algo a ver com as opções dos “metrossexuais”, que se escondem na ambiguidade e tiram partido de uma aura de mistério que lhes estende a passadeira do sucesso, entre ambos os sexos. Já discorri com abundância em defesa das opções individuais, e do abuso que é opinar sobre as opções dos outros. Falo apenas das minhas próprias opções. Aí sim, a rejeição da “metrossexualidade”, porque nasci homem e, não sendo o paradigma do homem de barba rija, gabo-me da minha masculinidade. Gostar de ser homem.
Talvez seja das poucas vezes que sublinho a virtude do meio-termo. Nem homem de barba rija, na recusa do mito bolorento que suporta uma desigualdade de sexos escorada na anatomia dos sexos; nem homem andrógino, com sinais identificativos do sexo feminino. Em relação à derradeira opção, apenas o sintoma de querer ser o que sou. No respeito dos que nascem com corpos que estão em dissonância com o sexo que domina o espírito. Nada contra os transformistas. É de louvar quem tem coragem de assumir que nasceu com o sexo errado e opta por fazer uma série de dolorosas intervenções cirúrgicas para corrigir o erro genético.
O acto de fazer a barba é coisa que me irrita. Sinal de pouca paciência para o necessário escanhoar, às vezes apetece-me deixar crescer barba pela preguiça de a fazer com menos assiduidade. A natureza não foi contemplativa comigo, dotando-me de uma barba fraquinha – ou, na linguagem dos garbosos machos que corporizam o estereótipo do homem de barba rija, serei um homem de fraca têmpera, ausente a barba hirsuta. O ritual do escanhoamento tem que continuar inscrito na agenda das coisas diárias. Sem que me consiga habituar à ideia de que fazer a barba não é aquele sacrifício quase diário que me faz começar mal o dia.
Às vezes dou comigo a desejar que houvesse um método de extracção definitiva dos crespos pelos da barba. Como existe depilação definitiva que certas senhoras fazem, para eliminar de vez o martírio da depilação que nelas é exigência estética encaixada nos padrões de feminilidade. Curiosamente, agora que vinga a modernidade do “metrossexual”, ouvi dizer que está na moda os homens despirem-se de todas as pilosidades adjacentes que, no sexo masculino, são mais abundantes. Parece que as suas companheiras exigem que o matagal pubescente seja desbastado, para afastar o incómodo que elas sentem quando os corpos se aconchegam em momentos mais calorosos.
Não vou tão longe. Quero conservar as demais pilosidades espalhadas pelo meu corpo. Dispensava de bom grado os pelos que crescem na cara, pelo bem-estar da desnecessidade de me escanhoar. E para que a minha inabilidade para a função não fosse a fonte de feridas faciais que custam a cicatrizar.