Ia o comboio em demanda do sul. Cruzava-se com o Mondego, chancela da artificial barreira entre norte e sul. Lá baixo, junto a um canal, um velho debruçava-se sobre a cana de pesca. Envergava um oleado esverdeado para se proteger contra o frio húmido que as águas do Mondego regurgitam por estes dias que afagam um ano que acabou de nascer.
Porventura um reformado, sem nada para fazer a não ser a pesca no tempo que passa enquanto se encurta o tempo até à fatal despedida final. O velho, a pôr-se a caminho no seu carro apodrecido, embrenhado em pensamentos distantes, ora vagos, ora cultores de uma nostalgia que resgata as memórias gloriosas do tempo em que vitalidade gritava de pulmões cheios. Agora, limita-se a esperar. Com o olhar perdido no horizonte, à espera que um inditoso peixe morda o anzol, à espera que os dias corram devagar, uns após os outros.
Apascenta a sua vida que, dir-se-ia, já foi vivida. Horas infindáveis na margem do rio, segurando a cana enquanto se demora o sacrifício de mais um peixe. A indiferença contagia-se à cana de pesca, como se fosse imperativo trazer os peixes fluviais da sua calmaria, rio abaixo rio acima, para a ira invisível que os olhos do velho não deixam transparecer. São eles, os peixes, as vítimas de um velho que não consegue discernir o horizonte. O dele não vai além das águas lamacentas que vão rio fora, em direcção ao mar.
Quisera o acaso que nesse momento passasse os olhos por um livro que divagava ciência política. Quisera o acaso que o sol que entrava pelo vidro baço do comboio iluminasse palavras escritas que mereciam ser despojadas do livro, fazendo companhia ao velho no seu pastoreio malsão da fauna fluvial. No livro, mais uma utopia descerrada, como tantas que vou lendo. Fogueiras onde se consomem profícuas investigações de eméritos investigadores, perdidos em lucubrações infindáveis, teimando em ver o mundo como ele não é – nem menos como eles o projectam na sua finita sabedoria. No livro, teoria a rodos, uma apologia da “democracia participativa”. Ênfase nos predicados de um sistema onde todos os cidadãos não se demitem de uma responsabilidade participativa, onde o debate é aberto e franco, sem truques de retórica nem manobras para achincalhar adversários que custam a dobrar.
As teorias são belas, sobretudo quando estão tão longe de serem sacralizadas. Lia aquelas palavras e lembrava-me do pescador: mais um dia passado a ver as águas do Mondego na sua correria imparável para o mar; no rescaldo do dia, esfregando as mãos no vácuo contentamento da contabilidade da pescaria. Deitei-me a adivinhar: sobre o interesse do velho pescador num sistema que lhe dá a palavra, que o educa para a convicção que pelo debate ele dá o seu contributo para resolver problemas. Continuo no profético exercício de carácter. Vendo o velho pescador olhar para o lado, cuspindo na oferta participativa que lhe faziam os arquitectos de uma sociedade que tem que ser mais justa e perfeita – e porque serão sociólogos e politólogos tão teimosos na busca do zénite?
Na sua fátua vida de casa para a margem do rio e de regresso a casa, um velho abúlico desinteressado de votações e eleições, de polémicas estéreis entre pomposos políticos, ou de prédicas de lentes que tentam sair do casulo universitário. Será um apócrifo visionário, que sente o fio de vida ficar mais delgado com o tempo que se esgota. Será apenas incultura genética. Será o velho pescador a imagem de tantos velhos e não tão velhos pescadores, os ponteiros do relógio na sua marcha incessante, e tanta coisa importante que se passa lá fora, no mundo, que não consegue atravessar o inexpugnável alvéolo que os velhos pescadores erguem detrás de uma cana de pesca.
Ao velho pescador interessa o percurso do fio de nylon que o liga à agua onde nadam as presas que nunca tardam. Podem-lhe oferecer um lauto jantar, feito de plateias onde discute com responsáveis e decisores, e outros actores tantos que aparecem. Prefere a dietética iguaria que pesca, venha ela conspurcada pelas águas tingidas por esgotos sem tratamento que desaguam no leito do rio.
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