19.1.06

O dançarino desengonçado

Vejo um cartaz anunciando um qualquer concurso de dança, estilo danças de salão, como se fossem os “Alunos Apolo” do Porto. Daqueles certames onde os pares se aperaltam em fatiotas de cerimónia e ensaiam passos de dança harmoniosos. Ao sabor de músicas de antanho, que continuam a servir de suporte aos passos compassados da parelha. Manifestações que não colhem a minha simpatia. Coisas da estética, com padrões orientados para outros diapasões.

A dança é coisa estranha para mim. Sejam as danças que se harmonizam nos passos bem estudados, com o fino recorte que só o muito treino habilita; seja a dança transformada em arte, em coreografias ousadas que encantam pela densidade; ou a dança livre, os passos soltos e desordenados que corpos libertados professam ao sabor de música que se põe a jeito, em discotecas. Sempre foi um corpo estranho, a dança, para o meu corpo, estranho à dança.

Via, com inveja, como outras pessoas se libertavam quando sons convidativos ecoavam. Como jorrava uma imensa energia, transbordando a alegria de abanar a cabeça e movimentar pernas e braços com desorganização. Eu não conseguia sentir o mesmo. Quando ensaiava a dança colectiva, sentia-me sempre desengonçado, como se o corpo se desarticulasse em movimentos absurdos. Se as pessoas que gostam de dançar se sentem libertadas pela dança, para mim a dança era uma prisão pelo desconforto que trazia.

Será preconceito pessoal – o de sentir que o dançarino recalcitrante que pulava a custo para uns pálidos saltos de dança era desajeitado na performance. Eram tempos em que cuidava de evitar que os outros zombassem de tristes figuras que acaso fizesse. E como se dava o caso de ajuizar que pela dança tristes figuras fazia, tinha o pudor de evitar o colectivo abanar de cabeça nos tempos em que era mais assídua a frequência de locais de diversão nocturna.

É com pena que o digo, por ser tão grande o gosto pela música (pela música que gosto, bem entendido). Ter passado ao lado de uma educação musical é uma frustração pessoal. Gostava de perceber mais de música, para compreender melhor o que escuto. O gosto pela música não se expressava num correlativo gosto pela dança (naqueles géneros musicais que se prestam ao ondulante movimento dos corpos a acompanhar a melodia dançante). Reprimia a agradável sensação que a música causava ao penetrar no sistema auditivo: as ondas de energia, que impeliam o corpo a uma movimentação conforme com os sons escutados, não deixavam passar senão um ululante serpentear do corpo que era mais imaginado do que real. Era daqueles que se remetia a um canto, copo numa mão e a outra no bolso das calças, batendo o pé e deslizando palidamente a cabeça de um lado para o outro. Invejando os frenéticos dançarinos que mostravam todo o seu bem-estar com a energia transbordante da dança descomprometida.

As coisas mudam, como muda o tempo em que vivemos. A paternidade é pródiga em transformações. Hoje dou comigo em coreografias sem sentido com a minha filha, que ensaia movimentos de dança sempre que do computador ecoam as músicas mais ou menos esquisitas que o pai gosta de ouvir. A rapariga terá o jeito da mãe para a dança e a sensibilidade auditiva do pai para a música (perdoe-se-me a imodéstia). Tanto abana a cabeça e deixa deslizar o corpo com as patéticas músicas fabricadas para petiz gostar (a dita "música infantil", que reserva um tratamento de atrasados mentais às criancinhas), como com os sons alternativos que o pai põe no éter.

Em compita com a filha, o pai dança como nunca ousou dançar. Continua a ser um desengonçado dançarino, que não fiquem dúvidas. Que interessa, se a filha se entusiasma com os trejeitos de dançarino que o pai se esforça por praticar? Eis-me chegado aos trinta e muitos, dançarino como nunca outrora fui. Metamorfoses necessárias; um elixir da vida, a essência da paternidade.

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