O cinema pode ser militante nas causas que o realizador defende. Como pode ser uma miríade de outras coisas: fantasmagórico, romântico, reconstituição histórica, ficção científica, ou uma vitrina de efeitos especiais, só para mencionar uma mão cheia de exemplos. Quando é militante, o cinema arrisca-se a dividir a audiência. Cativa os aplausos dos que se revêem na causa retratada no filme. Não leva ao arrebatamento os que visionam o filme sem se identificarem na militância.
Sabia ao que ia quando comprei bilhete para “O fiel jardineiro”. Tinha lido a sinopse: um diplomata britânico em serviço no Quénia perde a sua jovem mulher num acidente que levantou suspeitas. Mais tarde vem a saber que o acidente foi provocado por um emboscada em que a activista mulher e um médico de uma organização não governamental pagaram com a vida a ousadia de denunciarem uma grande empresa farmacêutica. Esta empresa ministrava um medicamento entre os nativos sem que estivesse segura dos efeitos secundários. Que entretanto se revelavam em falecimentos súbitos, passando a ideia de que a farmacêutica usava os quenianos desfavorecidos como cobaias. Pelo caminho, descobre-se a cumplicidade do governo britânico com a empresa farmacêutica. E as manobras para que as denúncias dos activistas fossem silenciadas.
O realizador Fernando Meirelles contribui para o peditório da grande teoria da conspiração que acusa o mundo de ser dominado por um punhado de grandes empresas multinacionais, sacrificando milhões e milhões de indefesos, preteridos no jogo de interesses. Como se as gigantescas empresas multinacionais estivessem irmanadas num complot, em nome do sacrossanto lucro, essa coisa terrífica que as leva a espezinhar vidas humanas sem qualquer misericórdia. O mito do capitalismo nefando, que mergulha as massas numa opressão sem fuga possível.
A retórica não é desconhecida. Faz parte da linguagem que dramatiza as tensões entre quem produz e quem consome, entre quem detém abundante riqueza e quem vive do outro lado – seja a burguesia remediada, sejam os milhões de pobres que penam para apenas sobreviver. Na diabolização das multinacionais que açambarcam o lucro na opressão de quem consome, Meirelles dá voz aos insatisfeitos deste mundo. O capitalismo é o mal supremo, a razão de todos os males que pousaram na face do planeta.
Esquecem-se os Meirelles que povoam o planeta que se o mundo fosse tão singelo como retratam as denúncias chegariam a bom porto: as massas revoltar-se-iam contra a ditadura do grande capital. Como se as grandes empresas fossem estúpidas ao ponto de não perceberem que uma estratégia autista, que atropela o ser humano em nome do prioritário lucro, é um tiro no pé. Como se as multinacionais não tivessem sofisticados departamentos de marketing e de comunicação que cuidam da sua imagem perante o grande público. Podemos acreditar na dicotomia (multinacionais que espezinham pessoas se elas se atravessarem na frente do tão desejado lucro)?
De regresso à narrativa do filme, impressionam as imagens de miséria quando as câmaras passeiam pelos bairros da periferia de Nairobi, onde vivem acantonadas as pessoas abandonadas pela sorte. São sofridas as imagens de uma tribo sudanesa, perdida no meio do imenso território, quando sofre um ataque de bandidos a cavalo. É sublime uma mensagem que o protagonista ensinou à sua mulher e que, mais tarde, toldado pela saudade, se esqueceu de pôr em prática: quando o coração apertado clamava pela ajuda a dois irmãos quenianos que empreendiam uma marcha de quarenta quilómetros até casa; ou quando o diplomata tentava resgatar uma criança sudanesa das mãos de um bando de assassinos, uma lição de vida na mensagem. Eles são milhões e a ajuda a um só nada resolve, a não ser apaziguar a consciência de quem ajuda. O problema há-de persistir para todos os outros milhões que os olhos não vêm para ajudar no momento.
Não percebi que “O fiel jardineiro” fosse inspirado numa história verdadeira. Pura arte de romancear, com a especulação que anda à solta quando o género é escolhido. Serei inocente, mas custa-me a acreditar que uma empresa que produz medicamentos se aventure numa campanha de medicação em massa sem ter a certeza de todos os efeitos do medicamento. Serei ingénuo, mas custa-me a crer que uma empresa considere que as vidas já de si desgraçadas dos excluídos em África valham menos do que uma vida humana algures.
Por entre as imagens pungentes que encerram o filme, saí com a imagem naïve de que a terrível história contada é isso mesmo, uma terrífica história que pinta de negro os impessoais detentores do capital, mas só uma história imaginada. Continuo a não acreditar que alguém, no seu juízo, desvalorize vidas humanas quando as elege para a condição de cobaias. Mas isto pode ser apenas a minha ingenuidade, contra as certezas inabaláveis de certas militâncias.
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