Bragança, depois de um “nevão” – e faz todo o sentido grafar a palavra, pela queda de neve que tingiu de branco a paisagem. Ora um nevão não é isso. Um nevão acontece nos países onde a neve cai com mais abundância e assiduidade. Um nevão enche as ruas com um espesso manto, de trinta, quarenta centímetros. Uma capa de meia dúzia de centímetros não é um nevão. A paisagem fica coberta com um manto de alvura, mas não basta para se empregar a palavra nevão.
No nordeste transmontano há alguma probabilidade de queda de neve. Se as estatísticas fossem lidas com cuidado, veríamos que a terra fria transmontana não é lugar onde a neve seja visita frequente. Uns escassos dias por ano. Quando não se passam anos a fio sem que haja notícia dos brancos flocos que pousam, leves, nas terras do nordeste. Quando a neve começa a cair e as estradas ficam com uma pálida camada de neve, está instalado o caos. Pela inépcia dos condutores e pela falta de diligência das autoridades.
As pessoas que conduzem deixam-se tomar pelo pânico, como se a neve fresca acumulada na estrada sinalize paragem obrigatória. Não temos a experiência dos automobilistas onde a neve é usual. Estão acostumados a conduzir com estradas cobertas de neve, com prudência, sem se atemorizarem com o piso escorregadio. Por cá, neve no asfalto é sinónimo de impossibilidade. Muitos abrandam para além do necessário. Outros estancam em plena via, temendo que o estacionamento na berma atasque os veículos sem hipótese de remoção. Desconhecem que a neve fresca não é a armadilha que supõem. Com cautela, os automóveis circulam sem dificuldade em estradas onde a neve acabou de pousar. Mas também há um punhado que se enche de brios nórdicos e circula como se o piso estivesse seco. Acabam espetados contra valetas, surpreendidos com a falta de prudência. O de sempre: somos do oito ou do oitenta.
A paralisação do nordeste transmontano quando a neve tomba durante umas horas deixa-me atónito. Ontem voltou a acontecer. O governador civil queixou-se que só tinha um limpa-neve disponível e que o distrito de Bragança é dos maiores do país. Contra a segunda queixa, nada a fazer. A geografia não se refaz quando ela mostra os seus inconvenientes. Se existe a possibilidade das terras de Trás-os-Montes se encherem de neve, não se percebe porque só existe um limpa-neve operacional. Como ele não tem o dom da omnipresença, não há que culpar a extensa geografia do distrito para sanar a inépcia de quem toma decisões. Depois falam-nos da infalível ciência da planificação, como se esta gente tivesse especiais dotes prospectivos, que não tem.
Lembro-me, já lá vão dez anos, de ter visitado Bragança durante um “nevão”. Foi difícil lá chegar, mais pelo trânsito a passo de caracol e pelos disparatados candidatos a pilotos de ralis entretanto capotados na berma do IP4. Bragança parecia uma cidade fantasma. Contavam-se pelos dedos das mãos os carros que circulavam pelas ruas. No dia seguinte fui até Rio de Onor, uma das aldeias que conserva tradições comunitárias, estendida entre Portugal e Espanha, sem que a fronteira consiga separar o que só a artificial divisão entre os países coloca no mapa. Numa estrada com pouco movimento, fui andando entre os trilhos sulcados por um tractor. A frente do carro varria a neve, como se fosse um limpa-neve. Não arrisquei a inversão de marcha. A neve acumulada era muita e começava a gelar. Temia que, ao fazer inversão de marcha, não conseguisse sair do sítio. Restava-me prosseguir até Rio de Onor, para sair por Espanha e tentar reentrar por outra fronteira.
Os últimos três quilómetros foram feitos sem a ajuda dos trilhos abertos pelo tractor. A estrada estava coberta de neve. Na descida para a aldeia, com cuidado e algumas escorregadelas excitantes, fiquei com a certeza que só conseguia regressar a Bragança entrando em Espanha e voltando por outra fronteira nas proximidades. Ou com ajuda de um tractor que me rebocasse até ao planalto, onde a neve ficava mais fina. Parei em Rio de Onor, mesmo junto à fronteira. Do lado espanhol a estrada estava desbloqueada. O limpa-neve já lá tinha passado, o asfalto estava à vista. Perguntei a um habitante se valia a pena sair e tentar reentrar por outra fronteira (Portelo ou Quintanilha). Disse-me que era tarefa inútil. Só ia queimar gasolina, porque as estradas espanholas até àquelas fronteiras estavam desimpedidas. O problema era do outro lado da fronteira: o limpa-neve ainda não tinha lá chegado.
A neve caiu com a mesma intensidade dos dois lados da fronteira. Ao ver como estavam as estradas do lado espanhol e do lado português, diria que um milagre atmosférico fez do cantinho colocado no Parque de Montesinho um estanho microclima. Desenganei-me. O que estava mal era a falta de competência de quem (não) planeou os meios para varrer a neve das estradas. À vista desarmada, a desigualdade de capacidade de previsão dos espanhóis e dos portugueses.
E depois há quem se abespinhe quando iberistas exclamados equacionam a hipótese de uma grande ibéria, ou da entrega, em saldo, das lusas terras aos espanhóis.
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