10.1.06

Caloteiros

O Banco de Portugal divulgou os dados estatísticos sobre os cheques carecas passados em 2005. Entre os cheques sem provisão assinados, cuja cifra não consigo lembrar, um número ficou na retina: o valor correspondente aos cheques carecas representou 2% do PIB nacional! Quando tanto se fala dos 6% de défice orçamental, de como este valor é astronómico para o Pacto de Estabilidade e Crescimento (não mais que 3% do PIB), o valor de cheques sem cobertura é assustador.

O estudo era omisso quanto à evolução recente da tendência caloteira dos cidadãos nacionais. Faltava saber se, com a passagem do tempo, o valor dos cheques carecas tem aumentado ou diminuído. Seria um dado interessante, até para o encaixar na crise – económica, mas sobretudo de valores – que atravessamos. Na ausência desses dados, fica apenas a percepção de que há muita gente que não hesita em assinar um cheque sabendo que a conta bancária não tem dinheiro para o cobrir. Dois por cento da riqueza gerada é muito dinheiro. Representa um duro golpe nas empresas e pessoas defraudadas pelos cheques sem provisão que receberam.

Se há surpresa é apenas no valor do somatório de cheques carecas. Quanto ao resto, apenas confirmações. Gente que não hesita em enganar o próximo. Vale muito o princípio de que temos que enganar o próximo senão somos nós os enganados – ou outros terão o ensejo de o enganar, conquistando a oportunidade de ouro que perdemos apenas porque um rebate de consciência nos levou a não defraudar o outro. Há muitos traços que preenchem a idiossincrasia nacional. Ruas pejadas de Chicos-espertos é um deles. O despudor é outro, de braço dado com o primeiro.

A cada um as dores de consciência. Por mim falo, incapaz de passar um cheque sabendo que a conta está despida de fundos para o cobrir. Não arrisco lições de moral, porque a moral é muito subjectiva, e porque não sou ninguém para as dar. Apenas quero afirmar a estranheza pela prática reiterada de quem assina cheques sabendo que eles vão voltar para trás, numa má notícia para a pessoa ou empresa a quem os cheques se destinavam. Pela parte que me toca, gosto de olhar para a cara que está do outro lado do espelho quando faço a barba. Sem ter que me esconder detrás de um imaginado biombo, por vergonha de ver a cara que se reflecte no espelho. Outros estarão habilitados a olhar de frente para o que os seus olhos vêm. Não se envergonham de espoliar quem recebe os seus cheques descobertos. Mais uma prova do princípio, tão divulgado pelo seu máximo inspirador (Mourinho), de que todos meios justificam os fins.

Tenho conhecidos que trabalham em bancos. Confidenciaram-me, em tempos, que anda por aí afamada gente, que aparece com assiduidade nas revistas do socialite, com o nome enlameado, registado a vermelho na base de dados do Banco de Portugal. Eles e elas, que se pavoneiam na escala gradativa da ascensão social e que ostentam uma parafernália de sinais exteriores de riqueza. As mesmas pessoas que saltam de banco em banco numa fuga para a frente, de cheques carecas em série. Depois, adivinha-se, há um bando de aspirantes a figurões emergentes da escala social que investem o que têm e sobretudo o que não têm para, em bicos de pés, entrarem no desejado Olimpo do resplandecente jet-set.

Há também muitos cheques sem provisão nas relações comerciais. Empresas que não pagam a fornecedores, quantas vezes condenando-os a uma vegetativa existência, quando estes fornecedores são pequenas empresas que dependem de pagamentos atempados. A fraude, muitas vezes, vem em cascata – uma empresa que não paga a outra, que por sua vez fica impossibilitada de pagar a uma terceira que lhe forneceu matéria-prima, e assim sucessivamente.

Antes referi como seria interessante observar a tendência recente no montante de cheques sem provisão, para indagar se temos crescido no grau de “caloteirice”. Outro dado seria ainda mais revelador: fazer uma comparação internacional. Para ver se a apetência para sermos caloteiros é inata aos genes lusitanos, ou se é mal espalhado por todo o lado, em mais uma exibição da globalização – de uma globalização para o mal, neste caso.

3 comentários:

Anónimo disse...

2 comentários:
- Concordo. Não querendo colocar o Estado como responsável por tudo o que há de mau, a verdade é que dá o exemplo:
Quantas empresas deste país estão a "arder" à espera de pagamentos em atraso da Camara Municipal de Aveiro, só para citar um exemplo.
- O Mourinho tem qualquer coisa de Anacleto para ti... de facto é um tipo muito orientado para resultados, mas daí até ao "vale tudo"...??! O que ele faz, porque conhece bem como funciona o futebol, é usar a Comunicação Social para criar o ambiente que lhe convém. Tudo isto para mim, faz parte do futebol actual (quer queiramos, quer não) . Ele foi provavelmente o primeiro a saber fazê-lo. E acho que devemos ter orgulho em ter um português que é um exemplo mundial de profissionalismo. Goste-se, ou não se goste dele.
Além disso, deve pagar as contas dele a tempo e horas.

Ponte Vasco da Gama

Anónimo disse...

Bom dia,
Razão a 100% no teu post.
Um pequeno detalhe:na estatística dos cheques carecas entram todos os cheques, o que torna a estatística falsa, não podendo ser analisada da forma como foi pela tua parte ( somatório).O que acontece é que, muitas vezes senão a maioria,os cheques voltam a ser colocados e são pagos.Só assim serão justificados, já que se não o forem, não é possível haver nenhum tipo de actividade bancária futura.
Seria bom saber, o que é o quê nessa estatística dos cheques.

Ah,o comentário do PVG sobre a Câmara de Aveiro, a maior destruidora de empresas e famílias deste país.
Em 1997,possuía uma empresa familiar que se dedicava a fazer obras de referência em pavimentos de madeira,sobretudo desportivos.Via CMA, fizemos o pavimento do Clube S.Bernardo.Calote total e colapso da minha empresa;doze mil contos por receber que me obrigaram a fechar a empresa.Ainda hoje tenho para receber cerca de 4000 contos;O tribunal em Aveiro parece que faz o jogo da CMA,atrasa e adia.
Uma réstea de esperança com estes novos autarcas que prometeram pagamentos até Maio.
Como eu existem milhares de pessoas e empresas neste país.
O efeito cascata,faz deste país um país de não pagadores......muito por culpa do Estado e especialmente das autarquias que continuam a agir numa impunidade total.

carter

PVM disse...

Não sei o que será pior: passar um cheque sabendo que a conta não está coberta, ou contratar obra sabendo que não há dinheiro para a pagar. Os exemplos do Estado mau pagador abundam. No caso das autarquias, um garrote para a economia local, para os pequenos e médios negócios que fizeram obra de graça e depois ficam à espera que os tribunais façam a justiça que tarda. O calote começa de cima: quando o Estado é o maior caloteiro, escancaram-se as portas para as vigarices dos particulares. O mau exemplo vem sempre de cima.
Paulo Vila Maior