Ponto de ordem: longe de mim questionar a liberdade de voto de quem quer que seja. É um acto de consciência; nas profundezas da consciência há o recato de não entrar. Duvido que seja um exercício de pura liberdade para as ovelhas bem mandadas que engrossam o imenso rebanho da partidarite nacional, ou o exército de centenas de milhar de funcionários públicos com fidelidades caninas aos partidos que os colocaram no posto de trabalho.
Não querendo beliscar a liberdade de escolha de ninguém, não posso evitar a perplexidade de ver tantos liberais a fazerem figas para que Cavaco vença. Outra explicação, para moldar o contexto: entre a brigada do reumático que se candidata à sinecura, todos estão longe de se aproximarem das minhas simpatias (pessoais e ideológicas). A distância é ainda maior em relação aos cinco candidatos das esquerdas que são canibais uns dos outros. O que não significa que escolha por exclusão de partes. Não é por não me rever em nenhum dos cinco candidatos das esquerdas que sou votante natural do professor de Boliqueime.
Volto à interrogação: pode um liberal votar em Cavaco, quando entre um liberal e o candidato há um imenso oceano de divergências? A resposta é linear: pode. Como um liberal dos sete costados pode escolher Soares, por mais contra-natura que a escolha pareça. (Um dirigente do partido de Manuel Monteiro, professor universitário no Porto, surpreendeu ontem com artigo no Primeiro de Janeiro em hossanas ao vetusto candidato do PS.) A questão tem que ser reformulada: deve um liberal votar Cavaco? É uma diferença abissal: entre o pode e o deve, a diferença entre uma liberalidade e um imperativo. No último caso, tenho dúvidas que um liberal deva escolher Cavaco sem prejudicar a coerência do que defende.
O que me intriga é saber que estes liberais se afadigam por mostrar a superioridade intelectual de teorias que apelam ao emagrecimento do Estado e depois, por magia ou por artes de conveniência momentânea, põem as ideias em banho-maria. É o que se passa quando se alistam entre os apoiantes de Cavaco. Que sejam ingénuos ao ponto de caírem na ratoeira dos apóstolos das esquerdas, que colocam em Cavaco o rótulo de direita, é um mistério insondável que os apouca. Vão no engodo e colocam-se ao lado de alguém que é erradamente rotulado daquilo em que eles, liberais, se revêem.
O apelo da memória é profiláctico. Cavaco tem um registo enquanto primeiro-ministro. Talvez mais importantes sejam os episódios de intervenção cívica, os artigos de opinião em jornais, as conferências principescamente pagas em que difundiu ideias, o magistério universitário. É daí que vem um acervo de ideias que faria corar de vergonha os liberais. Esses, os mesmos que o apoiam. Cavaco não mudou. Foram os liberais, que por momentos se esqueceram do que andaram a defender até à campanha eleitoral.
Compreendo-os, em parte. O discurso das esquerdas tem sido o de dramatizar as eleições. Como se elas fossem importantes, quando o não são pelo esvaziamento do cargo – pouco mais do que simbólico. É a tendência reiterada de um povo que dá atenção ao pormenor e passa ao lado do essencial. Percebo que haja um impulso de apoiar o homem de Boliqueime quando uma matilha passa os dias num exercício colectivo de diabolização. (A matilha não percebe que o povo português mostra comiseração em relação aos coitadinhos – e as esquerdas fazem de Cavaco um coitado, o melhor trunfo que lhe podiam oferecer.)
Com tanto disparate que anda no ar, com a imagem de demónio associada a Cavaco, não fosse a minha repulsa congénita pelo homem de Boliqueime e lá estaria, no domingo, a votar nele. Também percebo os liberais que se colocam ao lado de Cavaco: porque as esquerdas, do alto das suas verdades incontestáveis, acham que devem continuar a ter o monopólio do cargo. Por entre o chorrilho de dislates, já houve quem falasse em golpe de Estado constitucional caso Cavaco seja eleito. Fica a sugestão: anulem-se as eleições se ele ganhar!
Compreendo estas motivações dos liberais que votam Cavaco. Contudo, sou incapaz de imitar o comportamento. Primeiro, porque esse é o móbil de tantos esquerdistas histéricos que se arregimentam com todas as armas legítimas e ilegítimas para impedir a ascensão de Cavaco a um trono que consideram reservado a um dos seus. Motivam-se pela negativa, não por algo construtivo. Segundo, porque Cavaco é de esquerda, a antítese de um liberal. Na minha teimosia, recuso-me a escolher um candidato que seja o mal menor.
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