26.1.06

Astrologia e treta-e-meia

Algumas vezes por semana, à hora do almoço, enquanto a televisão debita aquele irritante programa para entreter velhinhas, aparece uma astróloga. Sempre atravancada numas roupas dois números abaixo do seu corpo, banhas a transbordarem as ditas, lança uns palpites astrológicos acerca de umas vítimas que se põem a jeito. As vítimas, crentes na “ciência”, telefonam para os estúdios, informam data e hora de nascimento e esperam que o software vomite a carta astrológica. É um autêntico roteiro pelo passado da vítima. Por norma, um chorrilho de desgraças que merece a confirmação da alma penada que está do outro lado do telefone. Para desanuviar, a astróloga trata de anunciar, do alto do seu oráculo, bons ventos para o ano que se avizinha.

Que me perdoem os que acreditam na coisa. Este é apenas o testemunho de alguém assoberbado pela ditadura do racionalismo. De alguém que teima em se reger pelos cânones da cientificidade. Uma forma diferente de cumprir a máxima de S. Tomé: ver para crer. Afastar do horizonte qualquer vestígio paranormal, esoterismos ou explicações que fantasiam acontecimentos. As coisas: ou aconteceram, ou não foram. Um pragmatismo doloroso. Na senda deste pragmatismo racional, a astrologia é coisa que me faz rir.

Eis o que me espera no dia de hoje, se se cumprirem as previsões mapeadas para o signo de Peixes, algures na Internet. Um artista prevê que eu tenha que “lidar profissionalmente com mulheres de grande prestígio social e poder. Não deixe que a sua carreira dê cabo da sua vida pessoal”. Outro expoente do esoterismo paroquial fixa o seguinte destino:

Saúde: tenha cuidados alimentares que mantenham o seu peso estável. Amor: é importante que seja moderado e justo evitando reagir de forma impulsiva e sem cometer excessos. Dinheiro: faça economias e uma gestão sensata dos seus movimentos financeiros. Não é a altura mais propícia para fazer sociedades ou tentar conseguir financiamentos. Hora mais protegida: 11h ás 13h” (“ás” não foi propositadamente corrigido. O erro é de quem fez o horóscopo…).

Fico intrigado. Para hoje a agenda não mostra nenhuma reunião com mulheres de prestígio social e de poder. Ainda bem. Para não enfrentar as tentações carnais de uma delas (ou várias), a acreditar no aviso da segunda cartomante. Teria que reagir moderadamente, com justiça, não cometer excessos. Suponho que com as mulheres de poder e de prestígio social que o primeiro astrólogo coloca no meu caminho para hoje. Seria um dilema embaraçoso: o sucesso profissional dependente da satisfação dos apetites carnais de uma daquelas mulheres prestigiosas. Com o risco de destruição da harmonia familiar, não fosse esquecer a advertência: “não deixe que a sua carreira dê cabo da sua vida pessoal”. Estes astrólogos passam o dia a ver telenovelas…

Faz-me espécie a padronização dos humanos da autoria dos astrólogos. Tudo se resume a doze signos do Zodíaco, a que se junta uma mão cheia de variáveis: os “ascendentes”, relacionados com a hora a que nascemos. Tudo misturado, os milhões e milhões de pessoas que vivem no planeta reduzem-se a algumas dezenas de estereótipos. A astrologia é a negação da diversidade humana, uma lápide a essa riqueza que nos distingue. Quando se pensa que o conhecimento de pessoas nos traz sempre diferença, estamos enganados. Todas encaixam num dos estereótipos das cartas astrais.

Que interessam as múltiplas variáveis que interferem com as complexas personalidades que conhecemos? Acaba tudo por ser reduzido ao espartilho da astrologia. Independentemente do lugar onde se viva, sem saber a formação da personalidade com os contributos da educação, das relações com outras pessoas, das vicissitudes da vida, etc., os astrólogos enfiam toda a gente em doze signos. Todos os milhões de peixes terão um dia igual, como todos os milhões de leões terão um dia igual. Sem ofensa aos que acreditam na coisa, é caso para dela escarnecer.

Noutro local, consegui desenhar a minha carta astrológica. Deu resultados que estão nos antípodas do que conheço de mim. Alguns exemplos: “a maioria dos seus fracassos resulta da falta de senso crítico” (nada mau para quem tem a crítica sempre na ponta da espada); “possui habilidade mecânica e científica e gosta de trabalhar em equipa” (detesto trabalhar em equipa e sou uma nódoa nas coisas que exigem destreza mecânica); “as suas ligações amorosas costumam ser inconvencionais, superficiais e variáveis” (o passado rejeita esta fama de doidivanas). E podia seguir, até à exaustão, na amostra de predicados que são de outrem que não meus.

É o que dá, quando a astrologia se arvora em ciência, apenas porque joga com o movimento cientificamente estudado dos astros, como se isso tivesse influência no percurso que as pessoas seguem. Como se todas as pessoas estivessem enfiadas num dos doze harmónios moldados pelas convenções dos signos. Charlatanice em estado puro.

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