27.1.06

O paradoxo da alegria africana

Enquanto desgastava calorias no ginásio, a televisão passava um jogo do campeonato africano de futebol. Jogavam Angola e o Congo. Ao intervalo as câmaras cirandavam pelas bancadas em busca de animação. E se era coisa que não faltava, naquela noite fria do Cairo, era animação entre as claques angolana e congolesa. Cores garridas, um mole que, em uníssono, pulava ao sabor dos sons de tambores, um respiro de tropicalismo.

Quando se pensa na África martirizada pela pobreza e se testemunham ímpares exibições de alegria, há qualquer coisa que está errada. Porventura entre os africanos, que passando por carências infindáveis conseguem mostrar uma alegria indómita de viver. Estranharemos nós, ocidentais, como podem povos que vivem à míngua ser levianos ao ponto de exibirem uma invejável alegria de viver. Será apenas mais um sinal do antropocentrismo que nos manieta. Asseveramos: por aqui, onde a abundância material estende a passadeira ao bem-estar, os psiquiatras são um ramo de negócio bem sucedido; na África sub-sahariana a miséria parece conviver com a alegria, como se estes povos rejubilassem por levar a sua vida cercada de miséria.

Porventura o que está mal é a ocidental maneira de ajuizar os outros. Talvez África seja uma lição para a vida fátua que se apodera de nós, sem que consigamos recusar a entrada da fatuidade. O contraste vem em desabono dos ocidentais. Como se explica que a fartança material, com as condições de bem-estar que gera, nos mergulhe numa tristeza irreprimível? Como se explica que sejam pessoas sem preocupações de bem-estar material que enriquecem a classe bem sucedida dos psiquiatras? Do outro lado, no continente negro, milhões permanecem agrilhoados à preocupação da subsistência diária – algo impensável para o cidadão médio dos países ricos. E nem assim perdem a alegria de viver, essa invejável forma de olhar para a vida.

Dirão que é inato. Que os africanos se contentam com pouco. E que do pouco conseguem extrair toda uma sumarenta maneira de viver. Dir-se-á que os africanos percebem que a carência material já basta para mergulhar as suas vidas na iniquidade. Algures do fundo das energias que se renovam, o motivo para celebrar uma vida que se arrasta na penúria. Amarrada ao estigma da penúria, a vida tem que ser festejada nos momentos em que conseguem encontrar forças, num qualquer compartimento estanque, para esquecer as desventuras semeadas no caminho.

Invejo os africanos. Apetece fazer o paralelo com o imaginário que tantas vezes tece a história de Portugal: invocar o milagre das rosas. Numa adaptação às circunstâncias, os africanos fazem o milagre da alegria. Sem saberem, são professores dos ocidentais que teimam em vaguear pela vida, aos tombos, entristecidos, descontentes com a abastança material que, todavia, é o seu oxigénio. Parece que o mundo nasceu de voltas trocadas. Em paragens causticadas pela pobreza, uma força indomável mostra a alegria contagiante. Em locais que se distinguem pela riqueza, povos macambúzios, padecentes de doenças modernas que (quantas vezes) só existem na cabeça de cada paciente.

Acreditasse numa justiça divina, outras dúvidas estariam a pairar sobre a minha cabeça: como pôde este deus agraciar um continente com tanta alegria de viver se o votou à miséria? A interrogação surge com outra cambiante: será um deus injusto, este, que penalizou a alegria congénita dos africanos com o preço da pobreza que se enraizou bem fundo nas entranhas do continente?

Deixo a metafísica para trás. Retomo as imagens, retidas na memória, daquele estádio no Cairo, das animadas claques de apoio às equipas do Congo e de Angola. Lembro-me dos adeptos em festa permanente. No intervalo atinge o auge: têm que se entreter enquanto os jogadores descansam no recato do balneário. Mesmo durante o jogo, é incessante o pulo colectivo que acompanha o batuque ritmado. Parecem mais atentos à coreografia da alegria que ensaiam do que ao jogo que vai acontecendo no relvado. Os felizardos congoleses e angolanos que viajaram até ao Cairo (decerto emanação das oligarquias que sedimentam as cleptocracias respectivas) ensinam que o que está em disputa não é a competição: é a sagração de uma alegria infindável.

Do lado de cá, persistimos no haraquiri: sem razão adejando na melancolia, que não seja por cansaço de estarmos bem. De regresso à metafísica, para concluir que acaso o tal deus existisse, era um deus a padecer de injustiça, a ajuizar pelos paradoxos que campeiam pelo mundo por ele tutelado.

Sem comentários: