5.1.06

O beijo dos namorados

Pela rua fora, de mão dada, ou abraçados como se fossem um só. Os casais de namorados, adolescentes, numa embriagada exibição de afectos. Mostram-no em público, desinteressados dos olhos de reprovação dos mais velhos – carentes, na nostalgia de um passado que ficou imortalizado, algures, distante. Desinteressados dos olhares de inveja, que manifestam desdém pela ridícula figura de quem se entrega a carinhos sem cessar. Adolescentes namorados, só olhos um no outro, como se o resto do mundo deixasse de existir naqueles momentos em que as suas mãos se entrelaçam.

Os casais de adolescentes namorados personificam a descoberta do afecto. Como é coisa nova, entregam-se de corpo e alma no carinho que os faz andar abraçados, na troca de beijos, em carícias nos bancos dos jardins. A descoberta para uma vida que desponta. Vivem o outro com uma intensidade que só a ingenuidade cauciona.

Passeiam-se entre os transeuntes, como se os transeuntes fossem estátuas imóveis. Os outros não existem quando os namorados, do alto da sua adolescente lhaneza, se deixam levar sem rumo num passeio a dois. Como se respirassem em uníssono, como se os seus corações batessem compassados. O tempo das elevadas expectativas. Das promessas eternas que são tão eternas como o desvanecimento dos sentimentos que chega com a alvorada de um novo dia.

Aos que chegam a uma idade que reduz a adolescência a uma nostalgia, a imagem dos pares de namorados que passeiam a enxurrada de afectos provoca ora indiferença, ora curiosidade. A indiferença, quando na bulimia da vida corrente os olhos se perdem no infinito, mergulhados em pensamentos trazidos pela voracidade do quotidiano. Uma amostra do desprendimento do eu, da entrega a coisas elevadas ao patamar das prioridades – o emprego, a carreira, os planos que se materializam ou apenas conduzem ao travo amargo da decepção. Abismo do ensimesmamento, na estreiteza dos laços que outrora aportaram na pessoa amada. Na indiferença, um olhar que se desvia para outro lado. Propositadamente de soslaio, para não convocar as lembranças dos tempos em que os ideais flutuavam com o suave peso das coisas belas.

A indiferença é o corpo de um esqueleto de pragmatismo. Já não há lugar ao que agora entra no rótulo de patéticos afectos. As relações pragmatizam-se. Tornam-se carnais. Perdida a chama da paixão, enterrada com a idade das descobertas, ou com o fogo intenso da descoberta do outro, quando o outro se dá a descobrir, e quando o eu se revela no seu lado belo. Uma entrega recíproca que aquieta o receio da solidão.

No casulo do pragmatismo, emerge o desdém quando um casal de adolescentes namorados pavoneia a entrega apaixonada. Pela cabeça ondeiam palavras: “patético”, “infantilidade”, “exibicionismo”, a espontânea reacção quando a imagem do casal passeando de mão dada entra pelos olhos. É quando o pragmatismo vai ao encontro da indiferença. Que pode ser sintoma de coisa distinta: curiosidade para reviver, em memórias que seja, o que já foi sentido no passado.

A velocidade do tempo presente e a acomodação sentenciada pelo pragmatismo imperador condenam os afectos de outrora a um lugar pequeno. Esparsos momentos, que por não serem assíduos vão perdendo o gosto que a intensidade ingénua das coisas vividas na adolescência trazia. As mãos raras vezes se entrelaçam. Os olhos não se fundem como dantes. E, no entanto, a vida só faz sentido se for vivida com a pessoa com quem foi assinado um contrato de cumplicidade. Cumplicidade. Palavra-chave que distingue o frémito adolescente que cativa os afectos, porque têm que ser continuamente redescobertos. Distingue-o da calmaria que paira no ar quando os anos de vida a dois cimentam um indizível sentimento.

O tempo faz as oportunidades. Tempo para a bebedeira de emoções, quando a imaturidade vagueia, vadia, e as expectativas se sedimentam com a ingenuidade latente. Passam os anos e aprendemos a viver as coisas de maneira diferente. Crescemos: esfumam-se os idealismos, julgamo-nos desapossados da ingenuidade. Embuídos de um pragmatismo que, tantas vezes, nos torna distantes, frios, carnais. Melancólicos?

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