Acabo de me cortar a fazer a barba. Será a falta de paciência, apenas o desajeitado que sou para escanhoar a face; seja o que for, maltrato a pele quando os pelos irrompem para além do que a estética aconselha. A cada manhã em que o ritual de fazer a barba está agendado, o sacrifício de passar o creme pela cara, o sacrifício de empunhar a lâmina e rapar, com o cuidado com a escassa diligência permite, a parca barba semeada cara fora.
É então que, de repente, surge a lembrança de um mito perene: o homem de barba rija. Reconheça-se que não é um mito segregacionista. Não se pense que são apenas homens que se gabam de os ter no sítio que propalam as virtudes da barba rija como exigível barómetro da masculinidade. Muitas mulheres sofrem do estigma. Elas também alimentam o mito, julgando que só cumprem a sua feminilidade, só satisfazem a sua heterossexualidade, se estiverem acompanhadas por um espécime de barba rija, uma máscula figura com abundante pilosidade.
Não venho em defesa da condição “metrossexual” que, consta, está em voga. Não tenho apetência para moldar a figura ao jeito desses homens efeminados que escondem uma sexualidade dúbia. Não que tenha algo a ver com as opções dos “metrossexuais”, que se escondem na ambiguidade e tiram partido de uma aura de mistério que lhes estende a passadeira do sucesso, entre ambos os sexos. Já discorri com abundância em defesa das opções individuais, e do abuso que é opinar sobre as opções dos outros. Falo apenas das minhas próprias opções. Aí sim, a rejeição da “metrossexualidade”, porque nasci homem e, não sendo o paradigma do homem de barba rija, gabo-me da minha masculinidade. Gostar de ser homem.
Talvez seja das poucas vezes que sublinho a virtude do meio-termo. Nem homem de barba rija, na recusa do mito bolorento que suporta uma desigualdade de sexos escorada na anatomia dos sexos; nem homem andrógino, com sinais identificativos do sexo feminino. Em relação à derradeira opção, apenas o sintoma de querer ser o que sou. No respeito dos que nascem com corpos que estão em dissonância com o sexo que domina o espírito. Nada contra os transformistas. É de louvar quem tem coragem de assumir que nasceu com o sexo errado e opta por fazer uma série de dolorosas intervenções cirúrgicas para corrigir o erro genético.
O acto de fazer a barba é coisa que me irrita. Sinal de pouca paciência para o necessário escanhoar, às vezes apetece-me deixar crescer barba pela preguiça de a fazer com menos assiduidade. A natureza não foi contemplativa comigo, dotando-me de uma barba fraquinha – ou, na linguagem dos garbosos machos que corporizam o estereótipo do homem de barba rija, serei um homem de fraca têmpera, ausente a barba hirsuta. O ritual do escanhoamento tem que continuar inscrito na agenda das coisas diárias. Sem que me consiga habituar à ideia de que fazer a barba não é aquele sacrifício quase diário que me faz começar mal o dia.
Às vezes dou comigo a desejar que houvesse um método de extracção definitiva dos crespos pelos da barba. Como existe depilação definitiva que certas senhoras fazem, para eliminar de vez o martírio da depilação que nelas é exigência estética encaixada nos padrões de feminilidade. Curiosamente, agora que vinga a modernidade do “metrossexual”, ouvi dizer que está na moda os homens despirem-se de todas as pilosidades adjacentes que, no sexo masculino, são mais abundantes. Parece que as suas companheiras exigem que o matagal pubescente seja desbastado, para afastar o incómodo que elas sentem quando os corpos se aconchegam em momentos mais calorosos.
Não vou tão longe. Quero conservar as demais pilosidades espalhadas pelo meu corpo. Dispensava de bom grado os pelos que crescem na cara, pelo bem-estar da desnecessidade de me escanhoar. E para que a minha inabilidade para a função não fosse a fonte de feridas faciais que custam a cicatrizar.
3 comentários:
Post interesante e fora do vulgar.
Apenas duas notas; parece-me que confundes o conceito "metrosexual" com androgenia e ambiguidade sexual.Nada disso; o conceito é de homem que se cuida e que toma conta de si em todos os sentidos, quebrando um pouco o tabu de que só as mulheres se devem cuidar.
Penso que é só uma confusão de conceitos da tua parte mas não deixo de também de notar um preconceito latente em todo o texto.Nos anos cinquenta o perfume era visto como complemento feminino.Hoje verificamos que poucos homens não o utilizam;não deixamos de ser menos "machos" ao usá-lo; e porque não, cremes e outros produtos que até à pouco, estavam apenas reservados ao sexo feminino?E a depilação?
Qual o homem que gosta de ver uma mulher com grandes tufos arbóreos debaixo dos braços e com uma barbicha de cabra nos genitais?Penso que elas têm o mesmo direito de exigência estética; é isso que está a acontecer.
Vejo que muitos homens da geração dos 20-30 anos já se depila.Isso faz deles menos homens?
Os conceitos mudam e neste momento mudam a uma velocidade enorme, sendo preciso um esforço para tentarmos entender o que se passa à nossa volta sob o risco de ficarmos congelados pelo frio da nossa sapiência.
Os filhos mais velhos dão-nos essa lição de vida.
Curiosidade: ontem também me cortei ao fazer a barba.
Saudações bloguísticas
Interessante o texto e o comentário.
RJPF
Si, probablemente lo sea
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