5.12.06

A vida é bela no reino dos polícias da moral e dos bons costumes

Temos dias desinspirados, em que saldamos a jornada dizendo que seria preferível nem ter saído de casa. Quer-me parecer que isto aconteceu a Miguel Sousa Tavares (MST) quando acordou para o dia em que escreveu o artigo publicado no Expresso do passado sábado. Arremete com impetuosidade contra uma campanha publicitária da TV Cabo. Proclama imperativos categóricos que me põem a pensar o que seria de nós caso fôssemos governados por uma cabeça deste calibre.

A descrição do gravíssimo evento é feita em termos desabridos: “Está nas ruas uma campanha publicitária de “outdoors” da TV-Cabo que é uma verdadeira infâmia. (…) Expuseram cartazes onde um filho anunciava ao pai que se tinha ido embora de casa porque ali não havia TV-Cabo: “Tchau, pai, vou bazar. Sem TV-Cabo, que estavas à espera?” (…) É inútil gastar tinta a explicar o que é evidente: que esta campanha (…) ofende os valores mínimos do casamento, da família e da vida em sociedade.

É caso para perguntar se a mensagem publicitária é para ser levada tão a sério. É caso para indagar se os sinais enviados pelos outdoors hipnotizam as massas de modo a fazer com que filhos abandonem os lares paternais porque não há TV Cabo. Ou se são a ignição fatal para divórcios quando o chefe de família resiste estoicamente à instalação do progresso em forma de televisão com profusão de canais à escolha. Porventura só MST – e uns quantos polícias da moral e dos bons costumes – para acreditar que a turba é tão acéfala que se deixa ir no engodo da mensagem publicitária, seja ela inteligente ou apenas um caso de indigência mental.

É caso para ir mais fundo na análise: não contribui a TV Cabo, com a miríade de canais, para a desagregação familiar, quando cada membro da família se encerra diante de uma televisão por excesso de escolha de canais (e não coincidência de gostos)? Se está tão preocupado com o sagrado valor do matrimónio, e zela tão pressuroso pelo cimento familiar que agrega os filhos ao remanso do lar paternal até avançada idade, MST devia ser mais ousado: propor a proibição da TV Cabo. Seria o regresso aos saudosos tempos dos dois canais e da profusa escolha que então tínhamos.

Isto porque MST não tem pudor em exigir intervenções exemplares do Estado para pôr cobro à pouca-vergonha dos exageros publicitários. Não hesita em clamar que “a TV-Cabo deve pagar esta ousadia com uma multa que seja suficientemente grande para a fazer lamentar o quanto ofendeu (…); a agência de publicidade que promove a campanha deveria pagar em euros (…) a sua leviandade ética; e o cérebro que concebeu esta coisa reles e mesquinha deveria ser publicamente exposto e convidado a pedir desculpas públicas, sob pena de ter de mudar de profissão.

Eis-nos perante um adepto da lapidação pública. Que venha uma polícia de costumes a vigiar tudo o que se faz na publicidade, para não ser pisado o limite do eticamente aceitável. Só se lamenta que não haja forma objectiva de determinar o que é eticamente aceitável. A menos que depositemos a tarefa nas mãos de um iluminado que fará nossas as suas convicções, as suas preferências. Há quem goste de apascentar um rebanho ordeiro. E há quem se veja na posição de ovelha amansada, pastoreada por um cérebro iluminado que zela pela moral e bons costumes. A síntese de tudo isto: um lugar muito perigoso para viver.

Uma tempestade num copo de água, assim se resume o episódio. A campanha publicitária da TV Cabo não passa de um exemplo da imaginação posta ao serviço do mau gosto. Até não será difícil discernir traços de indigência mental, consoante as luas estejam orientadas na cabeça de quem se depara com o anúncio. Discordo outra vez das certezas categóricas com que MST nos brinda – a ressoar as sentenças de políticos e sindicalistas, quando colocam na sua boca a opinião dos portugueses, como se falassem em nome de todos os portugueses. Ajuíza a publicidade que temos: “com raras excepções, a concepção das mensagens publicitárias é indigente (…). O efeito habitual produzido nos destinatários é o oposto ao pretendido – a rejeição.” Por assim ser, é que as empresas continuam a gastar rios de dinheiro em publicidade; talvez porque a mensagem publicitária – para o bem ou para o mal – continua a chegar aos destinatários, ou a muitos deles, e a influenciar as suas preferências. Por vezes, o wishful thinking é desmentido pelos factos. Não o reconhecer é cegueira, mais uma vez.

Fazer deste anúncio a tempestade que MST fez é excessivo. Sobrevaloriza a importância de um spot publicitário. Poderei estar ao lado de MST na percepção da menoridade intelectual de largas franjas dos consumidores de publicidade. O que não chega para preconizar o patrulhamento de valores sugerido por MST. Desconfio quando os outros querem julgar aquilo que os anónimos e indiferenciados cidadãos devem comer com os olhos.

3 comentários:

Anónimo disse...

Julgo que MST teria como ponto de destino o velho clássico conto do vigário que se conta na Faculdade "se a empresa X não fizer Publicidade poderá então ter os seu produtos mais baratos ao consumidor final?..."
Por estas e por outras é que já deixei de ser "contribuinte" do Expresso há muitos anos...

Anónimo disse...

Eu sou dos que ainda lê o Expresso e acho "piada" à maioria dos artigos do MST. Este, por acaso, não gostei. Pobre da população do país que não sabe consumir esta publicidade. Acho que nesse aspecto, não somos esse país.
E só mais uma coisa, acho que a TV Cabo já ganhou algo com estes anúncios... com este artigo o MST só fez mais publicidade à TV Cabo.
Ponte Vasco da Gama

Rui Miguel Ribeiro disse...

Nunca tendo sido haitué do "Expresso", há anos que o deixei por se ter tornado, do meu ponto de vista, panfletário e pouco (ou nada) isento.
Quanto à publicidade, não a vi, mas pelo que aqui está escrito, a publicidade é imbecil e de mau gosto. Concordo com o Paulo: os consumidores que avaliem a publicidade; se esta for má, as vendas devem ressentir-se. Quanto a Sousa Tavares, é mais um daqueles que se julga investido da verdade suprema e da moral absoluta, debitando sentenças sem recurso à velocidade com que produz fel.