Se há ritual que cumpro com sacrifício é o preenchimento anual da declaração de IRS. Valha-nos a tecnologia que dispensa filas intermináveis à porta da repartição de finanças e a antipatia congénita dos funcionários que colocavam o aliviante carimbo no formulário, não sem antes ostentarem arbitrariedade e presciência que exasperavam o mais fleumático. Agora é pela internet que os contribuintes se desoneram do encargo.
Custa-me compulsar todos os documentos. É penoso o somatório de recibos que não mais terminam, com somas que nunca batem certo em sucessivas tentativas. É pungente ler a verba do rendimento que já ficou retida do lado de lá, a título de retenção na fonte. Lembro-me de um professor usar um eufemismo para rotular a retenção na fonte: “anestesia fiscal”, pois o contribuinte vai pagando por conta e devagarinho. Em todo o caso, é doloroso sentir a percentagem do rendimento embargada no lado invisível do processo. De resto, a alegoria da anestesia fiscal não convence um refractário dos impostos (oxalá o pudesse ser…). Para quem impostos nunca deviam ser pagos, não há qualquer passe de magia na anestesiante retenção que emagrece o rendimento bruto para o angustiante rendimento líquido.
Navegar pelos formulários do IRS é uma aventura misturada com pozinhos de indignação. Lá vem embrulhado o retorcido linguajar dos juristas que dão o seu melhor como mangas-de-alpaca do fisco sequioso. Percorrer todos os campos com a atenção devida é uma tarefa homérica. Campo atrás de campo, na maior parte dos casos a resposta é “isto não se aplica a mim”. Os formulários deviam apelar à criatividade dos contribuintes. Da mesma maneira que é premiada a generosidade dos contribuintes que aceitem fazer donativos à custa do seu crédito de imposto, a criatividade devia ser premiada com descontos nos impostos. Teríamos então uma utilidade social inequívoca nos impostos: laureando a criatividade, um contributo para o crescimento de uma sociedade que teima em afocinhar na mesquinhez e na mediocridade.
Há algures, entre a parafernália de campos que compõem mais um formulário, a possibilidade de inscrever verbas relativas a mecenato a entidades que pertencem ao Estado. Inditosa possibilidade: já não basta a coercibilidade dos impostos, o Estado convida-nos à generosidade com ele mesmo, esperando que os contribuintes tenham um acesso de longanimidade e ofereçam dinheiro que engorda o património público. É como se fôssemos roubados por um meliante desesperado e depois soubéssemos que os impostos que não pudemos deixar de pagar vêm alimentar o rendimento mínimo garantido que o gatuno aufere. Quem gosta de ser espoliado duas vezes?
A retenção na fonte está tão bem orquestrada que agora compreendo a associação à eufemística “anestesia fiscal”. Para um numeroso grupo de pagadores de impostos, o preenchimento dos formulários traz a boa nova final: no acerto de contas, são credores do Estado. As pessoas ficam aliviadas, sabendo que daí a uns meses vão receber uma inesperada maquia. É nesta altura que o contribuinte agradece a ajuda divina que o colocou na posição de credor no deve e haver de impostos. Não lhe custa reconhecer que o Estado afinal é seu amigo, pois a devolução do dinheiro prova que durante o ano andou a pagar impostos a mais.
Eis o equívoco: não há aqui nenhuma bondade. Não fosse suficiente o roubo legal corporizado no imposto que leva aos cofres públicos uma parcela do suor do nosso trabalho, o fisco surge com a imagem magnânima de quem devolve poupanças forçadas ao longo do ano. Não se pergunta ao contribuinte se aceita entregar, a título de estimativa do imposto que há-de ser devido, uma quantia superior à que depois se vem apurar ser a efectivamente devida. Mais uma para o infindável rol de imposições que destroem a liberdade individual.
A perseguição é tão refinada que o cruzamento de dados informáticos simpaticamente lembra aos contribuintes quando eles se “esquecem” de declarar certos rendimentos. Não há mal nenhum nisto, dirão os mais condescendentes com a fobia da cobrança de impostos. Aceitando a derradeira lógica dos cobradores de impostos (ministro das finanças como expoente máximo) dirão que quanto mais forem os infractores a pagar, menos hão-de pagar os cumpridores. Lamento, estão errados. A crer na experiência pessoal, os últimos anos têm sido mostruário de mais impostos pagos. Sendo tão propalado o sucesso no combate à evasão de impostos, seria razoável que a minha factura fiscal viesse diminuindo. O que está longe de acontecer: tem crescido.
Custa-me compulsar todos os documentos. É penoso o somatório de recibos que não mais terminam, com somas que nunca batem certo em sucessivas tentativas. É pungente ler a verba do rendimento que já ficou retida do lado de lá, a título de retenção na fonte. Lembro-me de um professor usar um eufemismo para rotular a retenção na fonte: “anestesia fiscal”, pois o contribuinte vai pagando por conta e devagarinho. Em todo o caso, é doloroso sentir a percentagem do rendimento embargada no lado invisível do processo. De resto, a alegoria da anestesia fiscal não convence um refractário dos impostos (oxalá o pudesse ser…). Para quem impostos nunca deviam ser pagos, não há qualquer passe de magia na anestesiante retenção que emagrece o rendimento bruto para o angustiante rendimento líquido.
Navegar pelos formulários do IRS é uma aventura misturada com pozinhos de indignação. Lá vem embrulhado o retorcido linguajar dos juristas que dão o seu melhor como mangas-de-alpaca do fisco sequioso. Percorrer todos os campos com a atenção devida é uma tarefa homérica. Campo atrás de campo, na maior parte dos casos a resposta é “isto não se aplica a mim”. Os formulários deviam apelar à criatividade dos contribuintes. Da mesma maneira que é premiada a generosidade dos contribuintes que aceitem fazer donativos à custa do seu crédito de imposto, a criatividade devia ser premiada com descontos nos impostos. Teríamos então uma utilidade social inequívoca nos impostos: laureando a criatividade, um contributo para o crescimento de uma sociedade que teima em afocinhar na mesquinhez e na mediocridade.
Há algures, entre a parafernália de campos que compõem mais um formulário, a possibilidade de inscrever verbas relativas a mecenato a entidades que pertencem ao Estado. Inditosa possibilidade: já não basta a coercibilidade dos impostos, o Estado convida-nos à generosidade com ele mesmo, esperando que os contribuintes tenham um acesso de longanimidade e ofereçam dinheiro que engorda o património público. É como se fôssemos roubados por um meliante desesperado e depois soubéssemos que os impostos que não pudemos deixar de pagar vêm alimentar o rendimento mínimo garantido que o gatuno aufere. Quem gosta de ser espoliado duas vezes?
A retenção na fonte está tão bem orquestrada que agora compreendo a associação à eufemística “anestesia fiscal”. Para um numeroso grupo de pagadores de impostos, o preenchimento dos formulários traz a boa nova final: no acerto de contas, são credores do Estado. As pessoas ficam aliviadas, sabendo que daí a uns meses vão receber uma inesperada maquia. É nesta altura que o contribuinte agradece a ajuda divina que o colocou na posição de credor no deve e haver de impostos. Não lhe custa reconhecer que o Estado afinal é seu amigo, pois a devolução do dinheiro prova que durante o ano andou a pagar impostos a mais.
Eis o equívoco: não há aqui nenhuma bondade. Não fosse suficiente o roubo legal corporizado no imposto que leva aos cofres públicos uma parcela do suor do nosso trabalho, o fisco surge com a imagem magnânima de quem devolve poupanças forçadas ao longo do ano. Não se pergunta ao contribuinte se aceita entregar, a título de estimativa do imposto que há-de ser devido, uma quantia superior à que depois se vem apurar ser a efectivamente devida. Mais uma para o infindável rol de imposições que destroem a liberdade individual.
A perseguição é tão refinada que o cruzamento de dados informáticos simpaticamente lembra aos contribuintes quando eles se “esquecem” de declarar certos rendimentos. Não há mal nenhum nisto, dirão os mais condescendentes com a fobia da cobrança de impostos. Aceitando a derradeira lógica dos cobradores de impostos (ministro das finanças como expoente máximo) dirão que quanto mais forem os infractores a pagar, menos hão-de pagar os cumpridores. Lamento, estão errados. A crer na experiência pessoal, os últimos anos têm sido mostruário de mais impostos pagos. Sendo tão propalado o sucesso no combate à evasão de impostos, seria razoável que a minha factura fiscal viesse diminuindo. O que está longe de acontecer: tem crescido.
A isto chama-se engenharia fiscal: mudam-se as regras mil e uma vezes, todos os anos; no discurso oficial, a patranha do costume – com as novas regras, os cidadãos poderão ver aliviada a sua factura fiscal; quando a poeira assenta e a memória se perdeu na lonjura do tempo, poucos se apercebem que as promessas não foram cumpridas. E mais onerosa passou a ser a factura fiscal.
Eu gostava que me aparecesse um Aladino. Só lhe pedia um desejo: a abolição de todos os impostos.
1 comentário:
Ah! A minha empatia é total! Este ano coincidiu com a Quaresma este ritual sacrificial anual.
Pagamos demais e recebemos de menos.
Como dizes e bem, passam a mensagem de que pedindo facturas/recibos todos pagaremos menos. Mentira execrável. Nunca pagaremos menos e eu nunca pedirei uma factura que não reverta directamente para benefício próprio.
A satisfação dos que vão receber uns $$$ de reembolso no Verão é a dos otários, que não percebem que pagaram a mais, antes do tempo e vão receber zero de juros.
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