30.11.07

E depois sobram os lamentos


Sobressaltos interiores. Os caminhos tortuosos percorridos vêm depois dos erros, sempre lamentados como se houvesse lugar a recuar no tempo para o apagar das memórias. Só para que os remorsos não embatam aos gritos contra o peito aberto em ferida. Os lamentos não são a terapia desejada. Só lançam mais sal nas feridas abertas, calcinando-as, numa dor que cresce, insuportável.

No altar dos lugares-comuns que enchem os ouvidos, como se fossem código de conduta inadiável, diz-se que é preferível lamentar os erros do que as oportunidades perdidas. A ousadia, misturada com a ambição típica da natureza humana, explica o archote que, mandam as convenções, é a candeia que alumia o caminho sem retorno. O lamento existe para atenuar as dores da alma que desfraldam os fogos lancinantes de cada vez que a ambição subiu tão alto que esbarrou no vazio do precipício que acama o corpo em queda livre. É o que sobra: diante do erro, um lamento. Um choro interior que colhe a auto-comiseração pelos passos trocados que foram frustração de planos anteriores.

Às vezes, o que se lamenta é um acaso. Acidente de percurso que chega, aleatório, semeando angústia e dissabores. Logo de seguida abrem-se as portas para a lamentação, na imprevidente autoflagelação que convoca a piedade alheia que vem aspergir fragmentos de solidariedade que aquietam as dores interiores. Quando o lamento é um apelo exterior, é do empobrecimento da alma que se trata. Há nesse clamor a carência da tutela dos outros, numa piedade que é um inconsequente pedido de partilha pelas dores do erro cometido, ou do infortúnio suportado. Dá-se o milagre do lamento levar à comiseração, como se a piedade dos outros varresse da memória os erros de que os outros não são responsáveis. E assim a lamentação fermenta a desresponsabilização do eu.

E, no fundo, o lamento nada resolve. Não corrige o erro, não revolve o tempo ido. O lamento não tem o predicado estalinista de refazer os passos já dados. De cada vez que nos entregamos na voragem da lamentação, há um mergulho nas águas profundas onde o eu se demite de si. O lamento é atirar a responsabilidade pelos actos para as catacumbas do desconhecido. As pedras pontiagudas que ferem os pés foram espalhadas pelo caminho por algo de insondável; nunca terão sido semeadas pelo livre arbítrio de quem escolhe um caminho e depois chora o arrependimento de não ter ido pelo outro lado da encruzilhada. É por isso que o lamento é um acto menor de espíritos comprometidos com sucessivos pretextos que trazem o sabor agridoce da desculpabilização. A tentação da desresponsabilização fala mais alto.

Quando o lamento espreita entre as frinchas que escondem a luminosidade serena, é o regresso à infância da irresponsabilidade. A cada lamentação há a exculpação pelos actos cometidos – como se eles jamais houvessem sido cometidos, ou se fosse urgente descobrir pretextos para não suportar as consequências. Na choradeira sem lágrimas que escorre pela lamentação rançosa há mesquinhez, a antítese da altivez de quem não se esconde dos actos cometidos. Os lamentos são o espelho baço onde se esconde a desvergonha de quem não respeita as consequências dos actos cometidos. A petulância que sepulta o que foi feito, com o condão de redesenhar o tempo já passado, de o atrelar apenas a uma melodia agradável, sem as notas distorcidas que são o alçapão onde tombam e de onde se choram os lamentos que mais parecem uivos de cães desafortunados.

À volta dos lamentos, um ruidoso olhar pela penumbra onde está escondida a negação dos actos cometidos. A doce ilusão de que as coisas foram diferentes do que mostra a dolorosa realidade. Um teatro de sombras, onde desfilam personagens que trazem a culpa endossada pelos que se lamentam, pelos que nunca são culpados pelos actos que cometem. É então que a lamentação sobra como último reduto. O último reduto que disfarça o que foi feito.

E depois sobram os lamentos

Sobressaltos interiores. Os caminhos tortuosos percorridos vêm depois dos erros, sempre lamentados como se houvesse lugar a recuar no tempo para o apagar das memórias. Só para que os remorsos não embatam aos gritos contra o peito aberto em ferida. Os lamentos não são a terapia desejada. Só lançam mais sal nas feridas abertas, calcinando-as, numa dor que cresce, insuportável.

No altar dos lugares-comuns que enchem os ouvidos, como se fossem código de conduta inadiável, diz-se que é preferível lamentar os erros do que as oportunidades perdidas. A ousadia, misturada com a ambição típica da natureza humana, explica o archote que, mandam as convenções, é a candeia que alumia o caminho sem retorno. O lamento existe para atenuar as dores da alma que desfraldam os fogos lancinantes de cada vez que a ambição subiu tão alto que esbarrou no vazio do precipício que acama o corpo em queda livre. É o que sobra: diante do erro, um lamento. Um choro interior que colhe a auto-comiseração pelos passos trocados que foram frustração de planos anteriores.

Às vezes, o que se lamenta é um acaso. Acidente de percurso que chega, aleatório, semeando angústia e dissabores. Logo de seguida abrem-se as portas para a lamentação, na imprevidente autoflagelação que convoca a piedade alheia que vem aspergir fragmentos de solidariedade que aquietam as dores interiores. Quando o lamento é um apelo exterior, é do empobrecimento da alma que se trata. Há nesse clamor a carência da tutela dos outros, numa piedade que é um inconsequente pedido de partilha pelas dores do erro cometido, ou do infortúnio suportado. Dá-se o milagre do lamento levar à comiseração, como se a piedade dos outros varresse da memória os erros de que os outros não são responsáveis. E assim a lamentação fermenta a desresponsabilização do eu.

E, no fundo, o lamento nada resolve. Não corrige o erro, não revolve o tempo ido. O lamento não tem o predicado estalinista de refazer os passos já dados. De cada vez que nos entregamos na voragem da lamentação, há um mergulho nas águas profundas onde o eu se demite de si. O lamento é atirar a responsabilidade pelos actos para as catacumbas do desconhecido. As pedras pontiagudas que ferem os pés foram espalhadas pelo caminho por algo de insondável; nunca terão sido semeadas pelo livre arbítrio de quem escolhe um caminho e depois chora o arrependimento de não ter ido pelo outro lado da encruzilhada. É por isso que o lamento é um acto menor de espíritos comprometidos com sucessivos pretextos que trazem o sabor agridoce da desculpabilização. A tentação da desresponsabilização fala mais alto.

Quando o lamento espreita entre as frinchas que escondem a luminosidade serena, é o regresso à infância da irresponsabilidade. A cada lamentação há a exculpação pelos actos cometidos – como se eles jamais houvessem sido cometidos, ou se fosse urgente descobrir pretextos para não suportar as consequências. Na choradeira sem lágrimas que escorre pela lamentação rançosa há mesquinhez, a antítese da altivez de quem não se esconde dos actos cometidos. Os lamentos são o espelho baço onde se esconde a desvergonha de quem não respeita as consequências dos actos cometidos. A petulância que sepulta o que foi feito, com o condão de redesenhar o tempo já passado, de o atrelar apenas a uma melodia agradável, sem as notas distorcidas que são o alçapão onde tombam e de onde se choram os lamentos que mais parecem uivos de cães desafortunados.

À volta dos lamentos, um ruidoso olhar pela penumbra onde está escondida a negação dos actos cometidos. A doce ilusão de que as coisas foram diferentes do que mostra a dolorosa realidade. Um teatro de sombras, onde desfilam personagens que trazem a culpa endossada pelos que se lamentam, pelos que nunca são culpados pelos actos que cometem. É então que a lamentação sobra como último reduto. O último reduto que disfarça o que foi feito.

29.11.07

E a ASAE, não há quem a encerre?


O higienismo militante tem a sua sacerdotisa na ASAE. Todos devíamos agradecer a sua existência. A sua acção incansável, palmilhando todos os recantos do território em busca de pérfidos agentes que cometem atentados contra a saúde pública. Se não fosse a ASAE, haveria mais restaurantes que nidificam na porcaria, mais fraude nas feiras, com uma maré cheia de contrafacção nas roupas e roubos de propriedade intelectual na música e nos filmes. Não teríamos o prazer de ver os agentes da ASAE irrompendo em feiras de artesanato, arrestando chouriços e queijos precisamente artesanais – hélas! –, ou tomando conta de lotas sem aviso prévio, sempre encapuçados e armados até aos dentes.

Será um pormenor – e, como pormenor que é, irrelevante – que ninguém tenha pedido à ASAE para existir. E que ninguém tenha clamado pelo proselitismo da ASAE, que espalha os sedimentos da nova religião que os poderes terrenos querem impor: a conversão forçada à ditadura do higienismo. É uma fobia. Se pudessem acabavam com as bactérias, houvesse decreto com poder tamanho. Incapazes de vergar os mecanismos da natureza, espiam com lupa atenta as bactérias que aparecem onde não deviam. Andam pelos restaurantes, pelas tascas, pelas feiras populares, espiolham bares e discotecas, vigiam o comércio de bens alimentares. Redesenham as regras para que a saúde pública não seja prejudicada por distraídos produtores e comerciantes que ainda vivem na pré-história da salubridade.

Não passa mês sem que a ASAE dê notícias. Lá vêm os agentes, fardados e com capuzes, empunhando G3, como se as pessoas fiscalizadas fossem perigosos terroristas que têm na arrecadação um arsenal ameaçador. Montam o circo com a ajuda da comunicação social, sempre ávida da espectacularidade que prende os espectadores. Varrem tudo a pente fino e, na dúvida, apreendem. São minuciosos. Ao mínimo deslize, apreensão e coima. Encerramento de estabelecimentos. E instruções para o legislador apertar a malha na produção e comercialização. Um rol infindável de novas regras é a cama perfeita para proibições a eito.

No Verão, foi a perseguição às bolas de Berlim vendidas nas praias do Algarve. No Outono, como as gentes deixam de frequentar as praias, mudança de palco. O primeiro frio convida às castanhas quentes que estalam na boca. O aroma que se solta dos assadores tradicionais é apelativo. A diligente ASAE não dorme: a nova proibição é vender castanhas assadas embrulhadas em papel de páginas amarelas ou de jornal. Na arte da adivinhação, aposta-se nas próximas perseguições e proibições. Proibir as feijoadas? O cozido à portuguesa? O algodão doce (porque os fios do açúcar suavemente caramelizado têm uma gavinha de madeira – material banido das cozinhas, pois já nem há colheres de pau)? As francesinhas especiais, pela mistela que compõe o molho bombástico? Os rebuçados da Régua, porque vêm embrulhados em papel que tem contacto com as mãos (lavadas?) das senhoras que os confeccionam? O que mais?

E a ASAE: não há quem a fiscalize? Só para termos a certeza que a ASAE não atenta contra a nossa higiene mental. Sabemos lá se os agentes da ASAE tomam banho todos os dias? E lavarão os dentes ao acordar e ao deitar? O tabaco foi banido dentro da ASAE, ou aplica-se o tão conhecido princípio “olha para o que digo, não para o que faço”? São perfeccionistas militantes da higiene absoluta? É que se a todas as interrogações anteriores a resposta não for satisfatória, é a ASAE que merece encerramento.

Imagino, com deleite, o cenário. Uma brigada irrompendo pelas instalações da ASAE e apreendendo secretárias e respectivo conteúdo, computadores, arquivos inteiros. Os agentes da ASAE detidos em quarentena nas instalações, apenas com direito a alimentação e higiene pessoal necessária. Documentos seriam destruídos, para não sobrarem vestígios das contra-ordenações e encerramentos compulsivos. Toda a ASAE lacrada. Enfim, livres da sanha persecutória da ASAE, haveríamos de rejubilar com o regresso à higiene mental que só a proibição de proibir permite, que apenas a liquidação do tutelar paternalismo atrelado ao higienismo doentio permitiria.

E se depois da quarentena o poder reinvestisse a ASAE, brigadas clandestinas seriam formadas para perseguir os agentes de cada vez que saíssem à rua na febre das apreensões, das coimas, do moralismo da salubridade, das tentadoras proibições. Brigadas para boicotar o trabalho da ASAE, desarmando os agentes e expulsando-os dos locais fiscalizados. Para as chegadas de supetão da ASAE sobrariam as ainda mais surpreendentes acções das brigadas contra-ASAE. É neste delírio que me envolvo quando vejo a pesporrência dos sacerdotes do higienismo militante, espalhando a “autoridade do Estado”, à qual nos temos que curvar. De cada vez que olho para o espalhafato da ASAE, apetece-me mergulhar em hábitos insalubres.

28.11.07

O “beautiful world” das telecomunicações móveis


Eu gostava que o mundo a sério fosse um retrato dos anúncios publicitários das operadoras de telemóveis. Era tão bonito que o mundo fosse assim tão cheio de glamour. E que todos fôssemos modelos profissionais, escorrendo beleza por todos os poros, com as carnes enxutas de gordura, apesar das caras esfíngicas muitas vezes ensaiarem apenas sorrisos esforçados.

O mundo é belo quando visto sob a lente das operadoras de telemóveis. Nem se fale de miséria, cenário tão distante das luzes de néon e dos corpos descarnados mas portentosos na cor dourada de quem apanha sol todo o ano. Não há feiura visível nos anúncios a mais um pacote revolucionário que nos põe viciados no telemóvel. A fealdade à solta nas ruas deve pertencer a um compartimento imaginário que a tortuosa ilusão semeia na nossa cabeça. Que só se solta dessas amarras quando assiste aos anúncios a telemóveis, com a espessa fealdade varrida das imagens.

Os publicitários são os maiores vendedores da banha da cobra. Uns maquilhadores profissionais que têm uma varinha de condão – a que chamam criatividade – pródiga em limar as arestas que descompõem o cintilante espelho onde só a beleza desfila. É o que se vê nos anúncios: uma embriaguez de beleza, um mundo todo ele estético, perfeito, com as medidas a preceito dos manuais dos estilistas que ditam a moda do momento.

A aliança entre publicitários e mundo da moda é uma conspiração que nos mergulha na mais profunda depressão. Se dermos conta das imagens feéricas da publicidade aos telemóveis, de cada vez tentados a acreditar que o mundo lá fora é como aparece retratado nos anúncios, depois saímos à rua e a decepção depressa invade as entranhas. Uma terrível decepção: o mundo anda nos antípodas da beleza ideal dos anunciantes de telemóveis. Há pessoas gordas e disformes, faces feias, muito feias, corpos de formas distorcidas, abundantes adiposidades que flutuam no desconhecimento dos espelhos, verrugas incorrigíveis, joanetes à mostra, buços em velhas mal-humoradas, feiura disfarçada com botox, cirurgias estéticas e quilogramas de cosméticos. Aqueles corpos esbeltos que se passeiam pelo ecrã em câmara lenta, como se o mundo andasse devagar no predicado mágico de adiar a sentença final, pertencerão a uma reserva protegida de onde nunca saem sem escolta.

E, todavia, é a fealdade que vinga nas ruas. Nem tanto isso importa. Só o ilusionismo que macera a vista, uma anestesia que engana olhos desprevenidos. Convite a um hipnotismo colectivo. Como se saíssemos à rua e toda a gente parecesse saída das passerelles, novos e velhos, todos irmanados no trajecto da moda. Eles e cada um de nós. Não seriam apenas os outros, as pessoas com quem nos cruzamos, a exalar uma ofuscante beleza que retiraria todos os tons ocres do mundo cansativo – que já nem seria cansativo. Seria cada um o expoente dessa beleza. Todos entraríamos no escol dos eleitos pela beleza. A feiura diluída – e a palavra feiura apenas um arcaísmo, a museologia dos tempos em que o mundo era um lugar feio para habitar.

Depois viria a confirmação da ilusão num só acto. A extinção da fealdade retirava significado à beleza. Já não haveria olhos esbugalhados diante dos corpos que só se encontram nos anúncios a telemóveis. De tão perfeito, a perfeição do mundo tornaria num lugar banal, indistinto, doentiamente homogéneo. Começamos então a despertar, um a um, da letargia a que havíamos sido levados pela mirífica publicidade. Ainda a tempo para perceber o engodo. Era apenas o incensar dos pesadelos que vivemos acordados. A tocha acesa, a publicidade onde só havia espaço para jovens manequins no que a modernidade convencionou chamar “beleza”. No fim do túnel estreito apenas alumiado pelas imagens da publicidade revelara-se toda a estreiteza quando os corpos esbeltos deixaram de invadir o ecrã. Ficava à mostra o lugar acanhado, pontuado por uma luza baça que torna tudo doentiamente onírico. Como oníricos são os anúncios aos telemóveis e onírico é o cortejo incessante de caras e corpos que transpiram beleza, toda a beleza por cada milimétrico poro, a beleza irresistível, a beleza invejável.

O embuste da publicidade. Assim que acordamos, tão depressa ficamos a perceber onde vagueia o pesadelo acordado e está o sonho doce dos olhos cerrados. Uma linha ténue, na balsâmica imagem composta pelos engenheiros da publicidade, mestres maiores do engodo das almas. Rivais dos políticos na arte sublima da mentira. E sacerdotes dos psiquiatras, seus abastecedores de abundante matéria-prima aprisionada na decepção doentia.

27.11.07

O orgulho heterossexual é homofóbico?


Há anúncios semeados pelas cidades em cartazes que chamam a atenção das pessoas enquanto esperam na paragem do autocarro. Apelam ao “orgulho hetero”. A ideia partiu da cerveja Tagus. Adivinha-se a intenção: o protótipo do consumidor de cerveja é o típico macho lusitano, que exibe orgulhosos traços marialvas, gaba-se das conquistas entre o sexo feminino, coleccionadas a preceito. Por isso o cartaz expõe um exemplar do sexo masculino pairando sobre um séquito de meninas, encimando os dizeres “orgulho hetero”.

Algumas feministas poderiam exibir urticária. Não terão protesto contra o pregão “orgulho hetero” – sobretudo as que, ainda que feministas exaltadas, não consigam reprimir a sua excitada atracção pelo sexo oposto. Hão-de protestar contra a imagem que retrata o “orgulho hetero” na campanha publicitária da Tagus. O homem com um ar de satisfação ao ostentar as conquistas femininas. E, mesmo aqui, aposto que as feministas do lado heterossexual pouco terão a protestar: afinal elas sabem que também podem exibir uma colecção de conquistas masculinas, na sua forma particular de mostrar orgulho hetero. Contudo, reprovam a imagem do D. Juan pairando sobre as meninas que o apaparicam. A imagem deixa a impressão de dois patamares que cimentam a desigualdade contra a qual se insurgem: o homem no topo, as mulheres submissas num plano inferior.

Tudo isto, e mais ainda, poderia ser motivo de prosa abundante entre os sectores feministas. Até poderiam destapar o argumentário da coisificação da mulher, desta vez de uma forma mais nítida. O que se leu nos dias que se seguiram ao conhecimento da provocante publicidade da cerveja Tagus não foi nada disto. As feministas calaram o protesto, porventura porque não havia motivo para protestar. Foi o lobby homossexual que reagiu, por vezes com uma verbosidade a raiar a violência. Reagiu indignado. Achou que ostentar por via de publicidade o “orgulho hetero” é uma ofensa aos direitos dos homossexuais. Consideraram-se atingidos na sua honra. Terão achado que o cartaz era sinal de exclusão. Porque invocar o “orgulho hetero” é o contrário de defender o “orgulho homossexual”.

Nesta discussão encontro-me à vontade. Só não registo o meu “orgulho hetero” porque os orgulhos não se ostentam. E repugnam-me alarves exclusões dos homossexuais. Todos os direitos garantidos aos heterossexuais devem ser estendidos aos homossexuais. Da mesma forma que acho deplorável que os defensores dos direitos dos homossexuais neguem manifestações de quem se encontra do lado contrário da barricada das preferências sexuais. Acho perturbante que o lobby gay se sinta acossado e até numa campanha que tem tanto de simbólica como de patética leia uma intenção homofóbica. Alguns protestaram, achando inadmissível que haja publicidade que convida os heterossexuais a afirmarem o seu orgulho em o serem. Na sua tacanha maneira de ver o mundo, quem exibir orgulho heterossexual afirma repúdio pelos homossexuais. Deviam saber que o mundo não se resume a dicotomias próprias da pequenez mental. Que alguém afirme “orgulho hetero” não é sinónimo de exclusão dos homossexuais.

Não é verdade que há paradas do orgulho gay? Impuseram-se contra o imobilismo social, que durante tantos anos ostracizou os homossexuais. Hoje é impensável, em sociedades abertas e tolerantes, impedir essas paradas. Que interessa se escorrem folclore? Que interessa se chocam os espíritos mais conservadores – que sempre poderão mudar de cidade nesse dia, ou apenas ignorar a parada que desfila diante dos seus narizes. Alguém proíbe o orgulho gay de se mostrar? Impensável na modernidade que vivemos. Ora se são os grupos de interesses homossexuais que tanto reivindicam uma igualdade de estatuto, que desvario incoerente os leva a negar a pretensão da orientação sexual diferente da deles afirmar o orgulho em ser o que é?

O que é preocupante é a maneira totalitária de pensar dos activistas homossexuais. E a confusão mental em que laboram, ao denunciarem intenções malévolas onde elas não existem. Quando deparo com estas reacções absurdas, que procuram impor a sua maneira de ver o mundo, impedindo quem deles diverge de vir a público afirmar o que são, tenho uma súbita vontade de andar a apregoar aos quatro ventos como tenho orgulho em ser heterossexual. Sem ter necessidade de o fazer; apenas para exaltar um defensivo espírito de contradição que se oponha a totalitarismos de minorias que se escudam no absurdo preceito da discriminação positiva, tão na moda. Tão na moda que tem os custos que se vêm.

Aos homossexuais devia sobrar uma atitude mais discreta. Como têm a liberdade de afirmar a sua orientação sexual, também têm a liberdade de não se reverem no “orgulho hetero”. Ninguém estaria à espera que se fossem inscrever no sítio da Internet onde se cultiva aquele orgulho. Há uma ilação a retirar: quem afinal é conservador, é o lobby gay.

26.11.07

Somos iconoclastas? (“Control”, de Anton Corbijn)


Parti com expectativas elevadas, mas ao mesmo tempo com receio, ao começar a ver o filme “Control”. Apesar das recensões ao filme – há sempre que as descontar, tantas as vezes a crítica parece formulada a um filme diferente daquele que acabo por assistir – temia que ali houvesse um retrato semi-endeusado de Ian Curtis. Ora, o problema que tenho com quase hagiografias é o de me apresentarem heróis quando renego a essência sobre-humana dos artistas que aprendemos a admirar.

Reconhecer um génio não é o mesmo que o endeusar. Uns chamar-lhe-ão endeusamento. Outros terão a frontalidade para entronizar o artista na condição de herói. Há ainda aqueles que sentem um enorme reconforto ao verem este filme, que os faz recuar vinte, vinte e cinco anos e retomar o fio à meada com um final de adolescência excitante nas descobertas de um universo musical que fervilhava de originalidade. Curtis e os Joy Division estão entre as referências obrigatórias no meu universo musical. Arrisco a dizer que são todo um lastro que preenche as influências da muita música que continuei a ouvir pelos anos fora. Ainda hoje, quando novos grupos se dão a conhecer, a crítica apressa-se a colocar o rótulo de “novos Joy Division” (como se fosse urgente retirá-los da sepultura). Por isso temia o filme. Temia um retrato que confundisse o génio com um herói a meio caminho do endeusamento. Em tudo o que isso representa de negação do Ian Curtis genuíno – ou, pelo menos, do Curtis que quero acreditar ser o genuíno.

Admito que a desconfiança com que parti para o filme não ajudou na sua apreciação descomprometida. Quando assim acontece, o preconceito toma conta da análise. E, no entanto, fui surpreendido por outra faceta que julgava acessória na vida de Curtis. É que o filme desdobra-se no tormento interior de Curtis, dividido entre duas mulheres, entre a mulher com quem tinha casado e que lhe dera uma filha e a amante que trabalhava na embaixada belga. Os dilemas interiores que o consumiam, aprisionado entre as duas mulheres que eram os dois hemisférios da sua vida. E de como mergulhava numa mortificação interior, entregue nos braços de um egoísmo e da covardia que o impedia de parar de agredir, de maneiras diferentes, as duas mulheres.

Eis a minha decepção com o filme: não está longe de uma lamechas historieta de amor. Decepção, porque contraria o que conhecia da vida de Curtis. Uma versão a preto e branco do romantismo. E ainda que o filme procure tecer as pontes entre músicas resguardadas na intemporalidade e a vida de Curtis, impregnando-as com a influência das angústias interiores pelos desacertos amorosos, não deixa de ser um filme dominado pela divisão de um homem entre duas mulheres. É nisto que repousa a desilusão: pensava que a vida de Ian Curtis tinha outra densidade, no esteio de uma sensibilidade invulgar de que ficaram fragmentos poéticos inigualáveis. O filme tenta provar que por detrás da veia poética de Curtis havia a encruzilhada amorosa.

Chego ao fim e fico entregue aos pensamentos que ainda vogam sobre o filme. Hesito entre a resignação perante o lado mais humano de Curtis, afinal um homem como outro qualquer que tinha sentimentos e que se mortificava pela covardia diante das duas mulheres. Há aqui a ambiguidade do filme. Por um lado, afinal não os traços de deificação de Curtis que eu tanto temia. Por outro lado, a faceta não conhecida da vida de Curtis, dando a impressão que toda a sua obra foi marcada pela encruzilhada dos amores.

Nem sei o que preferia. Se um retrato quase hagiográfico, que contemplasse a sede pela iconoclastia que uma geração que viveu o frémito dos Joy Division acolheria com simpatia, na nostalgia do passado que vai sendo distante. Ou se a revelação de um Curtis mais humano, mas ao mesmo tempo mortificado por um desvario lamecha que, num registo alternativo das vulgares comédias românticas, traz à superfície o “lado B” do romantismo que não deixa de ser romantismo.

As biografias são sempre polémicas, porque não reúnem unanimidade na apreciação. Quantas vezes as pessoas que lidaram de perto com o biografado divergem em detalhes como em episódios marcantes. Assim acontece com o suicídio de Curtis. Há vinte anos tinha lido, numa biografia da sua vida, que Curtis era uma alma atormentada pela epilepsia que se revelara tardia. E também atormentado por injustiças que o mundo atirava contra a sua mente, que o dilaceravam para além do comum numa pessoa comum. Lera então que Curtis deixara uma carta antes de se suicidar. E que nessa carta revelara a incompreensão pelas mortes absurdas em Angola, de como o tribalismo animalesco consumia as energias de um povo já de si entregue à miséria. O filme ignora-o. Não há carta alguma, apenas o cansaço derradeiro após mais um ataque de epilepsia e a cedência pela incapacidade de sair da encruzilhada amorosa.

No final do filme, a ficha técnica faz revelações sintomáticas. Baseou-se na biografia de Curtis da autoria da sua mulher, Deborah Curtis. E, por coincidência, a co-produtora chama-se Deborah Curtis.

23.11.07

Os coices dos senhores juízes


Continuo maravilhado com a superior inteligência dos magistrados. São um órgão de soberania. Exigem respeito. Colocam-se acima de qualquer suspeita e não admitem que a sua competência seja questionada. Ofendem-se quando alguém contesta sentenças, ainda que elas soem ao público como manifestações de insensibilidade. Pairam sobre os comuns dos mortais, sobre quem aplicam a sua excelsa administração da justiça. Pairam com uma capa de impunidade – ou não se aprenda nas faculdades de direito que os juízes beneficiam de um estatuto de “irresponsabilidade”.

De vez em quando há sentenças que chocam as pessoas. Não se percebe como um juiz, no seu juízo perfeito, possa assinar uma sentença que, aos olhos do grande público, é a denegação da justiça. O contrário do que se espera de um magistrado. Convém esclarecer que perorar sobre sentenças é um risco nem sempre calculado. Há muita comunicação social, muitos comentadores públicos, muito povo ignaro que no seu íntimo está convencido que faria melhor justiça (popular) do que a produzida pela magistratura. Muita gente sentencia as sentenças sem as conhecer nos seus detalhes. Os casos dos tribunais vêm para a praça pública apenas nos pormenores que alimentam a curiosidade da comunicação social. Escapam aspectos importantes que levam os juízes a julgar como julgam. E, se mais não fosse, há uma fé dogmática nos tribunais – na sua independência, na sensatez de quem aplica o direito. Na crise da democracia moderna, e por entre o cepticismo arreigado que merece a classe política, uma confiança higiénica nos juízes.

Só que a magistratura não escapa à teoria das maçãs podres. Há sempre uma maça apodrecida entre um cabaz de maças sãs. Os juízes são humanos; falíveis, portanto. O que inquieta observações imparciais é a pesporrência dos magistrados, que se acham possuídos de um dom divino que os coloca a coberto do erro. E se, no seu íntimo, discernem o erro, não têm a humildade de o admitir. Na infalibilidade, rivalizam com os médicos. Talvez por isso, e porque sabem que planam na superior condição de órgão de soberania, elitizam-se. Se é errado tomar a árvore pela floresta, é tão errado não isolar as maças podres que, não sendo denunciadas, infectam o cesto onde se acomodam as outras maças.

Há dias, mais um episódio de justiça duvidosa. Um cozinheiro de um hotel foi despedido por ser portador do vírus HIV. O hotel temeu pela saúde dos clientes – ou que os clientes, sem se saber ao certo como teriam conhecimento de que havia um cozinheiro infectado com aquele vírus, começariam a debandar para a concorrência. O cozinheiro contestou o despedimento em tribunal. Que deu razão ao hotel. Houve recurso para tribunal superior, que voltou a dar razão ao hotel. Há aqui um problema de redobrada intensidade: não foi um juiz, um tribunal apenas, a dar razão ao hotel. Foram dois tribunais, seis juízes pelo menos, a concordarem que aquele cozinheiro não podia continuar a trabalhar. Pela saúde dos clientes e, quiçá, dos colegas de trabalho.

Como adverti lá atrás, não li as sentenças dos tribunais. Li em vários jornais relatos sobre o caso – e admito haver aspectos importantes que terão escapado à lupa da imprensa. Retive informação que deixa a impressão das sentenças se afastarem dos cânones da justiça. É que fazer justiça não é contrariar a ciência. Testemunhos de cientistas qualificados asseguram a impossibilidade do suor e da saliva de uma pessoa infectada com HIV serem fontes de contágio da doença. E é impossível o sangue vertido sobre alimentos (como se, em si, a probabilidade de isso acontecer fosse elevada) contaminar quem os ingira, mesmo que esta pessoa tivesse feridas na boca. Contou mais o testemunho do médico ao serviço do hotel, que por estar nessa condição enviesou a ciência e convenceu os juízes dos elevados riscos de contágio se o cozinheiro continuasse a trabalhar no hotel. Porventura o cozinheiro terá falhado por não ter levado a tribunal depoimentos de consagrados cientistas que haveriam de convencer os juízes, a custo, de que a ciência estava do seu lado.

De tudo isto sobra a sensação de que os juízes, do alto da sua iluminada inteligência, se sobrepõem ao conhecimento científico. De que valem anos e anos de investigação científica, feita por exércitos de pessoas qualificadas, se depois vem um juiz proferir sentença que passa uma esponja sobre essa ciência? De que valem teses de doutoramento, investigações às vezes premiadas, se depois um iluminado magistrado assina uma sentença que faz tábua rasa desse conhecimento? Teremos juízes a reescrever a ciência, mesmo nada sabendo dela.

De repente, ocorre-me uma analogia (ferramenta técnica de que os juízes se servem, ocasionalmente, quando julgam): uma analogia entre estes juízes e o clamor popular quando uma horda inflamada reclama por “justiça popular” (uma contradição de termos). Os magistrados nem querem ouvir falar da tal “justiça popular”, porque o povo não tem qualificações para fazer justiça. E os juízes, têm qualificações para ultrapassarem o conhecimento dos cientistas? Os juízes estão para a ciência como o povo inflamado, que reivindica a justiça pelas suas próprias mãos, está para a justiça.

22.11.07

A liturgia do hino


Há mais de vinte anos que não assistia ao vivo a um jogo de futebol da selecção nacional (por hoje, parolamente apelidada “clube Portugal”). Havia um desafio pessoal na deslocação ao estádio. Intrigava-me a reacção ao hino entoado por mais de quarenta mil pessoas. Haveria um arrepio a percorrer a coluna vertebral, sinal de emoção incontida que nem sequer o lado racional que renega o patriotismo saloio conseguiria liquidar?

Já sabia, ao ser espectador pela televisão, que o hino não me leva ao arrebatamento. Interpreto-o como nota do individualismo que me traz pelos caminhos da denegação da nacionalidade. Respeito quem sinta exaltação no acto colectivo de entoação do hino. Exacerbação que me diz nada. Durante os minutos do hino, passam imagens ora dos bravos soldados que defendem as cores da bandeira no terreno de batalha, ora de espectadores que cantam a pulmões inteiros o hino. Não há emoção a tingir as minhas veias. Ou, como diria Eugénio de Andrade, não há nada ali que me faça pedir água.

Ontem, quando as pessoas se levantaram ao ser anunciado o hino, notei logo o enorme respeito que nutrem por um dos símbolos de pertença. Não se canta o hino sentado. O pôr-se em pé é a genuflexão sentida diante do hino que faz de nós a mesma massa. Que, dizem, nos irmana na mesma pertença. Nem que seja durante três minutos. Em três minutos que sejam esquecem-se as desavenças no trânsito, os insultos que gostamos de atirar aos concidadãos, a mesquinhez recíproca, o apoucamento que nos remete para as catacumbas dos povos, a pequenez nacional. Em três minutos regressamos aos tempos da heroicidade histórica. Pelo cimento do hino somos, num abraço só, uma geração orgulhosa da pertença lusitana.

Enquanto as gargantas arranhavam num profundo sentimento patriótico o hino, olhava em redor, entregue a um sepulcral silêncio. Tentava medir o pulso da exaltação que percorria as pessoas à minha volta. Cada estrofe era entoada como se fosse a última vez que o hino era cantado. Havia ali, naqueles patriotas, soldados dispostos a entregar o corpo às balas que ousassem penetrar a sagrada bandeira onde está arpoado o escudo armilar. Ou talvez não. Seria apenas uma liturgia, o dedilhar de um ritual. E como todos os rituais, perfumado pela irracionalidade, perdido o rasto das razões que caucionam a entoação exaltada do hino e da pertença. No hino, uma religiosidade. Sem explicação. Os mesmos que se aprestam a amesquinhar a sua pertença, envenenam o cântico excitado do hino.

Dirão que aqueles três minutos são a essência da lusitanidade. Que a escassez substitui, pela intensa qualidade, os dias, meses e anos em que a pertença é apoucada. O que reafirma a metafísica do hino. A deificação do hino, como se afinal cada um fosse, unido pela pertença a uma bandeira, deus de si mesmo. E enquanto a turba desfiava as estrofes, porventura sem perceber algumas das palavras lá contidas, interrogava-me se cada patriota não exaltava a sua existência individual enquanto peça de uma engrenagem a que se vulgarizou chamar “país”. O hino será um ardil para convencer as massas que somos um só, não o somatório de peças aleatórias, mas um povo que cumpre um destino histórico. E o redil que acantona na pertença necessária, um acto sentido que todavia se perde na inconsequência da religiosidade.

Ouvia o hino da mesma forma que ouço o “pai-nosso que estais no céu” das escassas vezes que tenho que frequentar missas (funerais ou missas de sétimo dia na impossibilidade de me massacrar com a ida a um funeral). Como nas missas, quando os crentes entoam maquinalmente a “oração que o senhor nos ensinou” (como prescreve o sacerdote), no hino havia a contradição da exaltação do cântico de mão dada com as estrofes entoadas que se perdiam na opacidade do seu significado. As pessoas continuavam a gritar bem alto, num coro impressionante que cobria toda a cidade.

Como em qualquer misticismo, em qualquer religiosidade, ali no estádio mais de quarenta mil pessoas num hipnotismo colectivo que durou pouco mais de três minutos. E eu, num longo bocejo entaramelado com o lamento de ser incapaz de abrir a boca e dedilhar o hino. Confirmei as suspeitas. Dos arrepios interiores, nem num esgar. Em meu redor, todos cantavam. Todos perfaziam a liturgia. O mal seria meu, ovelha tresmalhada no meio de um ordeiro rebanho.

21.11.07

A política fala futebolês


Riqueza semântica, ou apenas a influência do jogo da bola, tão sacralizado na santa terrinha? Escutava o noticiário na rádio. Havia denúncias à batota que o governo está a ensaiar para que a meta do défice orçamental seja cumprida. O truque é apertar com as cobranças de impostos atrasados. O director-geral, rapaz de bons ofícios para o mister propagandístico do regime, terá dado instruções para os funcionários das finanças se concentrarem na cobrança destas dívidas. É que o cobertor está curto e o frio (o risco de defraudar promessas tão enfatizadas) aperta.

Foi então que um deputado do CDS, com voz tão arrastada que até dava sono, quebrou o tom monocórdico e teve uma tirada de mestre (para quem achar que a originalidade se mede pela bitola do “desporto rei” – passe o lugar-comum). Acusou o governo de estar a “entrar a pés juntos” sobre o contribuinte. Ora as entradas a pés juntos têm sanção de cartão amarelo. Aliás, a federação internacional, preocupada com a integridade física das vítimas destas entradas, instruiu os árbitros para puxarem do cartão vermelho.

Pode dar-se o caso dos contribuintes driblarem os cobradores de impostos. Os mais capazes hão-de puxar lustro à veia imaginativa e descobrem fugas lícitas aos impostos. E assim o dinheiro ganha asas e aterra em paraísos fiscais, para desespero dos tacanhos cobradores de impostos caseiros, a quem o tapete escorrega debaixo dos pés, contristados com uma mão vazia e outra cheia da mesma coisa. Os menos aptos, e que ao mesmo tempo forem atreitos a expedientes que pisam o risco da ilegalidade, hão-de ser acometidos de amnésia. Contando que o esquecimento (de pagar impostos) seja contemplado com a próxima amnistia que políticos imensamente generosos decidirem assinar.

Só que este é um jogo viciado. Um dos jogadores é árbitro ao mesmo tempo. Não é insólito nos campos de jogos: árbitros agraciados com prendas, desde gratificações simbólicas a ofertas vistosas, dadas por dirigentes sem escrúpulos. É onde mora o domínio da falsidade desportiva (por antinomia com a sacralizada, mas oca, verdade desportiva). Onde a falta de escrúpulos conta mais que os méritos dos praticantes, no conluio com os homens do apito. Até aqui as pontes entre a política e o desporto são incessantes. Um governo é denunciado nas manobras de bastidores que maquilham o défice orçamental anunciado com pompa. Na cerimónia que fez o anúncio, a imagem de um quase milagre. Agora que o ano está a gastar as últimas folhas do calendário e já se percebeu que o dinheiro roubado através dos impostos foi inferior às previsões, desfralda-se a cosmética contabilística. É como se o jogador tivesse na boca o apito que marca o penalti que ele julga ter sido feito sobre si mesmo.

Se calhar faz falta um apito dourado para desmascarar estas operações de cosmética. Que compare o que foi prometido, em tom tão solene e com um grau de certeza inabalável, com os resultados. E depois pedir responsabilidades. Há árbitros que têm descanso compulsivo por um par de jogos quando fizeram asneira em proveito de uma equipa. Como há jogadores que passam da equipa titular para o banco de suplentes quando o desempenho é medíocre e a equipa se ressente. Há até aqueles que, de tão fraquinhos, são emprestados a equipas que navegam em divisões inferiores. Mas raramente há disto na política – e menos ainda quando a prosápia encerrada na totalitária maioria absoluta cultiva o autismo de quem governa. Somos convencidos – ou, pelo menos, tenta-se – que a equipa é de primeira água. Quando a teimosia faz soar os sinos em sinal de alarme, é o timoneiro que dá o mau exemplo. É ele que merece receber admoestações pela teimosia que lhe custa uma sucessão de tiros em cheio no pé, de cada vez que os erros de casting insistem em abrir a boca e asneirar.

Retomo a expressão – ainda estou para perceber se criativa ou se nivelada pelo mau gosto da analogia com o futebol – da “entrada a pés juntos”. Às vezes, o agredido fica estendido no chão, contorcendo-se. É o que se passa quando pagamos impostos e notamos que a contrapartida é medíocre. Só que às vezes a vítima da entrada a pés juntos fica irada e riposta com a mesma agressividade. Lá vão os engalfinhados tomar banho mais cedo, agraciados com cartão vermelho. Pena é que os contribuintes estejam ainda mergulhados na inanidade cívica. Que os que pagam impostos paguem sem protesto.

Pode ser que à custa de algumas “entradas a pés juntos” os contribuintes lentamente se rebelem, desferindo certeiro pontapé no traseiro de quem “entrou a pés juntos”. Os homens da ciência política chamam a isto “votar com os pés”. No traseiro de quem ocupa o poder. Para assim o desocuparem. Às vezes, os males trazem o seu bem. Só suspeito que, perante a horda impassível, venham as “entradas a pés juntos” que vierem que o árbitro nem sequer marca falta.

20.11.07

Quem inventou o ódio?


Há tortura de cada vez que vejo derramado ódio, visceral ou não. Ódio em estado puro que destila a violência, ou a exclusão, às vezes a morte sem significado – como sempre a morte é destituída de significado. Outras vezes sinto a suprema ignomínia do ódio, quando é excitado apenas pelo lúdico prazer.

Ainda aprisionado às correntes do pessimismo antropológico, por ver que a história da humanidade é um longo cortejo de ódios que acentuam o lado negativo das gentes. A contemplação autodestrutiva: é que o ódio pelo outro é uma exibição perene de autofagia. Quem derrama todo o ódio não percebe como vem ao de cima uma repugnante essência. Não me consigo convencer do contrário: quem odeia é odioso. Possuído de vapores malignos que incendeiam a mente em pavorosos cenários, à mistura com delirantes teorias da conspiração que mostram um tormento interior.

Há laivos de ódio em manifestações que ainda não atingiram esse patamar. A vingança, por exemplo. A urgência de não deixar sem resposta actos que ferem alguém. De preferência com uma reacção ainda mais requintada, ou não houvesse o reino dos lugares-comuns convencionado a vingança que se serve fria. Como se fosse um punhal que penetra o dorso enregelado, logo tomando o corpo com uma dor lancinante que, num instante, passa do frio gélido a uma quentura insuportável. Como insuportável é a vingança, um rasteiro sentimento que amesquinha e derrota os vingativos que ficam reduzidos a uma pequenez nem simbólica. A muita vingança praticada é o terreno semeado para que vingue um ódio interminável.

O pior é que a vingança é sacralizada. Em mensagens subliminares. Fazem-na, a rodos, os governantes. Livros e filmes e peças de teatro que são manuais da arte de bem praticar a vingança. Até episódios que parecem insignificantes, como um anúncio publicitário que, a coberto dos encómios a um certo produto, vangloria a vingança. O pior é o convite à entronização destes sedimentos frívolos, como se fossem um necessário código de conduta para a convivência em sociedade. Diria, mais do que para a convivência, para a sobrevivência. Quem quiser escapar aos tentáculos da vingança, como pretexto para não cair no insidioso ódio que tortura a carne, tomba no alçapão da ingenuidade. São as vítimas preferidas dos que trepam escada acima sem olhar a quem calcam.

A metafísica encerra a sua contradição. Como pode um deus, um deus qualquer, ser complacente com o ódio? Como convive um deus, um qualquer deus, com as malfeitorias de que é testemunha, a cada minuto que passa, impotente para as liquidar? Na sua putativa grandeza, o arquitecto da natureza dos Homens é incapaz de os domar, de impedir que resvalem pelo cano do esgoto onde se perde a sua dignidade. E não apenas a dignidade dos humanos, mas a sapiência do deus maior que sucumbe às mãos da maldade que incendeia o ódio dos Homens. O ódio é apenas uma distracção divina? Ou a prova da sua ausência.

Dizia atrás que a História dos Homens está repleta de um cortejo de ódios, numa trajectória autodestrutiva. Os que discordem do cepticismo militante dirão que mais valiosas são as provas de edificação, tudo o que foi construído pela espécie humana. Que é esse lastro que se sobrepõe aos incessantes actos de indignidade perfumada pelo ódio nutrido pelos Homens. Discordo. A natureza das coisas ensina que o que leva tanto tempo e edificar pode ser derrubado num instante. É esse o poder irrefutável do ódio. Maligno, com uma capacidade destrutiva inigualável. Onde o ódio toca com a sua mão envenenada, raramente ficam fragmentos que revejam a reconstrução do que foi derrubado. Há no ódio a devastação radioactiva que consome tudo em redor, nada deixa de pé, desertifica por longos anos, espalha doenças mortais sem cura conhecida. É um percurso sem retorno. A cada passo dado, o veneno ácido derramado mortifica os alvos do ódio.

Mas o pior do ódio é que nele se consome quem o destila, como se houvesse uma bílis que derretesse as entranhas até que nada restasse para testemunhar a consumição final. O mal, mesmo, é que através do ódio entra-se na universidade onde se aprende a vomitar a sua própria morte.

19.11.07

Porque falta sal ao Outono


O restolho outonal anuncia os frígidos ventos que tardam. Chuvas intempestivas que demoram a chegar. Não será pelas explicações dos novos arautos da desgraça – os ambientalistas – que se desenham as razões do estio em pleno Outono. É nos humores dos elementos, variáveis, que manobram por entre os extremos das estações. Ora secas e calorosas, ora prantos de vendavais e chuva incessante. A normalidade que passou à condição de excepção. Ao corpo, resta habituar-se.

E, no entanto, parece que o corpo estranha as estações trocadas. Carente da chuva que chega com os ventos atlânticos, o corpo entrega-se a uma secura de emoções. As ruas estão cheias das folhas acobreadas que tingem a falta de humidade. Mais do que noutros Outonos, quando os pés calcam as folhas sente-se um ruidoso estalido, sinal das folhas inertes que tombaram exangues de água. Dá-se o efeito de contágio aos corpos, como se a aridez que estala nas folhas pisadas subisse pelo corpo e se apoderasse dele. Que fica impassível diante das tragédias, inerte aos afectos, um imenso deserto que vem secar os mares onde pontuam as emoções.

Diria: que falta o sal ao Outono. Que o prolongamento do Verão, na forma de uma Primavera fora de tempo, transtorna os espíritos. A mistura insossa que irrompe à superfície é a tela tristonha de uma outonal estação que se demitiu das promessas a cada dobrar do equinócio de Setembro. Nos espíritos, uma desorientação de quem se ausentou da sua bússola. Haveriam as estações, na sua sucessão natural, de instalar os pontos cardeais que conduzem os corpos na sua plácida caminhada. Agora já não.

Ao invés, a perturbante transformação do calendário é a reclusão dos sentidos. Não é só as estações que mudam. Os seres, também. Não. Dirão alguns que não podem os elementos representar o papel de bússola dos humores humanos. Que não podem as pessoas entregar-se à ditatorial razão das estações transtornadas. Ditam a sentença: há amesquinhamento da pessoa quando se insinua que ela anda ao sabor dos ventos erráticos que misturam estações fora da estação. Contra o pretexto dos elementos, procuram a explicação fora das loucas estações. Ajuízam o divórcio entre os fenómenos meteorológicos e o andamento do espírito. O Homem é maior, muito maior, que o jugo das estações.

Só que a estranheza das estações extemporâneas parece deixar cicatrizes por sarar nos corpos expostos à brandura ou à intempestiva força dos elementos. Dá-se o caso das pessoas andarem diferentes. Taciturnos, os que olham aos céus e suspiram, melancólicos, pelas ausentes nuvens escuras que despejam dilúvios que começam a entrar para o repositório das saudades. E infinitamente alegres, os que mergulham numa profunda tristeza de cada vez que o seu amado sol fica dias a fio encoberto pelas nuvens britânicas que precipitam a chuva interminável.

Os dias estivais deviam ter garantia de calendário. Os mecanismos do tempo deviam ser automáticos. Como se fosse imposto Outono por decreto e o respeito da lei forçasse a entrada dos dias ventosos, das tempestades que sopram ventos atlânticos com a força húmida do sudoeste, as vagas alterosas que esbarram com estrondo nos molhes heróicos, as árvores inclinadas pela força do vendaval outonal, os primeiros dias de frio que convidam ao resguardo no primeiro borralho que há-de ter dias mais longos quando vier o Inverno gélido. A cada dia de ausente Outono, é como se a interior agulha da bússola andasse trepidante, e louca, com a única certeza da desabituação das estações fora da estação.

A rotina das estações é quebrada pelo ensandecer dos elementos. Espalham os sedimentos de diferentes paragens, onde as temperaturas suaves e os consecutivos dias soalheiros costumam habitar. É como se até nós viesse uma diferente geografia, dedilhada pelos ventos transviados que semeiam estações extemporâneas. É então que os corpos se sentem estranhos, personagens fora do seu lugar – como se habitassem os sítios onde são habituais as estações aqui fora da estação, sem saírem do lugar que sempre os viu respirar. O sal ausente.

A falta do sal do Outono – que, por fim, parece chegar quando o Outono já declina em favor do Inverno – apascenta o outro por descobrir que vive escondido nas catacumbas. Sem o sal de sempre, na inércia das emoções, na impassibilidade das reacções faciais. Ou, no seu extremo, através do cansaço de quem anseia pela normalidade das estações que se demoram e enfurecem ao destapar a insossa veia que vive, latente, só à espera dos anos em que as estações teimam em navegar fora do seu tempo.

16.11.07

Holograma


Pelo entardecer, quando o céu ganha o seu púrpura e fica tingido com as cores de um fogo que o incendeia, o recolhimento. A sós, como se por instantes o mundo se suspendesse da sua voracidade. O céu em fogo, como se estivesse gritar os derradeiros instantes antes de ser tomado pela noite sufocante.

O purpúreo tecto reflecte o espelho onde se fita. Há ali um balsâmico lugar onde o fim do dia traz o repouso de todas as peripécias acumuladas. Um jogo de espelhos onde se desdobram todos os seus múltiplos. Aquele que ri da pesporrência alheia. Aquele que chora as dores que o condoem, quando no peito esbarram com toda a força as angústias que não consegue reprimir. Ou os espasmos de optimismo, quando erra pelas ruas, sem destino, só para se comprazer com os sorrisos das caras anónimas que se misturam com as faces contristadas. Comprazer pela distinção: invejando os sorrisos que desfilam diante de si, as pétalas perfumadas de felicidade que essas faces exalam.

Os matizes que debruam o céu transformam-se a cada segundo que passa. O escurecimento que se apodera do horizonte é sinal das interrogações, das muitas interrogações que ficam tantas vezes sem resposta. À medida que a cor púrpura se depõe perante o breu nocturno, a única certeza: a das muitas perguntas que não têm solução. As muitas perguntas que são alimento para outras perguntas que se alistam numa sucessão infindável. Sabe que o jogo de espelhos que navega no céu oferece a perturbante imagem das inúmeras respostas possíveis que se desfraldam quando uma interrogação é hasteada. Há nessa encruzilhada um nutriente. De cada vez que a estrada se desdobra em quatro caminhos. A única certeza que dá por adquirida é o labirinto obscuro por onde erra.

No jogo de espelhos com que se debate, deduz-se uma imagem apenas. Conclui que só é uma imagem. Demanda pela sua essência. Ao chegarem os tentáculos enregelados da noite, há um frio árctico que lhe percorre as entranhas. Debate-se na interrogação pela essência que o há-de compor. A ausência de respostas insinua o vazio. Ou apenas uma imagem diferente do que tinha julgado ser. Perde-se nos corredores sem lugar do labirinto, cambaleando, agora que perdera a centelha do céu incendiado. Tudo o que lhe restava era a escuridão que se notava de cada vez que esbarrava nas frias paredes onde batia. Se ao menos não tivesse perdido a candeia do céu púrpura, agora transformado em escuro espelho de onde nada se via para além das estrelas.

E, todavia, o táctil caminho que percorria, compassado, era o lado ignorado de si. Convencera-se que o mergulho nas profundezas sombrias, onde a luz era inexistência, anunciava a peregrinação obrigatória. Pressentia os sorrisos espontâneos, as faces que irradiavam alegria, contentes com aquilo que em si transportavam, sem darem guarida às interiorizações perdidas nos meandros (inconsequentes) da complexidade. Tratava-se de um reencontro com a singeleza que pontua as coisas e as pessoas com a luz límpida dos dias mais claros. E nisto havia a clareza dos paradoxos: de como há que mergulhar até onde as raízes se escondem, bem fundas, para trazer à superfície a seiva purificada que é nutriente maior.

Podem as vagas ser alterosas. As ondas vomitadas pelo vento furioso batem com força, magoando o corpo que se entrega à coreografia aleatória da tempestade. Às vezes sentir que não há orientação definida, entregue às ondas que batem umas nas outras. Como se fosse um caos, um caos caridoso que expurga os corpos estranhos que o haviam transformado num corpo estranho só. Alguém que era ele mas já nem reconhecia sê-lo. Sabia que a noite tempestuosa era um leito alteroso, as indomáveis vagas que reconheciam os pesadelos mais sorumbáticos. E pressentia que a noite, a longa noite, haveria de ter um fim ao amainarem os ventos velozes. Então o mar seria a transparência do azul límpido do céu que o dia acabado de nascer tinha legado.

E mesmo aí, dobradas as angústias da hibernação nocturna, haveria de descobrir que é uma imagem só. Só uma imagem. A hesitação maior: se tudo o que é sensorial não é uma ilusão apenas, um fictício cenário onde desfilam as personagens que passam pelo filme em que vive aprisionado.

15.11.07

A “arte” que sacrifica um cão


Ainda sobre a violência. Outro fragmento de inanidade.

A criatividade é o esteio das artes. E de cada vez que a criatividade se liberta das amarras do conhecido, os cultores apreciam, excitados, num longo aplauso. Que interessa se a criatividade que alimenta um novo conceptualismo tem laivos de imbecilidade em estado puro? Dirão os críticos, os que sabem da poda, que o que conta é o momento criativo, a descoberta que deixa aturdidos os espectadores, desarmados perante o conceito nunca dantes explorado. De umas vezes, a criatividade é um acto singelo, levando os espectadores a questionarem como nunca alguém se lembrou de fazer arte com coisa tão singela. De outras vezes, o novo conceito artístico serve-se de uma inextricável complexidade. Difícil é desatar o nó desse conceptualismo. Os apreciadores demoram-se diante da obra e desfazem-se em interrogações, desmultiplicam-se em interpretações que se adensam na espessura da obra.

Só que às vezes a criatividade que pontua um novo conceptualismo não passa de imbecilidade. Como dizia há pouco, em estado puro. Imbecilidade no seu sentido científico, usado pela psicologia. E cito o dicionário: “atraso mental acentuado, entre a debilidade mental e a idiotia, distinguindo-se desta última pela aquisição da linguagem falada e pelo nível mental, que, determinado por testes, se situa entre os três e os sete anos.” Há dias li algures que um “artista” (e daqui em diante sempre que houver referência ao dito ou à sua “arte” os termos aparecem entre aspas), creio que argentino, inventou um novo conceptualismo temático. Numa exposição de pintura, colocou um cão diante de um quadro. O elemento conceptual contemplava a fome e a sede do cão. Terá explicado o “artista” que pretendia testar quem fosse visitar a exposição: até que ponto as pessoas que parassem diante do quadro dariam atenção ao cão; até que ponto fariam algo para evitar que o cão definhasse consumido pela sede e pela fome.

O animal acabou por morrer aos pés do quadro. Porque não houve vivalma que tomasse a iniciativa de saber se o cão estava a ser alimentado. O “artista”, preso à densidade do seu elemento conceptual, primou pela inacção. Sabia que a cada dia que passava o cão sem alimento nem água ia mirrando, encurtado o espaço temporal que o separava da morte. O “artista” não terá dado conta que ele era o carrasco de um animal sem culpa da sua estupidez. Condenou ao sofrimento, e a uma morte indigna, o cão que teve a infelicidade de se cruzar no caminho daquele apedeuta. O cão depôs a vida diante do artista e da sua insensibilidade. Diante da besta.

Da forma como a notícia me chegou ao conhecimento, faltava saber se o “artista” informou o público que o cão estava à míngua de comida e água. Se o não fez, estava a iludir os visitantes. Estes, na sua boa-fé, decerto acreditariam que o animal estava a ser alimentado. Se assim foi, a culpa restringe-se ao selvático “artista”. Mas pode-se dar o caso de ter sido divulgada informação sobre o “estatuto” do cão. E se a horda de visitantes que passeou diante do quadro nada fez para impedir a morte do cão, é cúmplice de um acto de barbárie que não abona em favor da superioridade intelectual que as elites que frequentam as artes costumam reclamar para si. Não percebo, simplesmente não consigo perceber, como não houve um único visitante que não procurou terminar com o sofrimento a que o cão estava votado. Cúmplices ou não, todas aquelas pessoas que visitaram a exposição são tão criminosas como o “artista” que tirou da cartola tão improvável conceptualismo “artístico”.

Desde que há tempos soube que havia uma exposição colectiva no Porto em que um artista apresentou uma escultura feita com um litro de esperam congelado, já nada me espantava no mundo das artes dominado pela tirania da criatividade. Até que tomei conhecimento da brutalidade imposta ao inocente cão pelo “artista” argentino. Qualquer dia, temos conceituados artistas a exporem estátuas humanas com um cartaz afixado aos seus pés anunciando aos visitantes que podem fazer o que quiserem nos modelos vivos estacionados à sua frente. Com um sublinhado sugestivo na expressão “fazer o que quiserem”. Aceitam-se sevícias, insultos, chacota, e o que mais se soltar da espantosa seiva da criatividade humana. Sabe-se lá se, até, tirar a vida à escultura, numa redefinição do elemento conceptual.

Começava este texto informando que, na sequência do de ontem, também tratava de violência. E não só da violência gratuita, ensandecida, do “artista” ao compor o elemento conceptual desta “obra de arte”. Também da violência que eu não conseguia reprimir se fosse visitante dessa “exposição” e soubesse que o cão era o instrumento ao serviço de tamanha boçalidade. Tenho a impressão que seria a primeira vez na vida que teria o impulso de agredir alguém – o dito “artista”.

14.11.07

Intervenção cívica, ou a covardia?


Da última vez que estive em Espanha, deu brado uma bárbara agressão. Dentro do metro de Barcelona, numa carruagem quase vazia, enquanto falava ao telemóvel e esbracejava furiosamente um rapaz vomitou raiva sobre uma jovem equatoriana que teve o azar de coincidir com o energúmeno naquela carruagem, naquele dia, àquela hora. O acto ficou registado nas câmaras instaladas nas carruagens do metro. Como se não bastasse a estupidez inata do agressor, dose redobrada por nem sequer se lembrar que a fobia pela segurança espalhou câmaras de vigilância até no interior das carruagens de metro. Burro a dobrar, pois.

As imagens são aterradoras. Sem que nada o fizesse prever, enquanto deambulava de um lado para o outro falando ao telemóvel, o rapaz desferiu um pontapé na rapariga que, desatenta, olhava para o exterior através da janela. Ele continuava a falar ao telemóvel enquanto repetia os pontapés. Como se fosse a jovem equatoriana culpada pela discussão que ele mantinha com alguém do outro lado do telemóvel. Entre pontapés e socos, a rapariga permanecia quase inerte, incapaz de reagir. Até que aqueles intermináveis instantes (pouco mais de um minuto) chegaram ao fim quando o metro parou na estação seguinte e o endemoninhado rapaz saiu da carruagem, com a mesma tranquilidade de quem acabara de ler um livro para matar o tempo da viagem.

As câmaras de vigilância tinham acabado de desnudar a brutalidade em toda a sua crueza. Só imagens, sem som. Não era possível perceber o que motivara tamanha ira do agressor. Nem se percebeu se, durante o cortejo de socos e pontapés, adicionou à agressão ofensas verbais. Não parecia: enquanto durou a agressão esteve quase todo o tempo agarrado ao telemóvel. E depois saiu como se nada fosse – como se praticar karaté num desconhecido fosse o acto mais natural do mundo. A bravura do lutador encaixa-se no protótipo doentio destes valentes: regurgitam brutalidade quando sabem que a vítima é mais fraca. Duvido que tivesse libertado a raiva se, em vez da franzina adolescente, estivesse ali sentado um homem coriáceo. Estamos habituados a esta valentia: só grita quando se insinua aos mais fracos.

Não fosse já doloroso ter sido testemunha da agressão, mais custoso se tornou o acto porque na carruagem viajava uma terceira pessoa. Estava atrás do agressor e não esboçou a mínima reacção em defesa da inocente rapariga. Desviou o olhar. A certa altura, incomodado (não se percebe se era mulher ou homem), virou-se para o lado contrário da orgia de violência. Não se levantou para dissuadir a agressão. Não se terá escutado qualquer reprovação – as imagens mostram os lábios sempre cerrados. Aquela pessoa foi observadora passiva da agressão. E cabe perguntar: se fosse eu a viajar naquele momento e fosse testemunha da violência boçal, teria a mesma passividade?

Qualquer pessoa, perante a brutalidade gratuita que os olhos vêm no écran, diria que não ficaria impassível. Que, pelo menos, reprovaria por palavras o ensandecido agressor. Outros, mais dados à valentia física, haveriam de se erguer do lugar para impedir a agressão. Nem é preciso alegar um imperativo de intervenção cívica para certificar que um desses seria o comportamento. A intervenção cívica que se exige quando alguém é vítima de violência. Até diriam, em jeito de conclusão, que a passividade seria uma covarde demissão de si mesmo, a denegação do civismo. Possivelmente, até, a inércia sinalizaria a conivência com a agressão.

Também tive essa reacção. A reacção espontânea de quem não consegue ficar insensível à selvajaria que ensombrava mais ainda o subterrâneo onde navega o metro. Depois repensei. E interroguei-me se não ficaria lívido ao testemunhar aquele acto que não merece adjectivação, de tão soez. Se não seria derrotado pela covardia, empurrado pelo desejo de preservar a integridade física. É que, na voraz loucura que consome o mundo, saberia eu se aquele agressor não voltava a ira contra mim se o tentasse apartar da jovem que recebia socos e pontapés? Saberia eu se ele guardava na roupa uma arma branca, arremessada contra mim se pela força o conseguisse domar?

Os imperativos da intervenção cívica são princípios belos, uma obrigação indeclinável de quem se julga “bom cidadão”. Só que acima do “bom cidadão” está a vida da pessoa. A pressa da heroicidade poderia trazer os derradeiros instantes de ar respirado, perante a incerteza que se soltava da alma atormentada que agredia sem parar. É que a intervenção cívica depende das circunstâncias. E duvido que alguém, no seu perfeito juízo (ou sem dotes de lutador) arremetesse contra o irado agressor estando ali sozinho com ele.

Há alturas em que a covardia é o único acto possível. Pode transtornar a consciência: porventura nos dias seguintes teria um insuportável peso deitado sobre a consciência, pela passividade diante da inexplicável agressão. Mas ao menos teria ainda vida para lamentar as dores de consciência. Sempre melhor do que já nem sequer haver tempo para lamber as feridas – ou as da consciência condoída, ou as deixadas pela selvajaria do agressor.

13.11.07

O admirável Homem novo


O admirável Homem novo não fuma, esse pecado social maior, sabedor que a sociedade moderna enceta uma sanha persecutória aos fumadores. Não bebe álcool. Obviamente, não se droga. Tem cuidados com a alimentação – muitas verduras, muita água, corta na doçaria e nos refrigerantes, diminui a dose de carne porque aprendeu por uma qualquer cartilha ambientalista que a produção de carne é indústria poluente. E pratica exercício físico, para afastar as nuvens negras das doenças cardiovasculares.

A bem de todos nós, as autoridades desmultiplicam-se em actos pedagógicos que nos educam para sermos admiráveis Homens novos, receptáculos de virtudes mil. Quase Homens perfeitos, não fossem vícios privados sanear a perfeição. A política oficial desdobra-se ora em informações sobre o que devemos fazer para alcançarmos o Olimpo da perfeição hodierna do humano, ora através das proibições de actos que merecem a condenação dos bons costumes.

Não vale a pena comentar a perseguição aos fumadores. Nem perceber a pretensa lógica altruísta do combate ao tabagismo: só por ingenuidade se pode acreditar que as autoridades apertam o cerco a quem fuma pela sua saúde (é mais convincente o argumento de que é também pela saúde dos que são fumadores passivos). Quando vejo a pesporrência de ministros e burocratas ao difundirem a ideia de que as proibições tabagistas são no interesse de quem fuma, apetece-me subitamente pegar num cigarro, abdicando da condição de não fumador. É incomodativa a lógica de quem manda, que do alto da sua sapiência vomita códigos de conduta inventados no interesse dos destinatários. Quem fuma é maior de idade. (E mesmo que ainda lá não tenha chegado, não me parece aceitável que o poder paternal seja transferido para o Estado.) Considerar que as pessoas necessitam de uma entidade que zele pelo seu bem-estar, por não evitarem sucumbir a vícios privados que levam o rótulo da “condenação social”, é a diluição do livre arbítrio que cabe a cada pessoa.

Se eu fosse fumador – ou alcoólatra, ou viciado nas comezainas mais nefastas para o organismo, ou enamorado pelo sedentarismo – e dispensava este paternalismo de pacotilha. Primeiro, porque sou maior de idade e sei tomar conta de mim. Segundo, desconfio da carinhosa preocupação que as autoridades exibem pela minha saúde. A minha saúde só a mim diz respeito. E ainda que haja quem discorde, atirando-me à cara que as doenças causadas pela vida desregrada que levei são um fardo para o sistema nacional de saúde (logo, para todos os outros que seriam chamados a pagar os custos da minha convalescença), nem assim me convenço da necessidade do roteiro para o admirável Homem novo. É que eu também fui obrigado a deixar uma fatia dos meus proventos para financiar o sistema nacional de saúde. E, além disso, onde mora a comovente ideia de que o sistema nacional de saúde é um imperativo de solidariedade colectiva?

Por isso não fico convencido, nem sequer comovido, com as energias que os mandantes consomem no afã de nos colocarem na rota do admirável Homem novo. Acho que é um pretexto para entrarem na nossa intimidade, regulando vícios que, sendo privados, estão por definição estabelecidos. Transformá-los em vícios públicos – ou susceptíveis de vigilância pública – é uma aleivosia. Um dia destes, se todos formos moldados através da esquadria perfeccionista dos mandantes, somos todos perfeitos, autómatos nas mãos de quem governa, desligados do livre arbítrio. Seremos todos iguais, indiferenciados, todos admiráveis Homens novos. Não haverá obesos, nem pessoas viciadas nos deleites do tabaco, do álcool, de gastronomia encharcada em colesterol. Nem haverá sequer o direito ao sedentarismo. Teremos franqueado os umbrais da bovinidade. Perfeitos – mas perfeitas marionetas, acabadas de sucumbir às mãos dos caritativos governantes.

O pior é que revejo os traços que identificam o admirável Homem novo: descubro que sou tudo isso. De repente apetece-me ser o seu contrário. Deixar de praticar exercício físico, até porque a confecção de imagem do timoneiro, que faz sempre jogging nas visitas ao estrangeiro (eu aposto que aquilo é, para além de imagem bem orquestrada, uma inconfessável superstição) me conduz pelos antípodas do que ele é. Começar a fumar, recomeçar a beber álcool, deixar de ter cuidados alimentares, finalmente começar a consumir estupefacientes da mais diversa ordem. Só para resgatar o livre arbítrio que estes socialistas patéticos não se cansam de espezinhar.

12.11.07

Ser comunista – ou a vida é um conto de fadas


No papel de comentador no debate que se seguiu à exibição do filme “Waiting for Europe” (de Christine Reeh), deparo com alguém na assistência que aos poucos vai deixando cair a máscara de comunista saudosista. É o produtor do filme. Foi o responsável pelo desvio da discussão de temas interessantes, que até então se haviam centrado sobre o filme que termináramos de ver.

O filme retratava a história verídica de uma jovem búlgara que emigrara para Lisboa e depois para Madrid. De como tão depressa as ilusões prometidas cediam lugar à frustração do desemprego prolongado, do desenraizamento. No fugaz regresso para festejar o Natal, viajamos pela realidade local. Pela desesperança que consome as pessoas que permanecem naquela cidade. Ao mesmo tempo, da excitação dos búlgaros com a anunciada entrada na União Europeia (quando o filme foi rodado faltava pouco mais de um ano para a adesão). Na sua primeira intervenção, o produtor do filme deu a achega para onde queria transportar o debate: o problema era o “modelo de desenvolvimento”. Pormenorizou: a alienação das pessoas perante a embriaguez de capitalismo; o cortejo incessante de publicidade que aparece afixada por todo o lado, sem respeitar sequer monumentos nacionais; o enorme fosso que separa os poucos com fortunas colossais e os muitos que vegetam no limiar da pobreza. E que os búlgaros (todos, ou apenas a amostra com quem tomou contacto durante as filmagens no terreno?) estavam decepcionados com as promessas da democracia. Mais tarde, a própria realizadora interrogou-se se o que havia na Bulgária era democracia ou apenas capitalismo selvagem.

Percebi então uma frase enigmática quase no final do filme. As imagens das ruas daquela cidade búlgara, das pessoas que circulavam pelas ruas enregeladas pelo frio do Inverno, são cenário para as palavras em fundo do cunhado da protagonista. Termina a narração dizendo “antes de 1989 era tudo melhor”. E depois faz-se silêncio, enquanto os espectadores são povoados pelas imagens melancólicas das casas degradadas, dos transeuntes que parecem passear uma tristeza que os engelha pelo interior.

Essas enigmáticas palavras soaram quando escutei a intervenção dogmática do produtor do filme. Perguntei-lhe: seria compreensível que na transição que disse adeus às privações e à ausência de liberdades não houvesse uma deriva pela afluência material? Se não está documentado que em muito países de leste foram antigas elites do partido comunista, recicladas às delícias do capitalismo, que tomaram as rédeas do “grande capital”? E diante de outras intervenções que lamentavam como o “excelente” sistema de educação e de saúde da ditadura comunista se perdera, quase como se essa perda fosse suficiente para chorar o funeral do comunismo, apeteceu-me perguntar: hão-de os meios compensar os fins? Aquelas pessoas viviam melhor quando lhes era garantido (mesmo que não quisessem) o tal “excelente” sistema de educação (cheio de formatações ideológicas, porém) e de saúde, ainda que tivessem que pagar o preço elevado da privação de liberdades? A certa altura, pareceu-me que havia ali muita gente a considerar que pelo regresso ao maravilhoso mundo educativo e de saúde de outrora compensaria restringir, até diluir, as liberdades que o féretro do comunismo tinha oferecido.

No fim do debate, pus-me à conversa com o produtor. Decidiu prolongar a prédica, alargando os horizontes geográficos. Ainda faltava soltar o habitual fantasma dos “americanos” como fautores de todos os males. De mão dada com o “grande capital”, numa insidiosa coligação para tornar mais abastados os que já navegam em fortunas colossais e mergulhar os oprimidos numa pobreza sem solução. Passei à condição de ouvinte. Fiz de conta que estava anestesiado pelo discurso debitado. Não esboçava reacções aos fragmentos de um mundo idealizado naquela cabeça órfã de referências, agora que o mundo em que acreditou foi remetido à condição de curiosidade museológica. Aprendi que a corrupção é sempre semeada pelo “sector privado”, que acena com um pacote de notas que degela os eticamente irrepreensíveis funcionários do sector público. Até em Angola, que eu julgava ser um antro de corrupção que acama uma deplorável cleptocracia, é tudo ao contrário: é o “grande capital” que seduz os políticos, o “grande capital” que semeia a corrupção.

Era uma conversa a dois. Um monólogo, para ser preciso. Nem sei bem se o silêncio era demissão de mim mesmo, ou apenas meio para me assombrar com o conto de fadas em que vegetam comunistas ainda empedernidos. Só me aborrece a logorreia porque a diabolização dos “americanos” tem o condão de me colocar subitamente enamorado dos Estados Unidos. O que profundamente me incomoda, eu que tanta antipatia nutro pelos norte-americanos (sem cair no antiamericanismo primário).

Gosto de privar com estas personagens. É sempre bom recordar o que seria o mundo de acordo com a sua lupa tão particular. E a vida perde monotonia quando no caminho estão espalhados pequenos fragmentos circenses.

9.11.07

Patriotismo constitucional


É um conceito estranho. Estamos habituados a empregar o termo “patriotismo” por referência à afinidade em relação ao país que nos viu nascer. Poderá até ser herética a distorção lexical: etimologicamente, “patriotismo” vem de pátria. Como se pode torcer a palavra e associá-la a “constitucional”, como se a afinidade deixasse de estar localizada num país e estivesse ancorada numa “Constituição”?


Vem isto a propósito de uma sociedade tolerante, aberta, predisposta a aceitar o “outro”, o estrangeiro, a conviver com ele como se fosse um dos seus? O “outro” tanto pode ser o estrangeiro que chega à nossa terra em busca de trabalho, como o turista que faz uma visita fugaz em lazer. É que o mundo é, dizem alguns, uma aldeia global. Por mais altas que sejam as ameias erguidas por legisladores antiquados que temem a entrada de imigrantes, as pessoas movem-se de um lado para o outro. Ora tirando partido das facilidades de deslocação, ora socorrendo-se de meios ilegais para entrarem à socapa nos prometidos oásis que, acreditam, trazem dignificação da vida e bem-estar. E, no entanto, às vezes os ditos países avançados, receosos de vagas de imigrantes que perturbem a vida organizada a que se habituaram, constroem ameias bem altas, quase inacessíveis. O problema nem é as ameias em forma de lei: é o efeito contagiante que passa para a sociedade, instruída para desconfiar do imigrante, olhando de soslaio para ele, acantonando-o num gueto.


O que me deixa perplexo é que a Europa que vai tecendo castelos inexpugnáveis aos imigrantes é a mesma Europa a braços com uma tremenda crise demográfica. A mesma Europa que necessita de abrir as portas, todos os anos, a milhares de imigrantes. Para que a sua segurança social não vá à falência. Para não perder posições no campeonato da competitividade. Há estudos demográficos que o comprovam. Parecem contar pouco na altura das decisões políticas. E são pregação no deserto quando se mede o pulso às atitudes predominantes dos nativos perante o “outro” que se coloca à sua frente.


Há esta dimensão demográfica, económica até, que nem é a mais importante. Se o problema for visto apenas desta forma, arriscamos a acusação de egoísmo. Isto é, da cancela ser levantada para deixar entrar alguns imigrantes porque precisamos deles. O risco de nos acusarem de estarmos a instrumentalizar os imigrantes. Verdade seja dita que há reciprocidade: os imigrantes têm melhores condições de vida nos sítios que escolhem para sua residência, eles também tiram partido da sua instalação nos oásis que demandaram. O risco é real, no entanto. E ofusca o que devia contar nesta osmose crescente entre nativos e imigrados: fomentar a tolerância pelo “outro” como etapa seguinte do amadurecimento da sociedade. Acolhê-lo, integrá-lo, saber conviver com ele sem embaraços ou resistências mentais, como se fosse necessário estabelecer uma diferença entre “nós” e o “outro”. É que a simples distinção entre “ele” e “nós” contamina a relação.


Mais à direita, o discurso do multiculturalismo é contestado. Não sei se apenas por ser uma bandeira que as esquerdas chamam a si – mais uma bandeira que elas, pateticamente, reivindicam ser seu exclusivo –, ou se por serem geneticamente contra a miscigenação dos povos, ou até porque nelas se foram desenvolvendo anticorpos ao multiculturalismo pelas dificuldades de integração de certas comunidades imigrantes, essas direitas (e não apenas a extrema-direita) são ferozmente contra o multiculturalismo e aceitam restrições à imigração. Essas direitas têm todo o direito de reagir ao que as desconforta. Até têm o direito de se agarrarem aos fragmentos que sobram do passado, pois tanto lhes custa admitir que o presente tem outras cambiantes. Mesmo não gostando de más companhias, neste assunto coincido com as esquerdas que são genuinamente cultoras do multiculturalismo (e não daquelas que se apropriam do discurso para efeitos tácticos).


Enquanto teimarmos em tecer estigmas que olham para o “outro” como o outro, sempre de pé atrás quando há um estrangeiro que se atravessa no caminho, seremos uma sociedade imersa numa infantil etapa de desenvolvimento. Enquanto isso suceder, o diagnóstico é sombrio: por dentro de nós fervilha o embrião da intolerância. Que hoje se dirige ao “outro”, mas amanhã pode ter como destinatário “um de nós”, se as divergências entrarem num declive tão acentuado que produzem danos irreparáveis.


Este valor, da tolerância pelo outro, devia merecer entrar na Constituição – nas Constituições dos países que se quisessem libertar das algemas da ancestralidade. Seria o farol da emancipação dos Homens diante do espartilho dos países a que se julgam pertencer, como se os países os titulassem, na mais deplorável submissão dos indivíduos. É por aqui que passa essa libertação: por elevar a valor constitucional a tolerância pelo “outro”, como forma de a garantir até em relação a todos os que pertencem ao “nós”. Este utopismo faria de nós (aqui englobando o “nós” e os “outros” num todo) cultores do patriotismo constitucional que assegurasse a convivência natural entre “nos” e o “outro”. Tão natural que a certa altura deixaria de fazer sentido a distinção.

Patriotismo constitucional

É um conceito estranho. Estamos habituados a empregar o termo “patriotismo” por referência à afinidade em relação ao país que nos viu nascer. Poderá até ser herética a distorção lexical: etimologicamente, “patriotismo” vem de pátria. Como se pode torcer a palavra e associá-la a “constitucional”, como se a afinidade deixasse de estar localizada num país e estivesse ancorada numa “Constituição”?


Vem isto a propósito de uma sociedade tolerante, aberta, predisposta a aceitar o “outro”, o estrangeiro, a conviver com ele como se fosse um dos seus? O “outro” tanto pode ser o estrangeiro que chega à nossa terra em busca de trabalho, como o turista que faz uma visita fugaz em lazer. É que o mundo é, dizem alguns, uma aldeia global. Por mais altas que sejam as ameias erguidas por legisladores antiquados que temem a entrada de imigrantes, as pessoas movem-se de um lado para o outro. Ora tirando partido das facilidades de deslocação, ora socorrendo-se de meios ilegais para entrarem à socapa nos prometidos oásis que, acreditam, trazem dignificação da vida e bem-estar. E, no entanto, às vezes os ditos países avançados, receosos de vagas de imigrantes que perturbem a vida organizada a que se habituaram, constroem ameias bem altas, quase inacessíveis. O problema nem é as ameias em forma de lei: é o efeito contagiante que passa para a sociedade, instruída para desconfiar do imigrante, olhando de soslaio para ele, acantonando-o num gueto.


O que me deixa perplexo é que a Europa que vai tecendo castelos inexpugnáveis aos imigrantes é a mesma Europa a braços com uma tremenda crise demográfica. A mesma Europa que necessita de abrir as portas, todos os anos, a milhares de imigrantes. Para que a sua segurança social não vá à falência. Para não perder posições no campeonato da competitividade. Há estudos demográficos que o comprovam. Parecem contar pouco na altura das decisões políticas. E são pregação no deserto quando se mede o pulso às atitudes predominantes dos nativos perante o “outro” que se coloca à sua frente.


Há esta dimensão demográfica, económica até, que nem é a mais importante. Se o problema for visto apenas desta forma, arriscamos a acusação de egoísmo. Isto é, da cancela ser levantada para deixar entrar alguns imigrantes porque precisamos deles. O risco de nos acusarem de estarmos a instrumentalizar os imigrantes. Verdade seja dita que há reciprocidade: os imigrantes têm melhores condições de vida nos sítios que escolhem para sua residência, eles também tiram partido da sua instalação nos oásis que demandaram. O risco é real, no entanto. E ofusca o que devia contar nesta osmose crescente entre nativos e imigrados: fomentar a tolerância pelo “outro” como etapa seguinte do amadurecimento da sociedade. Acolhê-lo, integrá-lo, saber conviver com ele sem embaraços ou resistências mentais, como se fosse necessário estabelecer uma diferença entre “nós” e o “outro”. É que a simples distinção entre “ele” e “nós” contamina a relação.


Mais à direita, o discurso do multiculturalismo é contestado. Não sei se apenas por ser uma bandeira que as esquerdas chamam a si – mais uma bandeira que elas, pateticamente, reivindicam ser seu exclusivo –, ou se por serem geneticamente contra a miscigenação dos povos, ou até porque nelas se foram desenvolvendo anticorpos ao multiculturalismo pelas dificuldades de integração de certas comunidades imigrantes, essas direitas (e não apenas a extrema-direita) são ferozmente contra o multiculturalismo e aceitam restrições à imigração. Essas direitas têm todo o direito de reagir ao que as desconforta. Até têm o direito de se agarrarem aos fragmentos que sobram do passado, pois tanto lhes custa admitir que o presente tem outras cambiantes. Mesmo não gostando de más companhias, neste assunto coincido com as esquerdas que são genuinamente cultoras do multiculturalismo (e não daquelas que se apropriam do discurso para efeitos tácticos).


Enquanto teimarmos em tecer estigmas que olham para o “outro” como o outro, sempre de pé atrás quando há um estrangeiro que se atravessa no caminho, seremos uma sociedade imersa numa infantil etapa de desenvolvimento. Enquanto isso suceder, o diagnóstico é sombrio: por dentro de nós fervilha o embrião da intolerância. Que hoje se dirige ao “outro”, mas amanhã pode ter como destinatário “um de nós”, se as divergências entrarem num declive tão acentuado que produzem danos irreparáveis.


Este valor, da tolerância pelo outro, devia merecer entrar na Constituição – nas Constituições dos países que se quisessem libertar das algemas da ancestralidade. Seria o farol da emancipação dos Homens diante do espartilho dos países a que se julgam pertencer, como se os países os titulassem, na mais deplorável submissão dos indivíduos. É por aqui que passa essa libertação: por elevar a valor constitucional a tolerância pelo “outro”, como forma de a garantir até em relação a todos os que pertencem ao “nós”. Este utopismo faria de nós (aqui englobando o “nós” e os “outros” num todo) cultores do patriotismo constitucional que assegurasse a convivência natural entre “nos” e o “outro”. Tão natural que a certa altura deixaria de fazer sentido a distinção.
É um conceito estranho. Estamos habituados a empregar o termo “patriotismo” por referência à afinidade em relação ao país que nos viu nascer. Poderá até ser herética a distorção lexical: etimologicamente, “patriotismo” vem de pátria. Como se pode torcer a palavra e associá-la a “constitucional”, como se a afinidade deixasse de estar localizada num país e estivesse ancorada numa “Constituição”?

Vem isto a propósito de uma sociedade tolerante, aberta, predisposta a aceitar o “outro”, o estrangeiro, a conviver com ele como se fosse um dos seus? O “outro” tanto pode ser o estrangeiro que chega à nossa terra em busca de trabalho, como o turista que faz uma visita fugaz em lazer. É que o mundo é, dizem alguns, uma aldeia global. Por mais altas que sejam as ameias erguidas por legisladores antiquados que temem a entrada de imigrantes, as pessoas movem-se de um lado para o outro. Ora tirando partido das facilidades de deslocação, ora socorrendo-se de meios ilegais para entrarem à socapa nos prometidos oásis que, acreditam, trazem dignificação da vida e bem-estar. E, no entanto, às vezes os ditos países avançados, receosos de vagas de imigrantes que perturbem a vida organizada a que se habituaram, constroem ameias bem altas, quase inacessíveis. O problema nem é as ameias em forma de lei: é o efeito contagiante que passa para a sociedade, instruída para desconfiar do imigrante, olhando de soslaio para ele, acantonando-o num gueto.

O que me deixa perplexo é que a Europa que vai tecendo castelos inexpugnáveis aos imigrantes é a mesma Europa a braços com uma tremenda crise demográfica. A mesma Europa que necessita de abrir as portas, todos os anos, a milhares de imigrantes. Para que a sua segurança social não vá à falência. Para não perder posições no campeonato da competitividade. Há estudos demográficos que o comprovam. Parecem contar pouco na altura das decisões políticas. E são pregação no deserto quando se mede o pulso às atitudes predominantes dos nativos perante o “outro” que se coloca à sua frente.

Há esta dimensão demográfica, económica até, que nem é a mais importante. Se o problema for visto apenas desta forma, arriscamos a acusação de egoísmo. Isto é, da cancela ser levantada para deixar entrar alguns imigrantes porque precisamos deles. O risco de nos acusarem de estarmos a instrumentalizar os imigrantes. Verdade seja dita que há reciprocidade: os imigrantes têm melhores condições de vida nos sítios que escolhem para sua residência, eles também tiram partido da sua instalação nos oásis que demandaram. O risco é real, no entanto. E ofusca o que devia contar nesta osmose crescente entre nativos e imigrados: fomentar a tolerância pelo “outro” como etapa seguinte do amadurecimento da sociedade. Acolhê-lo, integrá-lo, saber conviver com ele sem embaraços ou resistências mentais, como se fosse necessário estabelecer uma diferença entre “nós” e o “outro”. É que a simples distinção entre “ele” e “nós” contamina a relação.

Mais à direita, o discurso do multiculturalismo é contestado. Não sei se apenas por ser uma bandeira que as esquerdas chamam a si – mais uma bandeira que elas, pateticamente, reivindicam ser seu exclusivo –, ou se por serem geneticamente contra a miscigenação dos povos, ou até porque nelas se foram desenvolvendo anticorpos ao multiculturalismo pelas dificuldades de integração de certas comunidades imigrantes, essas direitas (e não apenas a extrema-direita) são ferozmente contra o multiculturalismo e aceitam restrições à imigração. Essas direitas têm todo o direito de reagir ao que as desconforta. Até têm o direito de se agarrarem aos fragmentos que sobram do passado, pois tanto lhes custa admitir que o presente tem outras cambiantes. Mesmo não gostando de más companhias, neste assunto coincido com as esquerdas que são genuinamente cultoras do multiculturalismo (e não daquelas que se apropriam do discurso para efeitos tácticos).

Enquanto teimarmos em tecer estigmas que olham para o “outro” como o outro, sempre de pé atrás quando há um estrangeiro que se atravessa no caminho, seremos uma sociedade imersa numa infantil etapa de desenvolvimento. Enquanto isso suceder, o diagnóstico é sombrio: por dentro de nós fervilha o embrião da intolerância. Que hoje se dirige ao “outro”, mas amanhã pode ter como destinatário “um de nós”, se as divergências entrarem num declive tão acentuado que produzem danos irreparáveis.

Este valor, da tolerância pelo“outro”, devia merecer entrar na Constituição – nas Constituições dos países que se quisessem libertar das algemas da ancestralidade. Seria o farol da emancipação dos Homens diante do espartilho dos países a que se julgam pertencer, como se os países os titulassem, na mais deplorável submissão dos indivíduos. É por aqui que passa essa libertação: por elevar a valor constitucional a tolerância pelo “outro”, como forma de a garantir até em relação a todos os que pertencem ao “nós”. Este utopismo faria de nós (aqui englobando o “nós” e os “outros” num todo) cultores do patriotismo constitucional que assegurasse a convivência natural entre “nos” e o “outro”. Tão natural que a certa altura deixaria de fazer sentido a distinção.

8.11.07

O palimpsesto

(Do dicionário – “Palimpsesto: sentido figurado, texto que existe sob outro texto.” De um diálogo entre as duas metades do ser, uma delas – a alteridade – surgindo em itálico.)

Quem nunca acordou preso às amarras de um estranho que parece habitar em si? E quem, de tanto tempo conviver com esse estranho, não se interrogou se o estranho, de tão assíduo, suplantara o eu convencionado? Há todo um vasto território, insondável, onde fervilha a alteridade do ser. Às vezes emerge compassada com a surpresa: ao dar conta que afinal somos diferentes do que julgáramos ser, o sangue já fervente expulsando o eu que se habituara a imperar.

(Isso tudo, ou apenas fragmentos irrelevantes em demanda de mistérios e significados escondidos em inacessíveis lugares, afinal nunca visitados a não ser nestas peregrinações que servem para ensaiar a escrita. O suplício da subjectividade. O martírio de quem se aventura por ruas despidas de pavimento, só com as pedras pontiagudas à mostra, os pés desnudados sangrando na via sacrificial que leva a lugar nenhum. De que serve a coloração pungente dos devaneios interiores, se através dela se chega ao abismo?)

O arrebatamento da alteridade é um lancinante exercício, a reorientação do ser. Ou não. Pode descerrar diante dos olhos um vasto campo onde se desfraldam flores perfumadas, uma sinfonia de cores como se nessas flores todas as cores do mundo tivessem sido retratadas. A alteridade pontua a transformação. Ou sinal positivo, ou sinal negativo. Depende do alter ego descoberto – ou, muitas vezes, sem bem se perceber, apenas redescoberto –, depende do outro eu asfixiado nas catacumbas do ser. Nem sempre a experiência carpida nas incidências do tempo molda alteridade confortável. Por vezes, é a acidez que destila o outro eu, acabrunhado, contristado, suspeitoso, ensimesmado, até irascível.

(Do discurso como retórica infernal, mas placidamente anódina. Lucubrações que jorram como águas tempestuosas que descem a alcantilada garganta de um rio de montanha. Quando chegam à foz, são um gigante domado pela fértil planície que se estende além do alcance da vista. Amansadas águas, destituídas da ferocidade anunciada. Apenas águas que se entregam nos braços da imensidão salgada, onde são sepultadas. Jamais voltará a haver notícia delas, eternamente perdidas na vastidão do mar. Assim se esvaem as ideias que soam a filosofia de bolso.)

No desdobramento do eu em dois, inquieta o moralismo que uma das metades apregoa. Costuma a metade que se julga mais discernida, aquela que ajuíza só depois de acamado o tempo, entoar enfurecidas palavras que arremetem contra o moralismo, contra qualquer moralismo. A metade oposta tem conhecimento da verve racional que acaba por prevalecer. Ainda assim, é ela que domina as reacções perante um acontecimento, ou palavras ditas pelos outros. É esse hemisfério – espontâneo, estouvado, sem esmerar raciocínios – que soergue, ditando asserções que exalam decadente moralismo. Nessa altura já as águas interiores fervem, revoltosas, encavalitam-se em ameaçadoras ondas que espumam toda a sua raiva quando embatem de frente umas nas outras, desfazendo-se numa espuma branca, inerte.

(Lá no fundo, não há um eu e sua alteridade. A antítese da moralidade apregoada pela jactante “metade discernida” é um revólver que dispara balas envenenadas pela pior das moralidades. De cada vez que a alteridade racional reclama a asfixia da moralidade – de qualquer moralidade –, entrega-se nos braços da pior das moralidades. Aquela que mora no lugar imperceptível que dá existência àquilo que denega.)

Entra em cena o observador exterior, qualificado para diagnosticar as maleitas do espírito que apoquentam o indivíduo hesitante entre o seu eu – ou aquilo que julga dele conhecer – e a sua alteridade, também ela relevada. O julgador teria um duplo condão: chegar com o véu da ignorância, jamais tendo falado com o espírito atormentado; e especialista em desatar nós que semeiam as dúvidas que preenchem o horizonte de quem se divide entre o seu eu e a alteridade. Em vez de aclarar, ele diria que há outra alteridade reprimida, que combate dos fundos do ser o eu dominante e a alteridade esboçada. Diria que esta alteridade é uma construção oportuna para esbofetear traços do eu conhecido que são desconfortáveis. É, todavia, uma alteridade fabricada, artificial, apenas um pretexto para mascarar sombras do eu, ou quando o eu conhecido é uma consumição que exige refúgio de si.

A alteridade reprimida: ou a tarefa maior que aquele eu deveria abraçar, houvesse coragem para o desprendimento das duas metades de que se julga composto. Descobriria, então, que há dentro de si o palimpsesto de si mesmo: ofuscado, aprisionado em profundas masmorras onde o ar fétido não aconselha visita.