13.11.07

O admirável Homem novo


O admirável Homem novo não fuma, esse pecado social maior, sabedor que a sociedade moderna enceta uma sanha persecutória aos fumadores. Não bebe álcool. Obviamente, não se droga. Tem cuidados com a alimentação – muitas verduras, muita água, corta na doçaria e nos refrigerantes, diminui a dose de carne porque aprendeu por uma qualquer cartilha ambientalista que a produção de carne é indústria poluente. E pratica exercício físico, para afastar as nuvens negras das doenças cardiovasculares.

A bem de todos nós, as autoridades desmultiplicam-se em actos pedagógicos que nos educam para sermos admiráveis Homens novos, receptáculos de virtudes mil. Quase Homens perfeitos, não fossem vícios privados sanear a perfeição. A política oficial desdobra-se ora em informações sobre o que devemos fazer para alcançarmos o Olimpo da perfeição hodierna do humano, ora através das proibições de actos que merecem a condenação dos bons costumes.

Não vale a pena comentar a perseguição aos fumadores. Nem perceber a pretensa lógica altruísta do combate ao tabagismo: só por ingenuidade se pode acreditar que as autoridades apertam o cerco a quem fuma pela sua saúde (é mais convincente o argumento de que é também pela saúde dos que são fumadores passivos). Quando vejo a pesporrência de ministros e burocratas ao difundirem a ideia de que as proibições tabagistas são no interesse de quem fuma, apetece-me subitamente pegar num cigarro, abdicando da condição de não fumador. É incomodativa a lógica de quem manda, que do alto da sua sapiência vomita códigos de conduta inventados no interesse dos destinatários. Quem fuma é maior de idade. (E mesmo que ainda lá não tenha chegado, não me parece aceitável que o poder paternal seja transferido para o Estado.) Considerar que as pessoas necessitam de uma entidade que zele pelo seu bem-estar, por não evitarem sucumbir a vícios privados que levam o rótulo da “condenação social”, é a diluição do livre arbítrio que cabe a cada pessoa.

Se eu fosse fumador – ou alcoólatra, ou viciado nas comezainas mais nefastas para o organismo, ou enamorado pelo sedentarismo – e dispensava este paternalismo de pacotilha. Primeiro, porque sou maior de idade e sei tomar conta de mim. Segundo, desconfio da carinhosa preocupação que as autoridades exibem pela minha saúde. A minha saúde só a mim diz respeito. E ainda que haja quem discorde, atirando-me à cara que as doenças causadas pela vida desregrada que levei são um fardo para o sistema nacional de saúde (logo, para todos os outros que seriam chamados a pagar os custos da minha convalescença), nem assim me convenço da necessidade do roteiro para o admirável Homem novo. É que eu também fui obrigado a deixar uma fatia dos meus proventos para financiar o sistema nacional de saúde. E, além disso, onde mora a comovente ideia de que o sistema nacional de saúde é um imperativo de solidariedade colectiva?

Por isso não fico convencido, nem sequer comovido, com as energias que os mandantes consomem no afã de nos colocarem na rota do admirável Homem novo. Acho que é um pretexto para entrarem na nossa intimidade, regulando vícios que, sendo privados, estão por definição estabelecidos. Transformá-los em vícios públicos – ou susceptíveis de vigilância pública – é uma aleivosia. Um dia destes, se todos formos moldados através da esquadria perfeccionista dos mandantes, somos todos perfeitos, autómatos nas mãos de quem governa, desligados do livre arbítrio. Seremos todos iguais, indiferenciados, todos admiráveis Homens novos. Não haverá obesos, nem pessoas viciadas nos deleites do tabaco, do álcool, de gastronomia encharcada em colesterol. Nem haverá sequer o direito ao sedentarismo. Teremos franqueado os umbrais da bovinidade. Perfeitos – mas perfeitas marionetas, acabadas de sucumbir às mãos dos caritativos governantes.

O pior é que revejo os traços que identificam o admirável Homem novo: descubro que sou tudo isso. De repente apetece-me ser o seu contrário. Deixar de praticar exercício físico, até porque a confecção de imagem do timoneiro, que faz sempre jogging nas visitas ao estrangeiro (eu aposto que aquilo é, para além de imagem bem orquestrada, uma inconfessável superstição) me conduz pelos antípodas do que ele é. Começar a fumar, recomeçar a beber álcool, deixar de ter cuidados alimentares, finalmente começar a consumir estupefacientes da mais diversa ordem. Só para resgatar o livre arbítrio que estes socialistas patéticos não se cansam de espezinhar.

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