5.11.07

Um estranho caso de optimismo antropológico


Não sei se criatividade é inventar histórias impensáveis, onde se procura temperar a realidade com fantasias próprias de ficção científica, e esgotar o filão nos roteiros que passam para as telas do cinema. O registo dos filmes que dominam o circuito comercial insiste no filão. Há filmes que se desdobram em fantasiosos enredos que puxam pelos galões da imaginação futurista. Filmes com invasões de extraterrestres, ou teorias da conspiração em que os extraterrestres se escondem em corpos humanos para estenderem um império que há-de liquidar a raça humana. São um pasto interminável para os argumentistas.

Fui ver “A invasão”, protagonizado por Nicole Kidman. Uma trama que começa com uma tragédia: ao entrar na atmosfera, o Space Shuttle desintegrou-se. Os destroços espalharam-se por um vasto território. Havia anónimos entrevistados que confessavam ter tocado nos detritos, sem perceberem o risco de contaminação que corriam. Eis a chave do filme: os detritos da nave traziam um esporo resistente ao calor e capaz de se reproduzir, dentro do corpo humano, a uma velocidade estonteante. A contaminação acelerava-se a um ritmo exponencial. O vírus instalava-se dentro das pessoas e transformava-as em estranhos. Por fora eram as mesmas pessoas. Só que, por dentro, o vírus desumanizava-as: diluía as emoções, passando os rostos a desfilar pelas ruas numa inércia de expressões que denunciava quem já tinha sido contaminado; e transformava o organismo, extinguindo-se a transpiração.

Paradoxalmente, em pano de fundo passavam imagens de noticiários dando conta de um clima de desanuviamento mundial. Antigos conflitos sanados, países párias que finalmente assinaram tratados de desarmamento nuclear, negociações para apaziguar conflitos antigos que desatavam o nó do impasse. De repente, os líderes mundiais estavam em lua-de-mel com a concórdia. Tudo isto enquanto o vírus se espalhava, tomando conta dos humanos num processo que terminava com a sua desumanização. Quem era contaminado entrava numa sinistra confraria de rostos impávidos, desprovidos de emoções, um exército de autómatos sob a forma exterior de pessoas, quando pelo interior a mutação genética havia tomado conta delas, diluindo o que havia de humano.

Como era de adivinhar, tendo em conta que no ecrã passava uma trama hollywoodesca, à medida que o drama se encaminhava para o zénite, mais se adivinhava que no final tudo se haveria de compor. Ainda que a certa altura o abismo esteja mesmo ao lado dos bons – a psiquiatra protagonizada por Nicole Kidman e o seu filho, que por ter tido uma espécie rara de meningite era imune ao vírus – o sossego percorre os espectadores, habituados a que os “maus” sejam condenados ao insucesso, deixando o terreno para a saída triunfal dos “bons”. E apesar do cerco montado pelo exército de contagiados pelo vírus mutante, os heróis são salvos por um helicóptero providencial onde viajavam cientistas que sabiam que no organismo daquela criança habitava o antídoto contra o vírus que estava a desumanizar a espécie humana.

O epílogo está reservado para depois da devastação de automóveis durante a fuga da psiquiatra e do filho em direcção do salvífico helicóptero (e dou-me conta que a indústria cinematográfica de Hollywood é, pelos dias que correm, um porta-estandarte da causa ecológica: é só ver a quantidade de veículos que vão para a sucata depois da rodagem de filmes onde há perseguições frenéticas. Automóveis que deixam de circular, abatendo-se o activo de veículos que contribuem para a poluição atmosférica). Num salto no tempo, passam imagens de helicópteros aspergindo a vacina que permitia às pessoas infectadas recuperarem a humanidade perdida. A humanidade estava salva. Ao mesmo tempo, regressam imagens de noticiários com o recrudescimento de guerras e o fervilhar de um sentimento de discórdia entre adversários que, em breve, prometem ser inimigos de armas em riste.

Enquanto a humanidade estava a ser contaminada pelo vírus mutante, desumanizando-se, um estranho sentimento de concórdia varrera dissensões e conflitos do mapa. Depois de o vírus ter sido derrotado, a humanidade de regresso à sua essência. Com a apetência para a desordem, a insegurança, a divergência que em breve semeia a guerra. Para o final ficava reservada a subliminar ideia de que mais vale a humanidade com todos os seus defeitos do que uma humanidade geneticamente transformada, mas inteligente ao ponto de perceber que as guerras são a autofágica deriva que mergulha a condição humana num suicidário beco sem saída.

Não fiquei convencido com o optimismo antropológico. Faz-me lembrar os patriotas caseiros, convencidos que são preferíveis os defeitos dos portugueses (e são muitos) às virtudes dos outros povos.

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