22.11.07

A liturgia do hino


Há mais de vinte anos que não assistia ao vivo a um jogo de futebol da selecção nacional (por hoje, parolamente apelidada “clube Portugal”). Havia um desafio pessoal na deslocação ao estádio. Intrigava-me a reacção ao hino entoado por mais de quarenta mil pessoas. Haveria um arrepio a percorrer a coluna vertebral, sinal de emoção incontida que nem sequer o lado racional que renega o patriotismo saloio conseguiria liquidar?

Já sabia, ao ser espectador pela televisão, que o hino não me leva ao arrebatamento. Interpreto-o como nota do individualismo que me traz pelos caminhos da denegação da nacionalidade. Respeito quem sinta exaltação no acto colectivo de entoação do hino. Exacerbação que me diz nada. Durante os minutos do hino, passam imagens ora dos bravos soldados que defendem as cores da bandeira no terreno de batalha, ora de espectadores que cantam a pulmões inteiros o hino. Não há emoção a tingir as minhas veias. Ou, como diria Eugénio de Andrade, não há nada ali que me faça pedir água.

Ontem, quando as pessoas se levantaram ao ser anunciado o hino, notei logo o enorme respeito que nutrem por um dos símbolos de pertença. Não se canta o hino sentado. O pôr-se em pé é a genuflexão sentida diante do hino que faz de nós a mesma massa. Que, dizem, nos irmana na mesma pertença. Nem que seja durante três minutos. Em três minutos que sejam esquecem-se as desavenças no trânsito, os insultos que gostamos de atirar aos concidadãos, a mesquinhez recíproca, o apoucamento que nos remete para as catacumbas dos povos, a pequenez nacional. Em três minutos regressamos aos tempos da heroicidade histórica. Pelo cimento do hino somos, num abraço só, uma geração orgulhosa da pertença lusitana.

Enquanto as gargantas arranhavam num profundo sentimento patriótico o hino, olhava em redor, entregue a um sepulcral silêncio. Tentava medir o pulso da exaltação que percorria as pessoas à minha volta. Cada estrofe era entoada como se fosse a última vez que o hino era cantado. Havia ali, naqueles patriotas, soldados dispostos a entregar o corpo às balas que ousassem penetrar a sagrada bandeira onde está arpoado o escudo armilar. Ou talvez não. Seria apenas uma liturgia, o dedilhar de um ritual. E como todos os rituais, perfumado pela irracionalidade, perdido o rasto das razões que caucionam a entoação exaltada do hino e da pertença. No hino, uma religiosidade. Sem explicação. Os mesmos que se aprestam a amesquinhar a sua pertença, envenenam o cântico excitado do hino.

Dirão que aqueles três minutos são a essência da lusitanidade. Que a escassez substitui, pela intensa qualidade, os dias, meses e anos em que a pertença é apoucada. O que reafirma a metafísica do hino. A deificação do hino, como se afinal cada um fosse, unido pela pertença a uma bandeira, deus de si mesmo. E enquanto a turba desfiava as estrofes, porventura sem perceber algumas das palavras lá contidas, interrogava-me se cada patriota não exaltava a sua existência individual enquanto peça de uma engrenagem a que se vulgarizou chamar “país”. O hino será um ardil para convencer as massas que somos um só, não o somatório de peças aleatórias, mas um povo que cumpre um destino histórico. E o redil que acantona na pertença necessária, um acto sentido que todavia se perde na inconsequência da religiosidade.

Ouvia o hino da mesma forma que ouço o “pai-nosso que estais no céu” das escassas vezes que tenho que frequentar missas (funerais ou missas de sétimo dia na impossibilidade de me massacrar com a ida a um funeral). Como nas missas, quando os crentes entoam maquinalmente a “oração que o senhor nos ensinou” (como prescreve o sacerdote), no hino havia a contradição da exaltação do cântico de mão dada com as estrofes entoadas que se perdiam na opacidade do seu significado. As pessoas continuavam a gritar bem alto, num coro impressionante que cobria toda a cidade.

Como em qualquer misticismo, em qualquer religiosidade, ali no estádio mais de quarenta mil pessoas num hipnotismo colectivo que durou pouco mais de três minutos. E eu, num longo bocejo entaramelado com o lamento de ser incapaz de abrir a boca e dedilhar o hino. Confirmei as suspeitas. Dos arrepios interiores, nem num esgar. Em meu redor, todos cantavam. Todos perfaziam a liturgia. O mal seria meu, ovelha tresmalhada no meio de um ordeiro rebanho.

1 comentário:

Anónimo disse...

E quem era mais feliz naquele momento em que se cantava o hino?
Se houvesse um campeonato de falta de auto-estima, os portugueses ganhavam o primeiro prémio.
Eu saúdo estas manifestações, pode ser o princípio de uma melhor auto-estima colectiva.
Ponte Vasco da Gama