1.11.07

Depois – ou a religiosidade do porvir


O desencanto tingia o sabor que tomava conta da boca. Havia um persistente fel irradiando das veias, subindo desde as profundezas das entranhas. Sempre que mergulhava no tempo lá atrás era assim que se sentia. Um travo amargo, uma dor intensa apoquentando o peito, o desassossego pelo tanto que havia por cumprir e que a deriva pelo tempo de antanho mostrava.

Só tinha uma compensação. Uma inexplicável esperança que os dias sucessivos fossem santuários do cumprimento de si mesmo, o atingimento de uma plenitude que era incapaz de definir. Era o seu alento. Quase adivinhava que algures amanhã, próximo ou ainda distante, os dias iriam clarear. Vivia anestesiado pela virtude dos dias incógnitos. Uma religiosidade atípica, paradoxal até – ele que não se cansava de mostrar desdém por deuses, santos e irracionais dedicações à religião. Não se dava conta de como a religiosidade que nele brotava era isso mesmo, religiosidade. Uma fé cega, na ânsia de dobrar o cabo das vicissitudes, de partir em demanda de um outro jogo de espelhos que trouxesse as pétalas magnânimas, o perfume sublime da vida clara. Não sabia: se era religiosidade, ou apenas o cansaço do alvoroço a que se entregava permanentemente.

Recusava mergulhar no tempo ido. A cada ano dobrado, eram menos os momentos em que reavia imagens, palavras, pessoas. Não queria empurrar a avalanche dos sobressaltos que o dedilhar das páginas encardidas alimentava. Em cada dia, esperava pela parte de leão que – sabia-o, com convicção – estava à esquina dos dias vindouros. Como se houvesse uma divindade qualquer que velasse por ele, ou apenas uma ilusão empedernida que assegurava o desfazer dos dias angustiantes que o deixavam exangue. Debatia-se com uma imagem que vogava em seu redor, incapaz de a reter com as mãos: uma espada sobre a cabeça, a urgência em se desfazer dos instantes consumados, como se isso fosse a centelha de um porvir repleto de cores diferentes.

A fé inabalável era um refúgio de si mesmo – ou daquilo que tinha sido outrora, renegado esse passado. Procurava no futuro a redenção do passado. No circo da vida era como se houvesse dois palcos diferentes. E ele com um pé persistente no palco tingido de negras cores, as cortinas descerradas para passar os olhos pelas imagens resgatadas do que já acontecera, ocasionalmente cerrando os olhos, outras vezes sem força que não fosse para os baixar numa genuflexão sobre si mesmo. O outro pé no palco admirável, o que anuncia os dias que hão-de ser, aragem refrescante que povoa odores que extasiam, paleta de cores admirável, coreografia de corpos e palavras que trazem o sabor apetecível da vida. Uma esperança ao mesmo tempo alento e candeia feita de um fogo-fátuo.

A cada passo que tecia no tear do oblívio do passado, havia redenção. Interrogava-se se não havia engano a si mesmo: se a confiança inexplicável no sabor adocicado do porvir se resumia à urgência em refazer o tempo que doía resgatar, um pretexto para olhar em frente sem vacilar sequer quando impulsos interiores convocassem a visita a outrora. Afinal, não uma religiosidade reprimida a dançar por dentro de si. A impaciência pelo amanhã era a urgência em arremeter contra o tempo deixado lá trás, como se houvesse mister de o obnubilar, entronizado o lugar para o devir mais pródigo.

Havia cansaço, muito cansaço permeado pela inquietação das cicatrizes. Queria sair do espartilho do rio estreito que havia navegado lá atrás, com a foz sempre à vista, o alento do vasto oceano pronto a recolhê-lo no remanso das águas fluviais que se aprestam a deitar-se nas salgadas águas. Logo ali, que o rio se alargava e já não amordaçado pela camisa-de-forças das margens alcantiladas das rochas graníticas, logo ali que à sua volta a planície recebia nos braços o rio amansado, ali que se anunciava o devir de navegar nas infindáveis águas marítimas, debatia-se com a sua prisão maior. O mar à vista e ele assoreado, incapaz de dobrar a fronteira que separa o rio do mar – o fio tão estreito entre o tempo ido e o que há-de vir visitá-lo.

Não era religiosidade do porvir. Era ilusão, apenas, uma doce ilusão pontuada pelo cansaço que já o deixava inerte, preso aos sonhos a que se entregava no convencimento de que um amanhã qualquer viria embelezar a existência. O refúgio dos dias armazenados era um castelo de sonhos.

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