12.11.07

Ser comunista – ou a vida é um conto de fadas


No papel de comentador no debate que se seguiu à exibição do filme “Waiting for Europe” (de Christine Reeh), deparo com alguém na assistência que aos poucos vai deixando cair a máscara de comunista saudosista. É o produtor do filme. Foi o responsável pelo desvio da discussão de temas interessantes, que até então se haviam centrado sobre o filme que termináramos de ver.

O filme retratava a história verídica de uma jovem búlgara que emigrara para Lisboa e depois para Madrid. De como tão depressa as ilusões prometidas cediam lugar à frustração do desemprego prolongado, do desenraizamento. No fugaz regresso para festejar o Natal, viajamos pela realidade local. Pela desesperança que consome as pessoas que permanecem naquela cidade. Ao mesmo tempo, da excitação dos búlgaros com a anunciada entrada na União Europeia (quando o filme foi rodado faltava pouco mais de um ano para a adesão). Na sua primeira intervenção, o produtor do filme deu a achega para onde queria transportar o debate: o problema era o “modelo de desenvolvimento”. Pormenorizou: a alienação das pessoas perante a embriaguez de capitalismo; o cortejo incessante de publicidade que aparece afixada por todo o lado, sem respeitar sequer monumentos nacionais; o enorme fosso que separa os poucos com fortunas colossais e os muitos que vegetam no limiar da pobreza. E que os búlgaros (todos, ou apenas a amostra com quem tomou contacto durante as filmagens no terreno?) estavam decepcionados com as promessas da democracia. Mais tarde, a própria realizadora interrogou-se se o que havia na Bulgária era democracia ou apenas capitalismo selvagem.

Percebi então uma frase enigmática quase no final do filme. As imagens das ruas daquela cidade búlgara, das pessoas que circulavam pelas ruas enregeladas pelo frio do Inverno, são cenário para as palavras em fundo do cunhado da protagonista. Termina a narração dizendo “antes de 1989 era tudo melhor”. E depois faz-se silêncio, enquanto os espectadores são povoados pelas imagens melancólicas das casas degradadas, dos transeuntes que parecem passear uma tristeza que os engelha pelo interior.

Essas enigmáticas palavras soaram quando escutei a intervenção dogmática do produtor do filme. Perguntei-lhe: seria compreensível que na transição que disse adeus às privações e à ausência de liberdades não houvesse uma deriva pela afluência material? Se não está documentado que em muito países de leste foram antigas elites do partido comunista, recicladas às delícias do capitalismo, que tomaram as rédeas do “grande capital”? E diante de outras intervenções que lamentavam como o “excelente” sistema de educação e de saúde da ditadura comunista se perdera, quase como se essa perda fosse suficiente para chorar o funeral do comunismo, apeteceu-me perguntar: hão-de os meios compensar os fins? Aquelas pessoas viviam melhor quando lhes era garantido (mesmo que não quisessem) o tal “excelente” sistema de educação (cheio de formatações ideológicas, porém) e de saúde, ainda que tivessem que pagar o preço elevado da privação de liberdades? A certa altura, pareceu-me que havia ali muita gente a considerar que pelo regresso ao maravilhoso mundo educativo e de saúde de outrora compensaria restringir, até diluir, as liberdades que o féretro do comunismo tinha oferecido.

No fim do debate, pus-me à conversa com o produtor. Decidiu prolongar a prédica, alargando os horizontes geográficos. Ainda faltava soltar o habitual fantasma dos “americanos” como fautores de todos os males. De mão dada com o “grande capital”, numa insidiosa coligação para tornar mais abastados os que já navegam em fortunas colossais e mergulhar os oprimidos numa pobreza sem solução. Passei à condição de ouvinte. Fiz de conta que estava anestesiado pelo discurso debitado. Não esboçava reacções aos fragmentos de um mundo idealizado naquela cabeça órfã de referências, agora que o mundo em que acreditou foi remetido à condição de curiosidade museológica. Aprendi que a corrupção é sempre semeada pelo “sector privado”, que acena com um pacote de notas que degela os eticamente irrepreensíveis funcionários do sector público. Até em Angola, que eu julgava ser um antro de corrupção que acama uma deplorável cleptocracia, é tudo ao contrário: é o “grande capital” que seduz os políticos, o “grande capital” que semeia a corrupção.

Era uma conversa a dois. Um monólogo, para ser preciso. Nem sei bem se o silêncio era demissão de mim mesmo, ou apenas meio para me assombrar com o conto de fadas em que vegetam comunistas ainda empedernidos. Só me aborrece a logorreia porque a diabolização dos “americanos” tem o condão de me colocar subitamente enamorado dos Estados Unidos. O que profundamente me incomoda, eu que tanta antipatia nutro pelos norte-americanos (sem cair no antiamericanismo primário).

Gosto de privar com estas personagens. É sempre bom recordar o que seria o mundo de acordo com a sua lupa tão particular. E a vida perde monotonia quando no caminho estão espalhados pequenos fragmentos circenses.

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