Eu gostava que o mundo a sério fosse um retrato dos anúncios publicitários das operadoras de telemóveis. Era tão bonito que o mundo fosse assim tão cheio de glamour. E que todos fôssemos modelos profissionais, escorrendo beleza por todos os poros, com as carnes enxutas de gordura, apesar das caras esfíngicas muitas vezes ensaiarem apenas sorrisos esforçados.
O mundo é belo quando visto sob a lente das operadoras de telemóveis. Nem se fale de miséria, cenário tão distante das luzes de néon e dos corpos descarnados mas portentosos na cor dourada de quem apanha sol todo o ano. Não há feiura visível nos anúncios a mais um pacote revolucionário que nos põe viciados no telemóvel. A fealdade à solta nas ruas deve pertencer a um compartimento imaginário que a tortuosa ilusão semeia na nossa cabeça. Que só se solta dessas amarras quando assiste aos anúncios a telemóveis, com a espessa fealdade varrida das imagens.
Os publicitários são os maiores vendedores da banha da cobra. Uns maquilhadores profissionais que têm uma varinha de condão – a que chamam criatividade – pródiga em limar as arestas que descompõem o cintilante espelho onde só a beleza desfila. É o que se vê nos anúncios: uma embriaguez de beleza, um mundo todo ele estético, perfeito, com as medidas a preceito dos manuais dos estilistas que ditam a moda do momento.
A aliança entre publicitários e mundo da moda é uma conspiração que nos mergulha na mais profunda depressão. Se dermos conta das imagens feéricas da publicidade aos telemóveis, de cada vez tentados a acreditar que o mundo lá fora é como aparece retratado nos anúncios, depois saímos à rua e a decepção depressa invade as entranhas. Uma terrível decepção: o mundo anda nos antípodas da beleza ideal dos anunciantes de telemóveis. Há pessoas gordas e disformes, faces feias, muito feias, corpos de formas distorcidas, abundantes adiposidades que flutuam no desconhecimento dos espelhos, verrugas incorrigíveis, joanetes à mostra, buços em velhas mal-humoradas, feiura disfarçada com botox, cirurgias estéticas e quilogramas de cosméticos. Aqueles corpos esbeltos que se passeiam pelo ecrã em câmara lenta, como se o mundo andasse devagar no predicado mágico de adiar a sentença final, pertencerão a uma reserva protegida de onde nunca saem sem escolta.
E, todavia, é a fealdade que vinga nas ruas. Nem tanto isso importa. Só o ilusionismo que macera a vista, uma anestesia que engana olhos desprevenidos. Convite a um hipnotismo colectivo. Como se saíssemos à rua e toda a gente parecesse saída das passerelles, novos e velhos, todos irmanados no trajecto da moda. Eles e cada um de nós. Não seriam apenas os outros, as pessoas com quem nos cruzamos, a exalar uma ofuscante beleza que retiraria todos os tons ocres do mundo cansativo – que já nem seria cansativo. Seria cada um o expoente dessa beleza. Todos entraríamos no escol dos eleitos pela beleza. A feiura diluída – e a palavra feiura apenas um arcaísmo, a museologia dos tempos em que o mundo era um lugar feio para habitar.
Depois viria a confirmação da ilusão num só acto. A extinção da fealdade retirava significado à beleza. Já não haveria olhos esbugalhados diante dos corpos que só se encontram nos anúncios a telemóveis. De tão perfeito, a perfeição do mundo tornaria num lugar banal, indistinto, doentiamente homogéneo. Começamos então a despertar, um a um, da letargia a que havíamos sido levados pela mirífica publicidade. Ainda a tempo para perceber o engodo. Era apenas o incensar dos pesadelos que vivemos acordados. A tocha acesa, a publicidade onde só havia espaço para jovens manequins no que a modernidade convencionou chamar “beleza”. No fim do túnel estreito apenas alumiado pelas imagens da publicidade revelara-se toda a estreiteza quando os corpos esbeltos deixaram de invadir o ecrã. Ficava à mostra o lugar acanhado, pontuado por uma luza baça que torna tudo doentiamente onírico. Como oníricos são os anúncios aos telemóveis e onírico é o cortejo incessante de caras e corpos que transpiram beleza, toda a beleza por cada milimétrico poro, a beleza irresistível, a beleza invejável.
O embuste da publicidade. Assim que acordamos, tão depressa ficamos a perceber onde vagueia o pesadelo acordado e está o sonho doce dos olhos cerrados. Uma linha ténue, na balsâmica imagem composta pelos engenheiros da publicidade, mestres maiores do engodo das almas. Rivais dos políticos na arte sublima da mentira. E sacerdotes dos psiquiatras, seus abastecedores de abundante matéria-prima aprisionada na decepção doentia.
O mundo é belo quando visto sob a lente das operadoras de telemóveis. Nem se fale de miséria, cenário tão distante das luzes de néon e dos corpos descarnados mas portentosos na cor dourada de quem apanha sol todo o ano. Não há feiura visível nos anúncios a mais um pacote revolucionário que nos põe viciados no telemóvel. A fealdade à solta nas ruas deve pertencer a um compartimento imaginário que a tortuosa ilusão semeia na nossa cabeça. Que só se solta dessas amarras quando assiste aos anúncios a telemóveis, com a espessa fealdade varrida das imagens.
Os publicitários são os maiores vendedores da banha da cobra. Uns maquilhadores profissionais que têm uma varinha de condão – a que chamam criatividade – pródiga em limar as arestas que descompõem o cintilante espelho onde só a beleza desfila. É o que se vê nos anúncios: uma embriaguez de beleza, um mundo todo ele estético, perfeito, com as medidas a preceito dos manuais dos estilistas que ditam a moda do momento.
A aliança entre publicitários e mundo da moda é uma conspiração que nos mergulha na mais profunda depressão. Se dermos conta das imagens feéricas da publicidade aos telemóveis, de cada vez tentados a acreditar que o mundo lá fora é como aparece retratado nos anúncios, depois saímos à rua e a decepção depressa invade as entranhas. Uma terrível decepção: o mundo anda nos antípodas da beleza ideal dos anunciantes de telemóveis. Há pessoas gordas e disformes, faces feias, muito feias, corpos de formas distorcidas, abundantes adiposidades que flutuam no desconhecimento dos espelhos, verrugas incorrigíveis, joanetes à mostra, buços em velhas mal-humoradas, feiura disfarçada com botox, cirurgias estéticas e quilogramas de cosméticos. Aqueles corpos esbeltos que se passeiam pelo ecrã em câmara lenta, como se o mundo andasse devagar no predicado mágico de adiar a sentença final, pertencerão a uma reserva protegida de onde nunca saem sem escolta.
E, todavia, é a fealdade que vinga nas ruas. Nem tanto isso importa. Só o ilusionismo que macera a vista, uma anestesia que engana olhos desprevenidos. Convite a um hipnotismo colectivo. Como se saíssemos à rua e toda a gente parecesse saída das passerelles, novos e velhos, todos irmanados no trajecto da moda. Eles e cada um de nós. Não seriam apenas os outros, as pessoas com quem nos cruzamos, a exalar uma ofuscante beleza que retiraria todos os tons ocres do mundo cansativo – que já nem seria cansativo. Seria cada um o expoente dessa beleza. Todos entraríamos no escol dos eleitos pela beleza. A feiura diluída – e a palavra feiura apenas um arcaísmo, a museologia dos tempos em que o mundo era um lugar feio para habitar.
Depois viria a confirmação da ilusão num só acto. A extinção da fealdade retirava significado à beleza. Já não haveria olhos esbugalhados diante dos corpos que só se encontram nos anúncios a telemóveis. De tão perfeito, a perfeição do mundo tornaria num lugar banal, indistinto, doentiamente homogéneo. Começamos então a despertar, um a um, da letargia a que havíamos sido levados pela mirífica publicidade. Ainda a tempo para perceber o engodo. Era apenas o incensar dos pesadelos que vivemos acordados. A tocha acesa, a publicidade onde só havia espaço para jovens manequins no que a modernidade convencionou chamar “beleza”. No fim do túnel estreito apenas alumiado pelas imagens da publicidade revelara-se toda a estreiteza quando os corpos esbeltos deixaram de invadir o ecrã. Ficava à mostra o lugar acanhado, pontuado por uma luza baça que torna tudo doentiamente onírico. Como oníricos são os anúncios aos telemóveis e onírico é o cortejo incessante de caras e corpos que transpiram beleza, toda a beleza por cada milimétrico poro, a beleza irresistível, a beleza invejável.
O embuste da publicidade. Assim que acordamos, tão depressa ficamos a perceber onde vagueia o pesadelo acordado e está o sonho doce dos olhos cerrados. Uma linha ténue, na balsâmica imagem composta pelos engenheiros da publicidade, mestres maiores do engodo das almas. Rivais dos políticos na arte sublima da mentira. E sacerdotes dos psiquiatras, seus abastecedores de abundante matéria-prima aprisionada na decepção doentia.
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