Parti com expectativas elevadas, mas ao mesmo tempo com receio, ao começar a ver o filme “Control”. Apesar das recensões ao filme – há sempre que as descontar, tantas as vezes a crítica parece formulada a um filme diferente daquele que acabo por assistir – temia que ali houvesse um retrato semi-endeusado de Ian Curtis. Ora, o problema que tenho com quase hagiografias é o de me apresentarem heróis quando renego a essência sobre-humana dos artistas que aprendemos a admirar.
Reconhecer um génio não é o mesmo que o endeusar. Uns chamar-lhe-ão endeusamento. Outros terão a frontalidade para entronizar o artista na condição de herói. Há ainda aqueles que sentem um enorme reconforto ao verem este filme, que os faz recuar vinte, vinte e cinco anos e retomar o fio à meada com um final de adolescência excitante nas descobertas de um universo musical que fervilhava de originalidade. Curtis e os Joy Division estão entre as referências obrigatórias no meu universo musical. Arrisco a dizer que são todo um lastro que preenche as influências da muita música que continuei a ouvir pelos anos fora. Ainda hoje, quando novos grupos se dão a conhecer, a crítica apressa-se a colocar o rótulo de “novos Joy Division” (como se fosse urgente retirá-los da sepultura). Por isso temia o filme. Temia um retrato que confundisse o génio com um herói a meio caminho do endeusamento. Em tudo o que isso representa de negação do Ian Curtis genuíno – ou, pelo menos, do Curtis que quero acreditar ser o genuíno.
Admito que a desconfiança com que parti para o filme não ajudou na sua apreciação descomprometida. Quando assim acontece, o preconceito toma conta da análise. E, no entanto, fui surpreendido por outra faceta que julgava acessória na vida de Curtis. É que o filme desdobra-se no tormento interior de Curtis, dividido entre duas mulheres, entre a mulher com quem tinha casado e que lhe dera uma filha e a amante que trabalhava na embaixada belga. Os dilemas interiores que o consumiam, aprisionado entre as duas mulheres que eram os dois hemisférios da sua vida. E de como mergulhava numa mortificação interior, entregue nos braços de um egoísmo e da covardia que o impedia de parar de agredir, de maneiras diferentes, as duas mulheres.
Eis a minha decepção com o filme: não está longe de uma lamechas historieta de amor. Decepção, porque contraria o que conhecia da vida de Curtis. Uma versão a preto e branco do romantismo. E ainda que o filme procure tecer as pontes entre músicas resguardadas na intemporalidade e a vida de Curtis, impregnando-as com a influência das angústias interiores pelos desacertos amorosos, não deixa de ser um filme dominado pela divisão de um homem entre duas mulheres. É nisto que repousa a desilusão: pensava que a vida de Ian Curtis tinha outra densidade, no esteio de uma sensibilidade invulgar de que ficaram fragmentos poéticos inigualáveis. O filme tenta provar que por detrás da veia poética de Curtis havia a encruzilhada amorosa.
Chego ao fim e fico entregue aos pensamentos que ainda vogam sobre o filme. Hesito entre a resignação perante o lado mais humano de Curtis, afinal um homem como outro qualquer que tinha sentimentos e que se mortificava pela covardia diante das duas mulheres. Há aqui a ambiguidade do filme. Por um lado, afinal não os traços de deificação de Curtis que eu tanto temia. Por outro lado, a faceta não conhecida da vida de Curtis, dando a impressão que toda a sua obra foi marcada pela encruzilhada dos amores.
Nem sei o que preferia. Se um retrato quase hagiográfico, que contemplasse a sede pela iconoclastia que uma geração que viveu o frémito dos Joy Division acolheria com simpatia, na nostalgia do passado que vai sendo distante. Ou se a revelação de um Curtis mais humano, mas ao mesmo tempo mortificado por um desvario lamecha que, num registo alternativo das vulgares comédias românticas, traz à superfície o “lado B” do romantismo que não deixa de ser romantismo.
As biografias são sempre polémicas, porque não reúnem unanimidade na apreciação. Quantas vezes as pessoas que lidaram de perto com o biografado divergem em detalhes como em episódios marcantes. Assim acontece com o suicídio de Curtis. Há vinte anos tinha lido, numa biografia da sua vida, que Curtis era uma alma atormentada pela epilepsia que se revelara tardia. E também atormentado por injustiças que o mundo atirava contra a sua mente, que o dilaceravam para além do comum numa pessoa comum. Lera então que Curtis deixara uma carta antes de se suicidar. E que nessa carta revelara a incompreensão pelas mortes absurdas em Angola, de como o tribalismo animalesco consumia as energias de um povo já de si entregue à miséria. O filme ignora-o. Não há carta alguma, apenas o cansaço derradeiro após mais um ataque de epilepsia e a cedência pela incapacidade de sair da encruzilhada amorosa.
No final do filme, a ficha técnica faz revelações sintomáticas. Baseou-se na biografia de Curtis da autoria da sua mulher, Deborah Curtis. E, por coincidência, a co-produtora chama-se Deborah Curtis.
Reconhecer um génio não é o mesmo que o endeusar. Uns chamar-lhe-ão endeusamento. Outros terão a frontalidade para entronizar o artista na condição de herói. Há ainda aqueles que sentem um enorme reconforto ao verem este filme, que os faz recuar vinte, vinte e cinco anos e retomar o fio à meada com um final de adolescência excitante nas descobertas de um universo musical que fervilhava de originalidade. Curtis e os Joy Division estão entre as referências obrigatórias no meu universo musical. Arrisco a dizer que são todo um lastro que preenche as influências da muita música que continuei a ouvir pelos anos fora. Ainda hoje, quando novos grupos se dão a conhecer, a crítica apressa-se a colocar o rótulo de “novos Joy Division” (como se fosse urgente retirá-los da sepultura). Por isso temia o filme. Temia um retrato que confundisse o génio com um herói a meio caminho do endeusamento. Em tudo o que isso representa de negação do Ian Curtis genuíno – ou, pelo menos, do Curtis que quero acreditar ser o genuíno.
Admito que a desconfiança com que parti para o filme não ajudou na sua apreciação descomprometida. Quando assim acontece, o preconceito toma conta da análise. E, no entanto, fui surpreendido por outra faceta que julgava acessória na vida de Curtis. É que o filme desdobra-se no tormento interior de Curtis, dividido entre duas mulheres, entre a mulher com quem tinha casado e que lhe dera uma filha e a amante que trabalhava na embaixada belga. Os dilemas interiores que o consumiam, aprisionado entre as duas mulheres que eram os dois hemisférios da sua vida. E de como mergulhava numa mortificação interior, entregue nos braços de um egoísmo e da covardia que o impedia de parar de agredir, de maneiras diferentes, as duas mulheres.
Eis a minha decepção com o filme: não está longe de uma lamechas historieta de amor. Decepção, porque contraria o que conhecia da vida de Curtis. Uma versão a preto e branco do romantismo. E ainda que o filme procure tecer as pontes entre músicas resguardadas na intemporalidade e a vida de Curtis, impregnando-as com a influência das angústias interiores pelos desacertos amorosos, não deixa de ser um filme dominado pela divisão de um homem entre duas mulheres. É nisto que repousa a desilusão: pensava que a vida de Ian Curtis tinha outra densidade, no esteio de uma sensibilidade invulgar de que ficaram fragmentos poéticos inigualáveis. O filme tenta provar que por detrás da veia poética de Curtis havia a encruzilhada amorosa.
Chego ao fim e fico entregue aos pensamentos que ainda vogam sobre o filme. Hesito entre a resignação perante o lado mais humano de Curtis, afinal um homem como outro qualquer que tinha sentimentos e que se mortificava pela covardia diante das duas mulheres. Há aqui a ambiguidade do filme. Por um lado, afinal não os traços de deificação de Curtis que eu tanto temia. Por outro lado, a faceta não conhecida da vida de Curtis, dando a impressão que toda a sua obra foi marcada pela encruzilhada dos amores.
Nem sei o que preferia. Se um retrato quase hagiográfico, que contemplasse a sede pela iconoclastia que uma geração que viveu o frémito dos Joy Division acolheria com simpatia, na nostalgia do passado que vai sendo distante. Ou se a revelação de um Curtis mais humano, mas ao mesmo tempo mortificado por um desvario lamecha que, num registo alternativo das vulgares comédias românticas, traz à superfície o “lado B” do romantismo que não deixa de ser romantismo.
As biografias são sempre polémicas, porque não reúnem unanimidade na apreciação. Quantas vezes as pessoas que lidaram de perto com o biografado divergem em detalhes como em episódios marcantes. Assim acontece com o suicídio de Curtis. Há vinte anos tinha lido, numa biografia da sua vida, que Curtis era uma alma atormentada pela epilepsia que se revelara tardia. E também atormentado por injustiças que o mundo atirava contra a sua mente, que o dilaceravam para além do comum numa pessoa comum. Lera então que Curtis deixara uma carta antes de se suicidar. E que nessa carta revelara a incompreensão pelas mortes absurdas em Angola, de como o tribalismo animalesco consumia as energias de um povo já de si entregue à miséria. O filme ignora-o. Não há carta alguma, apenas o cansaço derradeiro após mais um ataque de epilepsia e a cedência pela incapacidade de sair da encruzilhada amorosa.
No final do filme, a ficha técnica faz revelações sintomáticas. Baseou-se na biografia de Curtis da autoria da sua mulher, Deborah Curtis. E, por coincidência, a co-produtora chama-se Deborah Curtis.
1 comentário:
Também eu tinha as minhas expectativas muito elevadas; há cerca de 1 ano que consumia avidamente toda a informação publicada sobre o filme. Não posso deixar de concordar que existe alguma desilusão ao "saber" que afinal Curtis era um miudo que não se conseguiu desenvencilhar de uma teia amorosa; ok exista a epilepsia, o medo da fama (Curtis suicida-se antes de partir em digressão para a América), o medo de sentir que estava a desapontar toda a gente que gostava e por último (esta acho curiosa) a forma caricatural como os restantes elementos da banda - New Order hoje - são retratados (li declarações recentes destes palermas a dizer que não perceberam na altura o drama interior de Curtis, que lhes dizia tudo através das suas letras); no entanto, e como bem apontas, este filme é baseado no livro da mulher (típica mulher da província semi industrializada)e realizado por um fotógrafo cuja vida mudou depois de assistir a um concerto de Joy Division. Anton Corbijn fotografa os elementos da banda, a capa do disco "Closer" e... numa visão romântica, parece-me que este filme é mais "Anton Corbijn a libertar-se de um fantasma" que o perseguia há muitos anos. Este assunto tem muito (ainda felizmente) para falar; para uma visão mais abrangente do tema, recomendo voltar a visionar o "24 Hour Party people" e também aguardar pela estreia de um documentário sobre "Joy Division". O lado engraçado disto é que uma banda com apenas 3 discos editados, 4 anos de actividade e alguns concertos em 3 ou 4 países da Europa é capaz de (como dizia o cronista apaixonado do Público) " ter 3 filmes dedicados algo que os Beatles, Rolling Stones ou mesmo os U2 nunca o conseguiram!" E isto, meus amigos é obra; da Boa!
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