2.11.07

Para um feminismo de pacotilha


Tive que falar da volatilidade dos valores que entram a escala de prioridades das sociedades. Para comparação, sirvo-me do enxovalho a que as mulheres são remetidas nos países islâmicos mais radicais. Há um aluno que me diz que isso não é bem assim, que ele até esteve “na Arábia” (venho depois a saber que “a Arábia” é o Dubai). Perante a minha perplexidade pelas suas palavras, emendou a mão: “para mim a mulher é uma flor. Uma flor”, lançou, enfatizando a repetição. Ao mesmo tempo que o fazia, o tom de voz escorregava para um cinismo marialva.

Um pouco confuso com o desassombro do jovem, apanhado de surpresa com a inversão táctica que operara – tão depressa negara o papel aviltante reservado às mulheres nos países árabes, como confessara que as trata como “flores” – só consegui dizer: “não sei se isso é bom ou mau para as mulheres”.

O discurso de género encerra os predicados que enlameiam os fundamentalismos. As feministas exacerbadas perturbam-me. Para elas tudo está mal, como se ainda vivêssemos presos a uma grotesca desigualdade de sexos, tal como nos tempos, quiçá, dos nossos bisavôs. Insistem em beneficiar da “discriminação positiva” que julgam exigência de uma sociedade que ao longo da História foi pouco simpática com a mulher. Mas depois são capazes de se indignar se um homem, querendo ser cavalheiro (oh! odiosa e anacrónica condição) lhes cede passagem quando franqueiam uma porta. Protestam, julgando que a deferência é apenas uma manifestação suplementar de tratamento desigual que os masculinos espécimes lhes reservam.

Há o outro lado, tão deplorável como as incansáveis feministas: os machões que destilam um gelatinoso marialvismo. Alguns não escondem que a mulher é um ser inferior. Gabam-se de as tratar à medida dessa inferioridade. São capazes de proferir despautérios que, ao menos, destapam as águas lamacentas da inteligência em que rastejam. Dizem que elas gostam de ser maltratadas. Fazem gala em discursar sobre a coisificação da mulher, pois ela foi criada para ser submissa ao homem. Santificam a consorte e reservam para as rameiras que visitam com frequência os devaneios carnais, sem sequer perceberem que a santa que fica em casa perde a santidade a partir do momento em que nidificam no circuito do alterne. Se preciso for, esbofeteiam a santificada consorte quando, no calor de uma discussão, perdem a força da razão e escorregam para a razão da força.

Serão eles que, naquilo que julgam ser sábios momentos de discernimento, soltam as palavras que enfeitiçam as donzelas desprevenidas: “a mulher é uma flor”. Algumas, porventura distraídas, hão-de ficar encantadas com a poesia de algibeira. Podiam ao menos interrogar: o que pode um homem fazer com uma flor? Pode arrancá-la da raiz, deixando-a num estado vegetativo enquanto definha ao embelezar temporariamente uma sala. Olham para a flor, embevecidos, garbosos por ostentarem a airosa flor que semeia os vestígios da estética no compartimento que a acolhe. Olham para a flor e nem percebem que a estão a condenar ao sofrimento angustiante, à morte lenta, ainda adiada enquanto a flor se saciar na água à espera de ficar fétida.

O lado contrário, que compactua com as reivindicações das exaltadas feministas, é loquaz na patetice. No afã de satisfazer as exigências que marcam a agenda da “discriminação positiva” que as feministas reclamam, aceitam medidas que deixam no ar o cheiro à pólvora que acabou de ser disparada no sentido do próprio pé – de quem toma essas medidas, mas sobretudo das feministas que se comprazem com elas. Um hipermercado recém-inaugurado em Santa Maria da Feira distinguiu-se pela insólita construção de um espaço no parque de estacionamento só para as condutoras. Mais espaço para cada automóvel que tenha senhoras ao volante e um sinal identificativo de estacionamento para senhoras – como há sinais de trânsito que reservam lugares para deficientes.

Chamem-lhe “discriminação positiva”. E aplaudam. Estou mais convencido que este laivo do cansativo politicamente correcto não passa de mais um acto que vem estigmatizar as mulheres. E como entretanto ainda não li palavras de protesto das feministas mais militantes, julgo que elas estão contentes com a estigmatização. Só ainda não percebi se por distracção ou por ignorância.

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