8.11.07

O palimpsesto

(Do dicionário – “Palimpsesto: sentido figurado, texto que existe sob outro texto.” De um diálogo entre as duas metades do ser, uma delas – a alteridade – surgindo em itálico.)

Quem nunca acordou preso às amarras de um estranho que parece habitar em si? E quem, de tanto tempo conviver com esse estranho, não se interrogou se o estranho, de tão assíduo, suplantara o eu convencionado? Há todo um vasto território, insondável, onde fervilha a alteridade do ser. Às vezes emerge compassada com a surpresa: ao dar conta que afinal somos diferentes do que julgáramos ser, o sangue já fervente expulsando o eu que se habituara a imperar.

(Isso tudo, ou apenas fragmentos irrelevantes em demanda de mistérios e significados escondidos em inacessíveis lugares, afinal nunca visitados a não ser nestas peregrinações que servem para ensaiar a escrita. O suplício da subjectividade. O martírio de quem se aventura por ruas despidas de pavimento, só com as pedras pontiagudas à mostra, os pés desnudados sangrando na via sacrificial que leva a lugar nenhum. De que serve a coloração pungente dos devaneios interiores, se através dela se chega ao abismo?)

O arrebatamento da alteridade é um lancinante exercício, a reorientação do ser. Ou não. Pode descerrar diante dos olhos um vasto campo onde se desfraldam flores perfumadas, uma sinfonia de cores como se nessas flores todas as cores do mundo tivessem sido retratadas. A alteridade pontua a transformação. Ou sinal positivo, ou sinal negativo. Depende do alter ego descoberto – ou, muitas vezes, sem bem se perceber, apenas redescoberto –, depende do outro eu asfixiado nas catacumbas do ser. Nem sempre a experiência carpida nas incidências do tempo molda alteridade confortável. Por vezes, é a acidez que destila o outro eu, acabrunhado, contristado, suspeitoso, ensimesmado, até irascível.

(Do discurso como retórica infernal, mas placidamente anódina. Lucubrações que jorram como águas tempestuosas que descem a alcantilada garganta de um rio de montanha. Quando chegam à foz, são um gigante domado pela fértil planície que se estende além do alcance da vista. Amansadas águas, destituídas da ferocidade anunciada. Apenas águas que se entregam nos braços da imensidão salgada, onde são sepultadas. Jamais voltará a haver notícia delas, eternamente perdidas na vastidão do mar. Assim se esvaem as ideias que soam a filosofia de bolso.)

No desdobramento do eu em dois, inquieta o moralismo que uma das metades apregoa. Costuma a metade que se julga mais discernida, aquela que ajuíza só depois de acamado o tempo, entoar enfurecidas palavras que arremetem contra o moralismo, contra qualquer moralismo. A metade oposta tem conhecimento da verve racional que acaba por prevalecer. Ainda assim, é ela que domina as reacções perante um acontecimento, ou palavras ditas pelos outros. É esse hemisfério – espontâneo, estouvado, sem esmerar raciocínios – que soergue, ditando asserções que exalam decadente moralismo. Nessa altura já as águas interiores fervem, revoltosas, encavalitam-se em ameaçadoras ondas que espumam toda a sua raiva quando embatem de frente umas nas outras, desfazendo-se numa espuma branca, inerte.

(Lá no fundo, não há um eu e sua alteridade. A antítese da moralidade apregoada pela jactante “metade discernida” é um revólver que dispara balas envenenadas pela pior das moralidades. De cada vez que a alteridade racional reclama a asfixia da moralidade – de qualquer moralidade –, entrega-se nos braços da pior das moralidades. Aquela que mora no lugar imperceptível que dá existência àquilo que denega.)

Entra em cena o observador exterior, qualificado para diagnosticar as maleitas do espírito que apoquentam o indivíduo hesitante entre o seu eu – ou aquilo que julga dele conhecer – e a sua alteridade, também ela relevada. O julgador teria um duplo condão: chegar com o véu da ignorância, jamais tendo falado com o espírito atormentado; e especialista em desatar nós que semeiam as dúvidas que preenchem o horizonte de quem se divide entre o seu eu e a alteridade. Em vez de aclarar, ele diria que há outra alteridade reprimida, que combate dos fundos do ser o eu dominante e a alteridade esboçada. Diria que esta alteridade é uma construção oportuna para esbofetear traços do eu conhecido que são desconfortáveis. É, todavia, uma alteridade fabricada, artificial, apenas um pretexto para mascarar sombras do eu, ou quando o eu conhecido é uma consumição que exige refúgio de si.

A alteridade reprimida: ou a tarefa maior que aquele eu deveria abraçar, houvesse coragem para o desprendimento das duas metades de que se julga composto. Descobriria, então, que há dentro de si o palimpsesto de si mesmo: ofuscado, aprisionado em profundas masmorras onde o ar fétido não aconselha visita.

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