Continuo maravilhado com a superior inteligência dos magistrados. São um órgão de soberania. Exigem respeito. Colocam-se acima de qualquer suspeita e não admitem que a sua competência seja questionada. Ofendem-se quando alguém contesta sentenças, ainda que elas soem ao público como manifestações de insensibilidade. Pairam sobre os comuns dos mortais, sobre quem aplicam a sua excelsa administração da justiça. Pairam com uma capa de impunidade – ou não se aprenda nas faculdades de direito que os juízes beneficiam de um estatuto de “irresponsabilidade”.
De vez em quando há sentenças que chocam as pessoas. Não se percebe como um juiz, no seu juízo perfeito, possa assinar uma sentença que, aos olhos do grande público, é a denegação da justiça. O contrário do que se espera de um magistrado. Convém esclarecer que perorar sobre sentenças é um risco nem sempre calculado. Há muita comunicação social, muitos comentadores públicos, muito povo ignaro que no seu íntimo está convencido que faria melhor justiça (popular) do que a produzida pela magistratura. Muita gente sentencia as sentenças sem as conhecer nos seus detalhes. Os casos dos tribunais vêm para a praça pública apenas nos pormenores que alimentam a curiosidade da comunicação social. Escapam aspectos importantes que levam os juízes a julgar como julgam. E, se mais não fosse, há uma fé dogmática nos tribunais – na sua independência, na sensatez de quem aplica o direito. Na crise da democracia moderna, e por entre o cepticismo arreigado que merece a classe política, uma confiança higiénica nos juízes.
Só que a magistratura não escapa à teoria das maçãs podres. Há sempre uma maça apodrecida entre um cabaz de maças sãs. Os juízes são humanos; falíveis, portanto. O que inquieta observações imparciais é a pesporrência dos magistrados, que se acham possuídos de um dom divino que os coloca a coberto do erro. E se, no seu íntimo, discernem o erro, não têm a humildade de o admitir. Na infalibilidade, rivalizam com os médicos. Talvez por isso, e porque sabem que planam na superior condição de órgão de soberania, elitizam-se. Se é errado tomar a árvore pela floresta, é tão errado não isolar as maças podres que, não sendo denunciadas, infectam o cesto onde se acomodam as outras maças.
Há dias, mais um episódio de justiça duvidosa. Um cozinheiro de um hotel foi despedido por ser portador do vírus HIV. O hotel temeu pela saúde dos clientes – ou que os clientes, sem se saber ao certo como teriam conhecimento de que havia um cozinheiro infectado com aquele vírus, começariam a debandar para a concorrência. O cozinheiro contestou o despedimento em tribunal. Que deu razão ao hotel. Houve recurso para tribunal superior, que voltou a dar razão ao hotel. Há aqui um problema de redobrada intensidade: não foi um juiz, um tribunal apenas, a dar razão ao hotel. Foram dois tribunais, seis juízes pelo menos, a concordarem que aquele cozinheiro não podia continuar a trabalhar. Pela saúde dos clientes e, quiçá, dos colegas de trabalho.
Como adverti lá atrás, não li as sentenças dos tribunais. Li em vários jornais relatos sobre o caso – e admito haver aspectos importantes que terão escapado à lupa da imprensa. Retive informação que deixa a impressão das sentenças se afastarem dos cânones da justiça. É que fazer justiça não é contrariar a ciência. Testemunhos de cientistas qualificados asseguram a impossibilidade do suor e da saliva de uma pessoa infectada com HIV serem fontes de contágio da doença. E é impossível o sangue vertido sobre alimentos (como se, em si, a probabilidade de isso acontecer fosse elevada) contaminar quem os ingira, mesmo que esta pessoa tivesse feridas na boca. Contou mais o testemunho do médico ao serviço do hotel, que por estar nessa condição enviesou a ciência e convenceu os juízes dos elevados riscos de contágio se o cozinheiro continuasse a trabalhar no hotel. Porventura o cozinheiro terá falhado por não ter levado a tribunal depoimentos de consagrados cientistas que haveriam de convencer os juízes, a custo, de que a ciência estava do seu lado.
De tudo isto sobra a sensação de que os juízes, do alto da sua iluminada inteligência, se sobrepõem ao conhecimento científico. De que valem anos e anos de investigação científica, feita por exércitos de pessoas qualificadas, se depois vem um juiz proferir sentença que passa uma esponja sobre essa ciência? De que valem teses de doutoramento, investigações às vezes premiadas, se depois um iluminado magistrado assina uma sentença que faz tábua rasa desse conhecimento? Teremos juízes a reescrever a ciência, mesmo nada sabendo dela.
De repente, ocorre-me uma analogia (ferramenta técnica de que os juízes se servem, ocasionalmente, quando julgam): uma analogia entre estes juízes e o clamor popular quando uma horda inflamada reclama por “justiça popular” (uma contradição de termos). Os magistrados nem querem ouvir falar da tal “justiça popular”, porque o povo não tem qualificações para fazer justiça. E os juízes, têm qualificações para ultrapassarem o conhecimento dos cientistas? Os juízes estão para a ciência como o povo inflamado, que reivindica a justiça pelas suas próprias mãos, está para a justiça.
De vez em quando há sentenças que chocam as pessoas. Não se percebe como um juiz, no seu juízo perfeito, possa assinar uma sentença que, aos olhos do grande público, é a denegação da justiça. O contrário do que se espera de um magistrado. Convém esclarecer que perorar sobre sentenças é um risco nem sempre calculado. Há muita comunicação social, muitos comentadores públicos, muito povo ignaro que no seu íntimo está convencido que faria melhor justiça (popular) do que a produzida pela magistratura. Muita gente sentencia as sentenças sem as conhecer nos seus detalhes. Os casos dos tribunais vêm para a praça pública apenas nos pormenores que alimentam a curiosidade da comunicação social. Escapam aspectos importantes que levam os juízes a julgar como julgam. E, se mais não fosse, há uma fé dogmática nos tribunais – na sua independência, na sensatez de quem aplica o direito. Na crise da democracia moderna, e por entre o cepticismo arreigado que merece a classe política, uma confiança higiénica nos juízes.
Só que a magistratura não escapa à teoria das maçãs podres. Há sempre uma maça apodrecida entre um cabaz de maças sãs. Os juízes são humanos; falíveis, portanto. O que inquieta observações imparciais é a pesporrência dos magistrados, que se acham possuídos de um dom divino que os coloca a coberto do erro. E se, no seu íntimo, discernem o erro, não têm a humildade de o admitir. Na infalibilidade, rivalizam com os médicos. Talvez por isso, e porque sabem que planam na superior condição de órgão de soberania, elitizam-se. Se é errado tomar a árvore pela floresta, é tão errado não isolar as maças podres que, não sendo denunciadas, infectam o cesto onde se acomodam as outras maças.
Há dias, mais um episódio de justiça duvidosa. Um cozinheiro de um hotel foi despedido por ser portador do vírus HIV. O hotel temeu pela saúde dos clientes – ou que os clientes, sem se saber ao certo como teriam conhecimento de que havia um cozinheiro infectado com aquele vírus, começariam a debandar para a concorrência. O cozinheiro contestou o despedimento em tribunal. Que deu razão ao hotel. Houve recurso para tribunal superior, que voltou a dar razão ao hotel. Há aqui um problema de redobrada intensidade: não foi um juiz, um tribunal apenas, a dar razão ao hotel. Foram dois tribunais, seis juízes pelo menos, a concordarem que aquele cozinheiro não podia continuar a trabalhar. Pela saúde dos clientes e, quiçá, dos colegas de trabalho.
Como adverti lá atrás, não li as sentenças dos tribunais. Li em vários jornais relatos sobre o caso – e admito haver aspectos importantes que terão escapado à lupa da imprensa. Retive informação que deixa a impressão das sentenças se afastarem dos cânones da justiça. É que fazer justiça não é contrariar a ciência. Testemunhos de cientistas qualificados asseguram a impossibilidade do suor e da saliva de uma pessoa infectada com HIV serem fontes de contágio da doença. E é impossível o sangue vertido sobre alimentos (como se, em si, a probabilidade de isso acontecer fosse elevada) contaminar quem os ingira, mesmo que esta pessoa tivesse feridas na boca. Contou mais o testemunho do médico ao serviço do hotel, que por estar nessa condição enviesou a ciência e convenceu os juízes dos elevados riscos de contágio se o cozinheiro continuasse a trabalhar no hotel. Porventura o cozinheiro terá falhado por não ter levado a tribunal depoimentos de consagrados cientistas que haveriam de convencer os juízes, a custo, de que a ciência estava do seu lado.
De tudo isto sobra a sensação de que os juízes, do alto da sua iluminada inteligência, se sobrepõem ao conhecimento científico. De que valem anos e anos de investigação científica, feita por exércitos de pessoas qualificadas, se depois vem um juiz proferir sentença que passa uma esponja sobre essa ciência? De que valem teses de doutoramento, investigações às vezes premiadas, se depois um iluminado magistrado assina uma sentença que faz tábua rasa desse conhecimento? Teremos juízes a reescrever a ciência, mesmo nada sabendo dela.
De repente, ocorre-me uma analogia (ferramenta técnica de que os juízes se servem, ocasionalmente, quando julgam): uma analogia entre estes juízes e o clamor popular quando uma horda inflamada reclama por “justiça popular” (uma contradição de termos). Os magistrados nem querem ouvir falar da tal “justiça popular”, porque o povo não tem qualificações para fazer justiça. E os juízes, têm qualificações para ultrapassarem o conhecimento dos cientistas? Os juízes estão para a ciência como o povo inflamado, que reivindica a justiça pelas suas próprias mãos, está para a justiça.
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