Dizem que os olhos também comem. A explicação para um toque final que embeleza os pratos, mania contemporânea da nouvelle cuisine, que vulgarizou um vocábulo que é predicado necessário da gastronomia de elite – empratamento. Porque os olhos também comem. Ainda que sejamos, tantas vezes, mais olhos que barriga. Acontece amiúde: iguarias que cativam a atenção da vista mas atraiçoam o sentido palatal. Há bolos assim: obras de arte, uma sinfonia de cores que atrai os olhos. Quando se ingerem, não sabem a nada.
Também há frutos que são o protótipo do engodo dos sentidos. Morangos vistosos, enormes, que se encavalitam em caixas nas prateleiras de supermercados pedindo para serem levados para casa, no seu vermelho garrido que é chamariz inevitável para os sentidos. Quando estalam na boca e revelam o seu sabor insípido, a decepção dos sentidos. E há laranjas redondas, perfeitas na forma circular, uma casca que é lição da cor reluzente. Todavia, uma desilusão ao serem abertas, de tão secas e desprovidas de sumo.
Por mais que saibamos que a probabilidade do conteúdo não corresponder às promessas do exterior é elevada, descuidadamente voltamos ao de sempre. Às frutas dir-se-ia fabricadas pela perfeição divina mas ao mesmo tempo mostruários de assepsia, às sobremesas encantadoras, à gastronomia que desfila no feitiço do empratamento. O processo repetido à exaustão: o aliciamento dos sentidos, que se entregam numa extasia pelas cores e feitios que cativam os meandros insondáveis do cérebro, abrindo as portas às reacções espontâneas. Que depois fermentam o travo amargo da decepção, quando a degustação fica a descompasso com as promessas tão elevadas deixadas para trás pelas cores e pelas formas deslumbrantes. Sobra o nada como sequela do travo amargo da decepção.
Acontece com frutos e alimentos sabiamente confeccionados em exemplares especiosos da gastronomia. Mas não só. Acontece com actores da política, das empresas, do desporto, das artes, um largo exército que presta contas a um público que é o seu alicerce para permanecerem sob os holofotes mediáticos. A sedução para a cidadania, traço da pós-modernidade vigente, alimenta esperanças de trazer estes agentes sob apertado escrutínio público. A comunicação social é um tribunal decisivo para formar a imagem destes actores. Logo, uma intimidade perversa entre comunicação social e políticos, empresários, desportistas e artistas vários. Um vai e vem entre jornalistas e aquela gente que depende da construção de uma boa imagem.
Esta intimidade, por vezes afinada em verdadeira cumplicidade, não deixa perceber quem traz quem pela trela – se os políticos é que comem na mão dos jornalistas, se estes são séquito daqueles. E há jornalistas seniores que percebem os mecanismos da cumplicidade. Do alto do seu discernimento, libertam a esperteza que cumpre o oportunismo militante. Deixam de ser jornalistas e fundam agências de comunicação. Conhecem os dois elos do processo – comunicação social e políticos. E como ambos se viciam numa intimidade cúmplice, que se transforma em endogamia, os ex-jornalistas vogam sob ambos e manobram os cordelinhos. São os mediadores entre comunicação social que depende do que dizem os políticos e os políticos que precisam da comunicação social como veículo do que dizem e fazem e atribuem aos adversários.
Há ditadura destes fazedores de imagem. Tudo soa a artificial. Uma palavra certa no momento adequado, poses estudadas, demasiado estudadas, uma imagem que soa à mais pura falsidade. São fazedores de imagem, como são fazedores de notícias de que redacções acomodadas se limitam a fazer copy paste. No palco da política, sob as suas ordens desfilam manequins apessoados, fatiotas aprumadas, cada detalhe estudado ao milímetro. Fazem-lhes as indumentárias: gravatas combinadas com camisas para impressionar a audiência – como se fosse a combinação de gravatas e camisas que fermenta a credibilidade e a competência. Quando os políticos dão entrevistas, um discurso que tem tanto de atraente como de falacioso. Nota-se que a personagem é um enfeite apenas, um embrulho que se desfaz na sua vacuidade, inexistente a substância – ou, se porventura existe, uma recalcada imagem que se asfixia perante os imperativos da imagem fabricada pelos spin doctors.
Os consultores mandam nos políticos. Dizer que são conselheiros é um eufemismo. Eles ditam o que os seus aconselhados dizem e fazem, como se vestem, como devem aparecer, onde devem ir. Imagino os briefings que preparam aparições em público, as cábulas que os políticos têm que decorar à exaustão. E o pânico dos spin doctors quando acontecimentos imprevistos exigem o improviso dos “seus” políticos. Aquele momento inesperado que exige uma reacção do político, uma palavra que não constava do roteiro milimetricamente encenado pelos spin doctors. Devem suster a respiração, soltar o nó da gravata, amordaçados pelo pânico: as criaturas emancipam-se dos spin doctors, ganham vida própria. Asneiram, e não poucas vezes, quando se soltam as amarras entre os fazedores de imagem e os políticos.
É então que se percebe que sem a tutela dos consultores de imagem, sem trela, são inócuas personagens. Sem o feérico espectáculo do embrulho com que nos são oferecidos, são a negação das laranjas sumarentas que os fazedores de imagem, notáveis ilusionistas, nos (e lhes) prometem.