31.1.08

Laranjas sem sumo


Dizem que os olhos também comem. A explicação para um toque final que embeleza os pratos, mania contemporânea da nouvelle cuisine, que vulgarizou um vocábulo que é predicado necessário da gastronomia de elite – empratamento. Porque os olhos também comem. Ainda que sejamos, tantas vezes, mais olhos que barriga. Acontece amiúde: iguarias que cativam a atenção da vista mas atraiçoam o sentido palatal. Há bolos assim: obras de arte, uma sinfonia de cores que atrai os olhos. Quando se ingerem, não sabem a nada.

Também há frutos que são o protótipo do engodo dos sentidos. Morangos vistosos, enormes, que se encavalitam em caixas nas prateleiras de supermercados pedindo para serem levados para casa, no seu vermelho garrido que é chamariz inevitável para os sentidos. Quando estalam na boca e revelam o seu sabor insípido, a decepção dos sentidos. E há laranjas redondas, perfeitas na forma circular, uma casca que é lição da cor reluzente. Todavia, uma desilusão ao serem abertas, de tão secas e desprovidas de sumo.

Por mais que saibamos que a probabilidade do conteúdo não corresponder às promessas do exterior é elevada, descuidadamente voltamos ao de sempre. Às frutas dir-se-ia fabricadas pela perfeição divina mas ao mesmo tempo mostruários de assepsia, às sobremesas encantadoras, à gastronomia que desfila no feitiço do empratamento. O processo repetido à exaustão: o aliciamento dos sentidos, que se entregam numa extasia pelas cores e feitios que cativam os meandros insondáveis do cérebro, abrindo as portas às reacções espontâneas. Que depois fermentam o travo amargo da decepção, quando a degustação fica a descompasso com as promessas tão elevadas deixadas para trás pelas cores e pelas formas deslumbrantes. Sobra o nada como sequela do travo amargo da decepção.

Acontece com frutos e alimentos sabiamente confeccionados em exemplares especiosos da gastronomia. Mas não só. Acontece com actores da política, das empresas, do desporto, das artes, um largo exército que presta contas a um público que é o seu alicerce para permanecerem sob os holofotes mediáticos. A sedução para a cidadania, traço da pós-modernidade vigente, alimenta esperanças de trazer estes agentes sob apertado escrutínio público. A comunicação social é um tribunal decisivo para formar a imagem destes actores. Logo, uma intimidade perversa entre comunicação social e políticos, empresários, desportistas e artistas vários. Um vai e vem entre jornalistas e aquela gente que depende da construção de uma boa imagem.

Esta intimidade, por vezes afinada em verdadeira cumplicidade, não deixa perceber quem traz quem pela trela – se os políticos é que comem na mão dos jornalistas, se estes são séquito daqueles. E há jornalistas seniores que percebem os mecanismos da cumplicidade. Do alto do seu discernimento, libertam a esperteza que cumpre o oportunismo militante. Deixam de ser jornalistas e fundam agências de comunicação. Conhecem os dois elos do processo – comunicação social e políticos. E como ambos se viciam numa intimidade cúmplice, que se transforma em endogamia, os ex-jornalistas vogam sob ambos e manobram os cordelinhos. São os mediadores entre comunicação social que depende do que dizem os políticos e os políticos que precisam da comunicação social como veículo do que dizem e fazem e atribuem aos adversários.

Há ditadura destes fazedores de imagem. Tudo soa a artificial. Uma palavra certa no momento adequado, poses estudadas, demasiado estudadas, uma imagem que soa à mais pura falsidade. São fazedores de imagem, como são fazedores de notícias de que redacções acomodadas se limitam a fazer copy paste. No palco da política, sob as suas ordens desfilam manequins apessoados, fatiotas aprumadas, cada detalhe estudado ao milímetro. Fazem-lhes as indumentárias: gravatas combinadas com camisas para impressionar a audiência – como se fosse a combinação de gravatas e camisas que fermenta a credibilidade e a competência. Quando os políticos dão entrevistas, um discurso que tem tanto de atraente como de falacioso. Nota-se que a personagem é um enfeite apenas, um embrulho que se desfaz na sua vacuidade, inexistente a substância – ou, se porventura existe, uma recalcada imagem que se asfixia perante os imperativos da imagem fabricada pelos spin doctors.

Os consultores mandam nos políticos. Dizer que são conselheiros é um eufemismo. Eles ditam o que os seus aconselhados dizem e fazem, como se vestem, como devem aparecer, onde devem ir. Imagino os briefings que preparam aparições em público, as cábulas que os políticos têm que decorar à exaustão. E o pânico dos spin doctors quando acontecimentos imprevistos exigem o improviso dos “seus” políticos. Aquele momento inesperado que exige uma reacção do político, uma palavra que não constava do roteiro milimetricamente encenado pelos spin doctors. Devem suster a respiração, soltar o nó da gravata, amordaçados pelo pânico: as criaturas emancipam-se dos spin doctors, ganham vida própria. Asneiram, e não poucas vezes, quando se soltam as amarras entre os fazedores de imagem e os políticos.

É então que se percebe que sem a tutela dos consultores de imagem, sem trela, são inócuas personagens. Sem o feérico espectáculo do embrulho com que nos são oferecidos, são a negação das laranjas sumarentas que os fazedores de imagem, notáveis ilusionistas, nos (e lhes) prometem.

30.1.08

Além da luz baça


Por mediação de uns pós mágicos, invisíveis porém, descobria-se a luz límpida detrás da cortina. A cortina que descerrava apenas uma luz baça, escondendo a luz clara na sua impossibilidade. Era por isso que as coisas apareciam escurecidas, tingidas pela podridão. E o desenraizamento se entranhava, deixando o espírito nas ameias distantes onde a solidão se refugiava. Todavia, se se esforçasse descobria a portinhola por onde alcançava o lado de lá da cortina da embaciada luz. Como se franqueasse o limiar do fantástico, onde a ténue diferença entre a luz habitualmente embaciada e a luz límpida que ali irradiava temperasse as diferenças que só têm lugar nos sítios que são seus antípodas.

Quando rompia a muralha que escondia a luz cristalina, tudo era diferente. As coisas na sua beleza fantástica. As pessoas irradiando uma bondade infindável. As palavras ecoavam no seu sentido literal, sem serem perfumadas por segundos sentidos. Tudo era tão claro que ninguém sabia da existência da palavra ambiguidade. As gentes pareciam abençoadas por uma estranha levitação dos corpos, os pequenos passos por gentis avenidas onde se deitava generosidade e compreensão recíproca.

Era um lugar sem as nódoas mundanas da humanidade. Sem tribunais, que as gentes estavam acostumadas a cumprir as leis não escritas a que os comportamentos obedeciam. Sem governantes, evitáveis figuras a partir de um momento (já distante no passado daquele fantasiado lugar aspergido pela luz branca) em que a revolta sublime exilou os políticos em parte incerta.

E havia cooperação, ao mesmo tempo desinteressada e egoísta, numa mortalha onde se abrigavam na sua aparente contradição. As gentes cooperavam. Sabiam que era a solução indeclinável se não queriam regressar aos tempos de outrora onde o fingimento e a dissimulação semearam a embaciada luz que desaproveitou por tanto tempo a alvura em que agora habitavam. Mas egoísta, ao mesmo tempo: cada um sabia, no seu íntimo, que a perpetuação da luz tão límpida era o palco conveniente para poderem repousar no sono tranquilo, despejado de pesadelos, que os visitava todas as noites.

A bondade era de uma força esmagadora. Tão esmagadora que a criminalidade era repudiada com uma severidade que dissuadia. A reprovação dos outros era pena suficiente para desaconselhar os pedregosos caminhos da dissidência antiética. Eram fantasmas já só arqueológicos. Havia museus pedagogicamente montados: museus vivos do que eram tribunais de antanho, fragmentos da mesquinhez que tanto tempo se amesendara no banquete autófago da humanidade. As pessoas tinham o hábito higiénico de visitar esses museus com alguma assiduidade. De cada vez que se sentiam acossadas por fantasmas malévolos, um impulso deixava-as à porta desses museus. Escassos minutos de digressão pelos tempos volvidos, a caução suficiente para retomar o lugar no altar da luz clara.

Pela rua, a beleza dos edifícios, os jardins frondosos, impecavelmente alindados, uma limpeza cuidada, uma organização tácita, sem regras detalhadas, exaustivas, pronunciando ditames legais sobre tudo e mais alguma coisa, como era hábito de outrora. Hábito renegado. Havia, decerto, uma preocupante organização, um lugar idílico, perfeito em demasia. Uma perfeição doentia, agressora até. As gentes eram ordeiras. Todos eram paradigmas de cidadania. Só havia cidadãos exemplares. A tal ponto que já nem sequer fazia sentido falar de cidadania exemplar. Um rebanho inebriado pela luz límpida, onde só tinham lugar as pessoas entregues à bondade irrecusável, povoava as dúvidas. Para onde tinham ido as excrescências que eram abundante matéria no passado encerrado? Sem excepção reconvertidas ao idílico lugar onde todos conviviam na perfeição almejada? Todavia, na perfeição inumana.

Era então que sobravam as interrogações que rompiam a condescendência geral perante a terapêutica luz límpida. Não era um requiem sentido pelos tempos idos, da malsã vida que tinha tido funeral com a revolta das gentes. Só legítimas dúvidas de que tamanha bondade, um lugar tão perfeito, pertença ao património genético humano. O genoma é incompatível. As imperfeições e toda a luz embaciada são a residência a que pertencemos. Não os sonhos idílicos. E, por idílicos, a sua impossibilidade perene. A voz que se sobrepõe é a da resignação. A que anuncia a intemporalidade da luz baça.

29.1.08

Um ateu reconvertido tem dilemas existenciais?


Vai por aí uma tempestade por causa de um convite da Universidade de Roma La Sapienza ao papa Bento XVI para discursar na abertura solene do ano lectivo. Correu, célere, um abaixo-assinado subscrito por professores da universidade protestando contra a visita. Bento XVI declinou o convite. A polémica incendiou-se. As versões variam (dos adeptos da igreja, ou simplesmente dos paladinos da liberdade de expressão; e dos ateus militantes, disparando munições contra a igreja): o papa foi impedido de falar; ou terá sido apenas uma encenação papal, uma retirada estratégica para se vitimizar às mãos dos carrascos da intolerância religiosa, os ateus implacáveis.

E anda meio mundo entretido a polemizar sobre um nada. O que interessa saber se houve mesmo intolerância, ou se o papa manobrou o episódio para encostar às cordas os adversários, que assim carregariam perante a opinião pública o opróbrio da intolerância? Os dois lados da barricada têm apresentado furiosas argumentações que chamam a si a razão e querem deixar os adversários em maus lençóis. Uns, ratos de sacristia ou tão só amantes da liberdade de expressão, acusam os outros – adeptos do ateísmo – de impedirem a liberdade religiosa. Houve até quem sugerisse, em perfeito exagero, que o episódio mostra como nos dias que correm os ditames do politicamente correcto empurram a igreja para a clandestinidade. Do lado contrário, a negação das acusações. E um contra-ataque que vai às catacumbas da memória para mexer com os esqueletos incómodos da igreja, as inquisições e as intromissões na consciência individual.

Há polémicas boas, polémicas que interessam apenas a uns quantos, entretidos com a especificidade do tema, e polémicas estéreis. Eu acho que está é uma polémica estéril. Com muito malabarismo argumentativo. No desfile da retórica usada pelos dois lados da barricada, truques que escondem fantasmas que os atormentam, fantasmas que enfraquecem as respectivas posições. É o que sucede quando são desferidos ataques violentos contra a parte contrária: o ataque desvia as atenções para o acessório, pela percepção de que o acessório chama mais atenções que o essencial, entretanto deixado ao esquecimento.

Nesta polémica que arde bem alto, o que tem sido discutido não deixa de pertencer ao acessório. Quem acaba por cair numa armadilha são os que, do lado do ateísmo, disparam acusações ao papa. Eis a forma como um ateu reciclado lê os acontecimentos (um ateu reciclado: alguém que teve educação católica e, entretanto, perdeu os vestígios da fé e abraçou o ateísmo). O antagonismo entre católicos e ateus centra-se em deus. Os primeiros acreditam na existência de deus. Entre as fileiras do ateísmo, há quem dedique tempo excessivo a negar a existência de deus. É a esparrela em que os exacerbados ateístas caem. Quando tentam provar a inexistência de algo, o erro metodológico de dar o flanco ao adversário. Não é tanto pela atitude de negação, com a provável exposição às críticas de quem os acuse de se limitarem a desconstruir algo. O problema é que a vertigem pela ausência de deus acaba por ser o trunfo de que estão à espera os crentes em deus.

A dúvida existencial que assalta o ateísmo é um tremendo erro de método. O constante acosso da divindade que dizem negar traz à superfície uma interrogação: não estarão os ateus apenas a negar a evidência? Não estarão a afirmar, através da negação, a existência daquilo que se convencem não existir? É por isso que toda esta polémica é um alçapão fundo em que os ateus caem, a insistência no erro que só aproveita aos católicos. Às voltas com os crentes, são arquitectos da afirmação do deísmo. Inadvertidamente, cultores da deificação do que tão exacerbadamente negam existir. O erro dos professores de La Sapienza autores do abaixo-assinado foi a importância excessiva dedicada ao sacerdote maior de uma entidade que sagra a existência de uma divindade inexistente para os ateus. Ora, se deus não existe, porque se deitam os ateus que nem cães raivosos ao sacerdote maior dessa igreja?

Como ateu reciclado, extraviado do catolicismo, tenho dilemas existenciais. Não os tenho, contudo, relativamente a deus. Não me persegue a urgência de afirmar a inexistência de deus. O ateísmo deve pressupô-lo. O conceito de deus é um corpo estranho aos quadros mentais em que se movem os ateus. Quando a discussão envolve deus, ou traz polémicas que abraçam de lados opostos da barricada crentes e ateus, a entrega à polémica é uma forma de creditar, sem o querer, a existência do que dizem ser uma ausência. Que haja a tentação de não fugir a uma boa polémica, pela excitação intelectual que elas emprestam, é o dano colateral que atinge os ateus. Essa sim, a dilacerante dúvida existencial semeada nas suas vidas.

28.1.08

Do mau perder


Miopia, ou apenas maus fígados? Há quem se acostume a ganhar, a ganhar quase tudo. E depois, quando entram na arena com um dos rivais históricos e saboreiam a derrota, ausenta-se o poder de encaixe para digerir a desdita. Nunca, nunca o adversário merece sair vitorioso do pleito. A falta de espírito desportivo é marca registada. Podem ser consagrados – ou fazerem a sua auto-consagração – pelos feitos sucessivos nos campeonatos caseiros e até em competições estrangeiras. Nunca teriam o dom de franquear as portas do espírito olímpico.

São tão especialistas em ganhar como em não dar o braço a torcer quando o resultado é adverso. Os pragmáticos, a quem só os resultados interessam – e que rapidamente condescendem que só mesmo os resultados merecem avaliação, não tanto como lá se chega – terão uma palavra de aceitação para o fel destilado na hora das escassas derrotas: tão habituados a coleccionar vitórias e troféus, a passear a superioridade sobre os adversários, na hora em que um pleito é coroado com a derrota solta-se o azedume. E tolda-se o entendimento: numa reviravolta de cento e oitenta graus, afinal ignoram a lógica do resultado que tão religiosamente abraçam. É que quando perdem, é porque o adversário meteu mais bolas na baliza. Não é isso que conta?

Sempre com a mania de serem acossados por todos os lados, elaborando especiosas teorias da conspiração de que são vítimas preferenciais, resguardam-se numa retórica guerreira que faz do jogo uma batalha quase bélica. A animosidade da seita é o cimento da união. Quando a sorte se desencontra com eles – e a sorte é tão aleatória, não é?! – choram-se pelo abandono dos deuses da fortuna a cuja companhia se habituaram. Porventura os deuses da boa aventurança gostam de pousar noutros logradouros, para variar. Às vezes, também para variar, o sortilégio do jogo deixa-os desamparados. Ficam órfãos na sua insuficiente competência. E todas as tentativas esbarram no azar, num passo excessivo que desequilibra do golo, a trave da baliza insolentemente no caminho da bola selada com o destino do golo.

Um grito de revolta mistura-se com a miopia da análise. Vomitam as palavras que desmerecem o feito do adversário, que afinal chegou ao fim do jogo com mais golos na algibeira, açambarcando a vitória. Eles adoram que os adversários se curvem perante a sua superioridade de cada vez que saldam o jogo com uma vitória inequívoca. Faz parte a passadeira triunfal que gostam de ver desempacotada à frente dos seus pés. E pertence-lhes o execrável hábito de humilhar os adversários, como se não fosse suficiente a derrota com que saem vergados do terreno da batalha. Não chega: eles abandonam, cabisbaixos, mas são obrigados a admitir a justeza do feito do adversário, a estocada fatal que rouba os últimos pingos da dignidade dos vencidos. É assim que se comportam na hora da vitória. Todo o contrário quando sai em sorte o sabor amargo de perder uma disputa.

Eu acho que é o hábito das vitórias que dilui o espírito olímpico com que todos os derrotados se devem portar. O azar é ingrediente do jogo. Do outro lado, um adversário. E um jogo é uma sucessão de lances feitos da interacção com o adversário. A indignidade maior é menosprezar o adversário, seja na humilhante estocada fatal com que exigem a vassalagem dos adversários agraciados com a perda do jogo, quer, sobretudo, quando chega a sua hora de fazer a digestão da derrota.

O sorumbático treinador da agremiação sentenciou: “o resultado é uma mentira”. Julgava que a lógica das “vitórias morais”, o ridículo espírito do “perdemos mas saímos de cabeça erguida” tinha saído do vocabulário dos habituados a ganhar até a gigantes europeus. Terá sido distracção, ou apenas uma incontrolável manifestação biliar, mas o cenhoso treinador ensaiou ali a irreprimível pequenez dos que não sabem encaixar o peso de uma derrota.

É nestes momentos que se revela a grandeza dos intérpretes. Tão grandiosa é a vitória que sagra a maior competência face aos rivais, como a humildade de admitir que os adversários mereceram saldar o pleito com a vitória, disfarçando a turbulência que se apodera do fígado. Ou, então, trata-se apenas de maus fígados. No rescaldo, alguém devia perguntar ao treinador incapaz de esboçar um simples sorriso (imagem de marca daquela agremiação, todavia): quantos golos meteram os seus na baliza do adversário? E o adversário, quantos golos meteu? Não é o golo a chancela da justeza de um resultado? O resto, efabulações misturadas com a bílis estragada.

27.1.08

Scout Niblett, "Kiss"

Os aniversários (quatro anos do blog) também se comemoram com três semanas de atraso.

25.1.08

E se os políticos fossem obrigados a registar em notário as suas promessas eleitorais?


É talvez uma das mais agudas doenças das actuais democracias: as muitas promessas feitas em campanha eleitoral que vão sendo esquecidas, ou até violentadas, ao longo do mandato de um governo. Os mais críticos – e os que se despem de imparcialidade por vogarem de outro lado da barricada de um determinado governo – denunciam a indignidade das promessas não satisfeitas. Argumentam: desfaz-se o capital de confiança entre os eleitores e os que governam. Sobretudo entre os eleitores que foram seduzidos pelo programa eleitoral feito de promessas tentadoras que, afinal, vão sendo frustradas.

Há uma tremenda falta de responsabilidade pelos actos e, sobretudo, pelas omissões dos políticos. Desta forma, os políticos são uma classe à parte das demais pessoas, permanecendo intocáveis à medida que se desfazem as promessas de outrora que vão entrando no rol dos esquecimentos, ou das impossibilidades. Uma casta de excepção, por não serem chamados à pedra. Poderão alguns contrapor: há um momento em que não se podem furtar ao julgamento popular, quando se renovam as eleições. Só que raramente o eleitorado faz um julgamento retrospectivo. É muito tempo, tempo suficiente para as promessas antigas e não cumpridas serem resgatadas como capital de penalização de quem tanto prometeu e pouco fez. A memória curta limpa o cadastro das promessas falhadas. As eleições voltam a ser o palco para a competição do catálogo de promessas prospectivas.

A escolha de um eleitor deve, entre outros aspectos, pesar a acção passada de quem esteve no governo e a comparação das promessas dos partidos que concorrem a uma eleição. Pesar nos pratos da balança o passado e o que se promete para o futuro. É impossível desligar os dois exercícios temporais. Todavia, como a memória se apaga com os fragmentos do tempo ido, o incentivo para apresentar um cardápio de promessas deslumbrantes é irresistível. Os políticos sabem que vão ser julgados não pelo que não fizeram mas pelo que prometem para os dias vindouros.

Esta é a génese da irresponsabilidade dos políticos (no altar do governo) perante as suas omissões. Diante deste diagnóstico, que solução para curar a maleita da democracia – e para restaurar a exigível responsabilidade dos políticos? Defende-se (no blogue “A destreza das dúvidas”) a solenização das promessas em campanha eleitoral. Seria através do registo em notário do cardápio de promessas. Ficariam lacradas com selo oficial. Como se fosse um testamento que os partidos políticos deixam para posterior apreciação. A qualquer momento seria possível perguntar ao notário pelas promessas, cotejá-las com o percurso da governação. Até os partidos remetidos à oposição seriam julgados: perante as promessas que fizeram seria ajuizado o seu desempenho na oposição. Para saber se as propostas alternativas que apresentam se afastam das promessas feitas em campanha, ou se as críticas à governação não expõem incongruências em relação ao catálogo de promessas.

A proposta é aliciante. Teria o condão de evitar políticos que se confundem com vendedores de banha da cobra, atreitos a prometer tudo e mais alguma coisa, sabendo de antemão que a probabilidade de satisfazer essas promessas é reduzida. Confiam na ingenuidade dos eleitores e avançam com um rosário infindável de promessas, o isco que os incautos eleitores mordem. Pela experiência, sabem que mais tarde, quando houver eleições, o passado será branqueado e o julgamento far-se-á pelos dotes prospectivos. Espanta-me a capacidade de esquecimento do passado. Como a menoridade dos eleitores, em doce cumplicidade com os políticos, passa uma esponja pelo desempenho passado. Sem nada aprenderem com os sucessivos erros que vêm detrás, reiterando, eleição atrás de eleição, a obnubilação de promessas passadas, só interessando as promessas voltadas para o futuro. É que assim as promessas nunca chegam a ser julgadas.

A proposta de lacrar em notário as promessas dos políticos é tentadora. Temo que não seja eficaz. A qualquer altura, os mentores do governo desmultiplicariam argumentos a justificar a impossibilidade de cumprir promessas. Diriam que as “circunstâncias mudaram”, tornando impossíveis as promessas. Diriam até, quando se mudassem da oposição para o governo, que desconheciam como estava o país governado pelos antecessores. A proposta teria a vantagem de impedir a desfaçatez de políticos mentirosos, quando são confrontados com promessas que fizeram e negam que as tenham feito. Por outro lado, este sistema seria um convite para que partidos sem possibilidade de chegar ao governo registassem promessas miríficas, sabendo que nunca seriam chamados a passá-las do papel à prática. O que poderia falsear os resultados das eleições, premiando esses partidos e penalizando os que teriam a exigência de só apresentar promessas realizáveis.

E depois há muitas perguntas que ficam sem resposta: na hora da verdade, em que as promessas anteriores fossem deslacradas e um juízo fosse feito, o que acontecia aos partidos com mais promessas falhadas? Que sanções lhes seriam aplicadas? E todas as promessas falhadas teriam a mesma gravidade?

Às vezes, propostas aliciantes esbarram na sua própria impossibilidade. Com o inconveniente de agravar a doença da democracia.

24.1.08

O hino entoado com a mão direita deitada sob o coração – ou o PSD virou partido nacionalista?


A formidável liderança do PSD é um oceano infindável de surpresas. Uma navegação errática, ao sabor dos ventos que sopram, a bússola atrás dos ventos, incapaz de imprimir o seu rumo próprio. O espalhafatoso líder, um cata-vento todos os dias. Ora promete que irá governar (como se isso alguma vez pudesse acontecer…) mais à esquerda que o actual primeiro-ministro. Ora promete o desmantelamento do Estado num abrir e fechar de olhos, acenando aos liberais mais à direita. Ora revela a sua têmpera se algum dia a improbabilidade de ser primeiro-ministro acontecesse, metendo o bedelho nas televisões ao sugerir nomes para os painéis de comentadores políticos.

É pródigo em incontinência verbal. Sempre foi. Agora que chegou ao púlpito no seu partido, teria que contagiá-lo com o frenesim que se confunde com incontinência verbal. Há quem se enterneça com este “activismo”. E mantenha que a oposição tem que ser enérgica para combater a placidez instalada com os socialistas que se incrustam como inevitabilidades perenes. Nem sempre a vozearia traz dividendos. Falar só por falar pode redundar em mero ruído de fundo, ou numa gritaria ensurdecedora que apenas torna insuportável quem promove o ruído.

Tenho, em relação a este partido de centro-esquerda, o distanciamento higiénico que me permite ser observador exterior. Olhá-lo de fora e diagnosticar uma estranha tendência para a autofagia. Escolhem soluções que contentam clientelas lá dentro, esquecendo-se que quem lhes traz os votos é a esmagadora maioria dos que não são filiados mas, de vez em quando, votam neles. De Santana Lopes em Luís Filipe Menezes, até à banalização?

O último episódio risível veio à memória: há semanas, uma daquelas jantaradas nada frugais e decerto nos antípodas do higienismo alimentar tão amplamente propagandeado. Em Penafiel. Um excerto do discurso do líder, com a assistência pousando os garfos para beber a grandiloquência das palavras que parecem de improviso. Já nem me recordo do tema, nem das promessas sonâmbulas, ou das críticas atiradas contra o primeiro-ministro e seu séquito. Guardei na memória a parte final da reportagem. A mesa de honra, presidida por Menezes e ladeada por figurantes locais, em pé a cantar o hino nacional. Uma entoação arrebatada do hino. O líder teve a iniciativa de elevar a mão direita, em gesto sentido, pousando-a sobre o coração. Como necessários macaquinhos de imitação que prestam vassalagem ao líder, o edil de Penafiel e os restantes figurões locais imitaram o gesto.

Julgava que só os nacionalistas encartados (e uma certa equipa de rugby) tinham a ousadia de cantar o hino acompanhando-o deste gesto frívolo. Os nacionalistas que frequentam os terrenos da extrema-direita, ainda tributária da nação como bem supremo do indivíduo, que se deve inclinar respeitosamente perante a pátria. Como o hino celebra as grandezas pátrias, exige-se um sentido, arrebatado entoar das estrofes que acompanham a melodia. A mão direita resguarda o coração, a sublime mensagem: trazer a pátria no coração. Este ritual é uma coroação da pátria, a declinação do indivíduo perante a pátria, se necessário for a sua entrega num altar sacrificial. Com toda a religiosidade inerente. Uma religiosidade em que a pátria faz as vezes da entidade divina.

O que me intrigou foi a coragem do líder do PSD para um gesto conotado com a heterodoxia politicamente incorrecta. O gesto tem uma conotação nítida com o nacionalismo que vegeta na extrema-direita. Só não percebi a intenção de Menezes (o que, aliás, é tarefa labiríntica). Se a encenação foi intencional, uma estratégia congeminada com os seus consultores, aliciando para o PSD gente que navega nas águas da extrema-direita. Numa surpreendente ultrapassagem do CDS-PP pela direita. Ou, porventura, nesse dia Menezes tomou-se de súbitos amores pela portugalidade que ambiciona governar. No fundo, um gesto autocontemplativo por antecipação (que, diria, é uma impossibilidade).

O CDS-PP e o PNR que se cuidem. O gigante PSD soltou as amarras do centro-esquerda e invade terrenos pisados por aqueles partidos. Na ânsia de esconjurar a demorada cura de oposição, vale tudo – até dar guarida a sinais típicos do nacionalismo de extrema-direita. Pela parte que me toca, geneticamente incapaz de depositar o voto no partido cor de laranja, só lamento que todos estes desvarios sejam a caução para o lúgubre actual primeiro-ministro continuar a sê-lo por muito tempo.

23.1.08

Do que eu gosto é de barragens


Todos os dias, a abundância de gente a meter água. Até cada um de nós, inadvertidamente ou por inépcia. As inundações quase nos afogam na água que jorra. Ora em jactos, ora com uma lentidão venenosa – consoante a asneira seja flagrante ou apenas se insinue nos seus efeitos demorados. Como nos custa a introspecção dos erros próprios, vigiamos a asneira alheia. O diagnóstico lapidar: tanta água que escorre, desperdiçada, sinal da incompetência que nos outros é sempre mais nítida.

É por isso que as barragens me deixam fascinado. Obras de engenharia majestosas. O homem na exteriorização das suas plenas capacidades. Domando a natureza, transformando o curso dos rios. As barragens, ao contrário do quotidiano que nos cerca, retêm a água. Os engenheiros que as projectam conseguem desviar cursos de água para montarem a estrutura de betão que há-de ser o paredão onde embatem as águas dos rios, pondo mão no seu caudal.

Os espelhos de água retidos pelas barragens são a miragem onde se consomem todos os passos em falso na lassidão da tolice militante. Toda a água que metemos seria vertida nas albufeiras, o repositório das asneiras insistentes. Só que as albufeiras que esbarram no paredão das barragens são o contrário de tudo isso. As margens recortadas da albufeira contemplam o estio ou a estação pródiga em chuvas, consoante os caprichos da meteorologia.

Não há segredos no enchimento ou no vazamento das albufeiras. Mesmo assim, sobra o aleatório, como se a sorte das albufeiras fosse lançada pelos dados no tapete verde de uma sala de casino. No contraste com o voluntarismo humano que cede o passo à asneira, a franquia para a água que metemos a rodos. Por vezes, incapazes de admitir que somos os fautores únicos dos passos em falso, há o refúgio complacente na sorte arredia. Até nisso a água foge por entre os dedos, adensando o caudal que se esvai sem utilidade alguma.

É grande a admiração pela engenharia que soube domar a natureza. Exactamente nos antípodas de governantes que querem tapar o sol com a peneira, apenas porque esse efeito é de uma oportunidade atroz para as suas agendas. São aprendizes da arte de enganar uma vasta audiência. Eles aparecem, feiticeiros que fazem acreditar que conseguem desviar a natureza do seu curso. Congeminam um discurso feérico: a realidade pintada a cores diferentes, as que lhes são mais aprazíveis. Ainda que essa seja uma natureza idílica, apenas desejada, mas não a natureza que desfila diante dos nossos olhos. São contorcionistas que apresentam um espectáculo pestilento. A sua arte é a de convencer os incautos que conseguem domar a natureza que passa por cima deles, incontrolável. O contrário das barragens que, elas sim, domam a natureza.

A cada sinal da arte do embuste, que ganha lugar de especialidade só ao alcance de profissionais bem treinados, é maior a admiração pelas barragens. Seriam elas o farol de um lugar guiado pela honestidade na arte da política. Elas ensinariam o princípio vital de reter a água, impedindo o tão elevado ónus que é o desperdício de água, a imbecilidade da asneira premeditada. A denúncia da água que se esvai, sem freio, a cada palavra encenada pelos que não passam do tirocínio da governação. Eles estão é empenhados na sua sobrevivência, mesmo quando ela é tão nefasta para os que estão sob a sua alçada.

Nem mesmo os que se arvoram na dupla condição de engenheiros e governantes as conseguem reunir numa só. Como se tirassem partido das aptidões da engenharia, que mais do que outras ciências se aproximou do limiar quase divino que é domar a natureza. Ou são engenheiros ou são governantes. Condições que se excluem reciprocamente. Parece, até, que assim que engenheiros se inebriam pelos holofotes do poder desaprendem os atributos de domadores da natureza que lhes ensinaram. E passam a ser campeões a meter água.

Deviam andar atrelados a mini-hídricas ambulantes que retivessem toda a água que metem, a cada dia que passa. Os ecologistas desdobrar-se-iam em aplausos. E seria maneira destes profissionais do erro verem, no espelho de água acumulado atrás deles, como a humildade anda arredia. E como todos agradeceríamos que se dedicassem a outras artes, mais anónimas.

22.1.08

Brincar às guerrinhas nos ares


Enquanto as gentes em terra ficam assustadas com o súbito ribombar que estilhaça vidros, abre fendas nas paredes, rompe com a tranquilidade campestre tão típica das terras de Penamacor. É que havia por ali manobras da força aérea, “exercícios de simulação de combate”, usando a linguagem de caserna. Não terá sido preciso alertar a protecção civil, muito menos pôr de aviso as populações. A tropa continua a usufruir de regalias incomparáveis. Um Estado dentro do Estado, ainda.

Imagino como deve ser doloroso para estes generais viver em tempos que deixaram de ser visitados tão amiúde pelas guerras. Entretêm-se, pois, a congeminar fantasiosos cenários de guerra, substantivando os conflitos em que gostariam de participar. Põem os homens no terreno, atribuem-se-lhes “missões”, inventa-se um inimigo fictício e acabam todos a brincar às guerrinhas. Para conferir maior solenidade à coisa, chama-se o ministro da tutela, veste-se-lhe um uniforme para abraçar o espírito de caserna e convocam-se as câmaras de televisão para mostrar à população que ela pode dormir em descanso: não haverá invasão que não sofra a brava resistência das nossas tropas. Mas que invasão estão a imaginar?! Justificam-se: há que manter “operacionais” os “efectivos”, não vá ser necessário pô-los em acção. Há quem viva a sonhar mesmo acordado.

Causa-me espécie que haja criaturas que fazem profissão de fé no aspecto lúdico das guerras em simulacro. Como pode alguém, no seu perfeito juízo, brincar às guerrinhas? De cada vez que generais ensaiam exercícios bélicos, é a humanidade a gritar bem alto o seu ensandecimento. Um cortejo grotesco em que se faz de conta que um inimigo imaginário ameaça a sacrossanta soberania pátria. O sangue teria que escorrer para defender a soberania que se deseja intangível. Não haverá bem maior. O que interessa se a tropa assim entretida se deita no leito do mais puro anacronismo? Por mim, que sempre me enterneci com exércitos e a férrea disciplina militar (que ainda dá direito à existência de tribunais militares, como se houvesse uma justiça à parte da justiça civil), um largo sorriso irreprimível solta-se de cada vez que o exército desfila no seu anacronismo inevitável.

E, apesar da anacrónica eloquência dos senhores generais, a tropa insiste em ser um mundo cheio de particularidades e de privilégios. Dispensa-se de deveres que assistem aos demais. Uma casta que se esconde na prestação de funções na “defesa nacional” para chamar a si um estatuto de excepção. Naquele dia os F16 da força aérea iam sobrevoar o concelho de Penamacor. Não seria encargo excessivo avisar o presidente da câmara. Que, já que a tropa não se dá ao trabalho de comunicar com o povo, faria chegar avisos de que os aviões supersónicos andariam em exercícios espectaculares sobre as cabeças dos habitantes beirãos. Nada disso. Tudo em segredo. Compreende-se: as manobras militares exigem secretismo, não vá o inimigo imaginário ser avisado por um qualquer agente infiltrado entre a população local e frustrar o objectivo do simulacro.

Se a barreira do som for quase atingida, com o estilhaço que se produz, assustando as populações que não tinham sido avisadas das manobras nos céus, paciência. É pelo interesse da nação. Os sustos são efémeros. Não hão-de sequer velhinhos sucumbir de síncope cardíaca. Os animais, assustados? Não contam para o rosário, os animais. Para incómodo dos artífices das manobras aéreas, refugiados nas ameias do quartel, a comunicação social deu voz ao protesto das pessoas que ficaram assustadas com o estrondo. Soube-se depois, pelo esclarecimento de um contrariado porta-voz da força aérea, foi o produto da inépcia de um piloto que acelerou demais o F16. Foi um evento imprevisto, um incidente que não pode manchar a inestimável, prestimosa utilidade da força aérea.

Juntamente com o muito dinheiro que estas manobras custam, prejuízos em habitações que abriram fendas e viram vidros estilhaçados. Não bastava o sorvedouro estúpido de dinheiro que a simples existência da força aérea supõe – sem mencionar o dinheiro deitado fora de cada vez que um F16 se põe a voar brincando às guerrinhas –, há ainda prejuízos das gentes em terra. O incomodado porta-voz, esboçando frete no esclarecimento que lhe estava a custar tanto a prestar, prometeu visita de uma "comissão de inquérito" ao local para apurar os danos. Falta saber quando lá chegará a comitiva.

21.1.08

Culto de personalidade


Impressionam-me pessoas que se deixam passear na tela do culto de personalidade. Há neles um ego enorme. Ou houve, em tempos, tempos difíceis, sinuosas curvas em que foram depreciados. Talvez meninos escarnecidos por todos na escola, os bombos da festa. Agora, que souberam subir na escala do reconhecimento social, têm a sua vingança privada com o mundo inteiro – como se o mundo inteiro fosse o laboratório gigantesco que reproduz o microcosmos que tanta mortificação interior causou pela troça infindável.

Mesmo assim, impressiona-me que haja quem permita uma corte que se desfaz em tratos de polé, a corte do elogio fácil. Uma imagem quase deificada. Dir-se-ia que dariam chancela a biografias com estaleca de hagiografia. Gostam de ver a passadeira vermelha estendida para nela caminharem, exalando aura triunfante. Os outros devem-se curvar perante a sua magnificência. À medida que o tempo corre e as auto-façanhas o colocam num púlpito ainda mais inacessível aos outros, mais se arrebanham indefectíveis doutrinados para trazer mais rebanho para dentro da cerca.

Não há pingo de modéstia na personagem que permite o seu próprio culto de personalidade. Os pajens de serviço, os que lhe fazem a imagem e aqueles que dele dependem, constroem o culto de personalidade que a domesticada comunicação social faz chegar à gente anónima. A gente anónima, consumidores por excelência do culto de personalidade do timoneiro da nação. E assim aumentam as probabilidades de prolongar a sinecura com a esmagadora maioria que lhe caiu nos braços num tremendo golpe de sorte. Na carência de substância – visível à vista desarmada – insiste na praxis da imagem cirurgicamente arquitectada. A cada mês que passa, sobe o tom dos panegíricos vindos da corte em redor. Os que não vão na ladainha laudatória, ou são ignaros ou é a teimosia que os cega no discernimento.

O pior é que não há um dia, um dia sequer, em que o ego do timoneiro não seja massajado na televisão. Até ao fim-de-semana. O homem não tem descanso. Não tem sábados, domingos e feriados. Não vá a sua imagem apologética adormecer no espírito das massas, não vão elas esquecer-se, por um dia que seja, que há primeiro-ministro redentor. Este fim-de-semana foi outro sem igual. Num dia, confessa, num acesso de intimismo que o coloca quase ao mesmo nível humano dos governados, que o homólogo espanhol é o seu “maior amigo”. Haja muitos dentes para mentir – terão pensado os seus verdadeiros amigos, aqueles que nutrem por ele uma prolongada amizade.

Mais uma cimeira – ibérica –, mais um tijolo para o imenso culto de personalidade. Em muito feito da convivência com os “líderes mundiais”, cuja grandeza alimenta a sua própria grandeza, por efeito de contágio. Espantosamente, o timoneiro terá confundido a natureza da cimeira. Pensava-se que era a cimeira ibérica, reunindo delegações dos governos dos dois países da península. Afinal terá sido uma cimeira da internacional socialista, delegação ibérica. O homem esqueceu que estava ali na função de primeiro-ministro e descaiu-se no apoio ao seu homólogo, da mesma cor ideológica, que já está em campanha eleitoral. São comoventes estas fidelidades partidárias, só possíveis entre a ternurenta internacional socialista. Como comovente foi ver a imodéstia do timoneiro da nação ao oferecer os préstimos ao homólogo, caso fosse preciso para o levar até a nova vitória nas urnas. Há gente que faz de si uma imagem muito maior do que a revelada pelo espelho.

Domingo, Viana do Castelo. Ia inaugurar uma biblioteca municipal. Madrugou para participar na mini-maratona local. Veio mesmo a talho de foice. Afinal o patarata do líder do maior partido da oposição estava enganado no diagnóstico recente: falsas as acusações de que o senhor primeiro-ministro só chama as câmaras de televisão quando faz jogging além fronteiras. As câmaras também são convocadas para jogging em terras pátrias. Para pateta, pateta e meio.

A reportagem da RTP foi do mais encomiástico que vi nos últimos tempos. O homem chegou cedo. O homem envergava o número um – não é significativo, a provar que estou certo quando lhe atribuo o cognome de timoneiro? Aquela prova era apenas um petisco para o homem, que disse, gabarolas, que não foi esforço por aí além, ele que está habituado a correr “uma hora, uma hora e dez, cerca de dez quilómetros”. Ao passo de corrida juntavam-se intermináveis acenos à populaça espalhada pelas ruas para o aplaudir, com entusiasmo.

Cultos de personalidade provocam-me asco. Este não é excepção. O que me incomoda no homem é o tanto asco que me causa. Ele insinua-se, entranha-se, cerca por todo o lado, com o beneplácito da domesticada comunicação social, veículo do culto de personalidade. Para minha sanidade mental, queria prometer que não voltaria a escrever uma linha sobre nefanda personagem. Temo que não consiga cumprir a promessa. E não é que até nisto sou contagiado pelo timoneiro?

18.1.08

Empresários que mendigam à porta do Estado – ou da adiada emancipação do mercado numa terra empenhada em paternalismos pueris


Advertência: isto não é um texto de efervescência sindicalista contra a classe empresarial. Não me entreguei, qual noivo cegado pela ingenuidade, num enlace com os excitados detractores do “grande capital” em particular e do capitalismo em geral.

Maioridade equaciona responsabilidade. Capacidade para assumir as consequências dos actos. Quando um jovem chega à idade adulta e reclama para si emancipação paternal não pode depois esperar que, nos momentos de aperto, os progenitores apareçam quais figuras sebastiânicas a conferir a tutela aguardada. Os meninos que dançam assim, a descompasso com as suas responsabilidades, não são credores de confiança. É como se tivessem apenas um olho bom e, quando este entra na penumbra, se recusem a olhar as coisas através do olho mau. Ficam à espera que alguém o faça em sua vez. São crescidinhos dentro de uma mente que ainda adolesce.

É a falta de hábito de agirem por si, a falta de hábito de suportarem todas as responsabilidades que a idade maior – e a lei – chamam a si. Se preciso for, é vê-los fautores de uma guerra de gerações inútil, fátua, apenas um exercício de afirmação pessoal diante dos mais velhos de quem exigem carta de alforria. Hostilizam os mais velhos. Não admitem ingerências. Qualquer palpite ou sugestão dos mais velhos é furiosamente atacado: ai daqueles que pisarem a sua coutada. E confundem muitas coisas: sugestões com intromissões; preocupação com zelo intolerável; as interrogações feitas com o leme da sua vida tomado por quem as faz, logo as interrogações proibidas. Ao primeiro contacto com a dureza da realidade, ao primeiro contratempo, recolhem-se chorosos debaixo da asa protectora de quem se querem libertar. Imersos no mais profundo contra-senso. A credibilidade maculada.

Vale para arroubados jovens sabedores da independência acabada de conquistar. Como vale para uma classe empresarial sem nível, campeã dos queixumes, sempre de dedo erguido contra as intromissões do poder político, contra os obstáculos semeados pela burocracia do Estado. Em momentos áureos – quando adivinham as vacas gordas e as ajudas públicas são desprezáveis – denunciam as desajudas do Estado. Que está omnipresente, figura dominante e tutelar da economia. Um entrave aos negócios. Reclamam: se há atraso, as culpas moram alhures, nos trabalhadores preguiçosos e nos sindicalistas malandros, nos ministros que só assinam papeis a preceito com prebendas pelo meio, da inconcebível burocracia que bloqueia em vez de facilitar.

A prova dos nove da mediocridade chega quando as nuvens negras tingem o firmamento. Quando os lucros encolhem, e encolhem tanto que dão lugar aos prejuízos. Convivem mal com a concorrência que vem de fora, esgravatando a retórica dos “interesses nacionais” ao mesmo tempo que estendem a mão em direcção da piedade dos governantes. Conseguem iludir as massas: o “interesse nacional” resume-se ao seu próprio interesse. Portam-se como meninos birrentos que esboçam o beicinho lamechas que aplana terreno para a complacência de quem governa. Nessa altura, esquecem discursos exaltados que reclamam a separação das águas. Já não exigem que o mercado navegue num mar diferente do navegado pelo Estado.

Quando o nó aperta tanto que a asfixia ameaça, já não há mercado que queira viver emancipado dos poderes públicos. Sobra um concubinato estranho entre dois parceiros que se olham como rivais, mas que gostam de estender a mão um ao outro. Um sucedâneo de amor-ódio. Quem exerce a tutela, adora sentir o poder que se reforça quando os vínculos de dependência sobem pela mendicidade penosamente mostrada pelos empresários. Estes, de cada vez que estendem a mão em busca de piedosa esmola, humilham-se na negação dos gloriosos discursos de emancipação quando as vacas eram gordas. Entregam o seu destino na generosidade dos governantes.

Simpatia nula pelos sindicatos. E, todavia, fazem sentido quando em redor gravitam empresários que lutam, com denodo, para se enterrarem no lodaçal da ambiguidade. Dirão que são militantes do pragmatismo. Que os grandes negócios se fazem à mesa da política, com os políticos que efemeramente ocupam sinecuras. Convém agradar aos governantes, sob pena dos negócios irem parar às mãos de rivais. Há quem lhe chame concubinato (se forem mais simpáticos, solta-se o rótulo do pragmatismo); há quem a este comportamento chame uma palavra impronunciável para ouvidos sensíveis ao calão.

17.1.08

Homenagem a Armando Vara


Não me conheces de lado nenhum, Armando Vara. Ainda assim, permite a ousadia de te tratar por tu. Vai assim em sinal de singela homenagem por ti. Pela tua ascensão meteórica. Pela sagacidade, quando te retiraste do meio hediondo da política partidária e foste encontrar refúgio prazenteiro e tão bem remunerado em conselhos de administração de bancos. Tornaste-te banqueiro! És um exemplo para uma das bandeiras da propaganda do teu amigo que, um pouco à tua imagem, ainda hoje estará sem saber ao certo como chegou a primeiro-ministro: as “novas oportunidades” chegam a todos, sem olhar a classe ou habilitações, nem sequer a privilégios de casta (que não seja, obviamente, a certeira filiação partidária – mas essa é uma conversa que convém varrer para debaixo do tapete).

Presto a minha homenagem, Armando Vara. Tu és um saco de porrada de comentadores a eito. Eles põem-se em fila, esfregando as mãos de contentamento para de ti zurzirem. Uns invejosos, é o que são. Eles gostavam de ter acesso às benesses que legitimamente te pertencem, depois de uma carreira que soubeste construir com tanta diligência. Ouves e lês o rol infindável de críticas e permaneces silencioso. Gabo-te a coragem pelo silêncio asceta. Deve ser difícil ler e ouvir a maré de críticas, amiúde enxertadas de ironia depreciativa, e continuar impassível. És de uma coragem olímpica, um exemplo de fair play como não há nesta terrinha de medíocres. De tanta pancadaria que levas e nem um ai esboças.

Os que fazem da crítica à tua pessoa desporto favorito destilam uma pérfida inveja. Eles gostariam de ter tido a tua ascensão meteórica. Muitos enfatizam o que acham ser a sua superior razão: puxam dos galões das habilitações académicas superiores às tuas e choram-se pelos cantos, um queixume infindável, que só os rapazes com cartão de militante do partido certo é que vingam, sem lugar ao mérito. Estão enganados. Se subiste tão alto, vindo do quase rés-do-chão do banco onde sempre trabalhaste, é porque algum mérito hás-de ter. O que os teus críticos não conseguem perceber é que o mundo de hoje está feito para os espertos. Aos inteligentes, resta o conforto interior – e anódino – de uma inteligência sem serventia.

É isso que eles não percebem: que hoje vingam os que têm espírito pragmático. Tu és campeão do pragmatismo contemporâneo. O pragmatismo que sagra a esperteza, pois a inteligência acantona-se em elucubrações estéreis que enchem páginas de ensaios sem aproveitamento digno. Tu és um exemplo da acção com proveitos inestimáveis. Um paradigma que a universidade mais importante é a escola da vida, a espessura da experiência adquirida. Com todo o valor que se exige reconhecer aos que subiram a pulso, desde o nada até ao púlpito de onde são tão invejados. E o despeito é tanto que até desconfiam da tua licenciatura, sem perceberem que há mesmo coincidências notáveis como essa da data da carta de licenciatura ser a antevéspera da nomeação para o conselho de administração do banco público.

Chamam-te “fura-bolos”; dizem que só conseguiste chegar tão alto por causa da teia de conhecimentos privilegiados que foste angariando ao longo da carreira partidária; que não tens valor intelectual para ocupar lugar entre a nata dos banqueiros; agora criticam-te porque mudaste do banco do Estado para o banco dos socialistas. É tudo infundado. És um incompreendido. Em todas as críticas, o acessório precede o essencial. Esquecem que foram os accionistas do banco outrora dominado pela Opus Dei e agora socialista que te escolheram por esmagadora maioria. Esse é o opróbrio maior que recai sobre os teus críticos: o estigma antidemocrático. Só uma fantasiosa teoria da conspiração há-de concluir que os accionistas privados são dominados pela máquina socialista e do governo. Não se convence esta gente que o mundo não é um alfobre de conspirações?

Tinha que deixar esta carta aberta em jeito de homenagem à tua pessoa. Quem não gostaria de receber o teu salário (vais ganhar os três milhões de euros anuais que os teus antecessores auferiram em 2006?)? Quem não gostaria de ter sido encostado ao canto dourado da administração de bancos, depois do mediatismo tão desagradável a que se expõe um secretário de Estado envolvido em trafulhices várias? O que os teus críticos não percebem (incapacidade de discernimento a que és alheio) é que foste premiado com uma sinecura de tanto poder discreto e tão generosos proventos depois da passagem desastrosa pelo governo do amigo Guterres. As lealdades têm um preço a pagar no futuro – eis a explicação.

O teu exemplar percurso fala por si mesmo. Não obstante, hás-de ficar nos anais da historiografia política desta república como um caso de estudo. O exemplo que leva muita gente, carreiristas de primeira água, ao oportunismo da filiação partidária. E a sonhar que algum dia hão-de ser os novos, futuros e ladinos Armandos Varas. Eu, humilde e desacertado com a clepsidra que compassa o andamento, sei que quero ser o contrário de tudo o que representas. É a melhor homenagem que te posso prestar.

16.1.08

O homem que foi à pesca de cobre


Um estrondo, medonho. Logo a seguir ao estrépito a luz foi abaixo. Espreitei pela janela a movimentação das pessoas, assustadas pelo troar que parecia a deflagração de uma bomba. Saí à rua, em direcção do ajuntamento que se formara à porta da estação da EDP, mesmo ali ao lado. As pessoas perguntavam-se o que teria acontecido. Começavam a surgir notícias via telemóvel: a alguma distância dali também tinha falhado a energia. Em redor era vasta a área que tinha ficado sem luz – saber-se-ia mais tarde.

De repente surge um homem, ensanguentado e célere. Tinha pulado a rede que protege a estação da EDP de intrusos. As pessoas estavam surpresas: o homem saía das instalações da EDP, em passo acelerado, tão acelerado quanto permitia a perna que mancava. O seu rosto misturava fuligem com vestígios de sangue que escorriam da cabeça. Percebendo que toda a gente olhava em sua direcção, o homem acelerou o passo. Alguém lhe perguntava se estava bem. Esboçou uma resposta imperceptível, um grunhido qualquer à medida que atravessava o ajuntamento. Só tivemos tempo para ver o homem a cambalear nos seus ferimentos, carregando um escadote de metal todo fragmentado e uma caixa de ferramentas.

Alguém, com mais conhecimentos, juntou os ingredientes. Aquele homem tinha causado o estrondo assustador. Ele tinha entrado à socapa na estação da EDP para roubar cobre. Operação arriscada – comentava o entendido. Teve que se dependurar num escadote e furtar o cobre alojado nas torres que transformam a alta tensão em electricidade que os lares podem consumir. Um gesto em falso, ou a inépcia do homem, e o fracasso do roubo.

O homem teve azar. E talvez não, alvitrava o popular entendido no assunto: quem ali entrou preparado para roubar cobre correu perigo de vida. A operação podia saldar-se com a electrocussão do homem. Sair a mancar, com alguns arranhões e uns traços de fuligem que custariam a lavar, o escadote de metal despedaçado e as mãos a abanar, eis a sorte do homem por entre a fracassada operação de furto.

A polícia, com a diligência habitual, apareceu dez minutos depois de termos ficado às escuras. Demorou dez minutos a percorrer cerca de trezentos metros – a distância entre o local e a esquadra mais próxima. Os agentes, nada apressados, confirmaram que já não era a primeira vez que a estação da EDP era assaltada. Das outras vezes, o cobre não tinha sido furtado à luz do dia. E das outras vezes, os roubos com sucesso, um acto profissional. Em conversa com os populares, já indignados – e não com a anterior comiseração pelo desgraçado imerso em fuligem e sangue –, os polícias disseram que por todo o país são frequentes os assaltos a estações da EDP. O cobre tem algum valor e é fácil de roubar, para quem o souber fazer. Não é arte para principiantes. Aquele homem de meia-idade e, percebia-se pelos andrajos, de origem humilde, estaria ainda no tirocínio da arte de furtar cobre nas estações da EDP.

Naquele dia aprendi que há quem ponha a vida em perigo para roubar uns fios de cobre e vendê-los ao desbarato. Só não percebi quem faz as vezes da procura neste mercado subterrâneo. Ninguém o perguntou ao polícia que estava mais interessado em responder às perguntas das pessoas do que em fazer delas testemunhas da “ocorrência”. É sintomático o cenário que desfilou diante dos meus olhos. Como há gente que tudo arrisca na ânsia de arrecadar um pedaço de cobre que lhe valerá uns míseros dinheiros. A lógica do crime anda de braço dado com o risco, em doses variáveis. E com uma ética distorcida (ou uma falta de ética, apenas). Não consigo reprimir a perplexidade quando são descobertas pessoas que arriscam tanto por tão pouco. Será o desespero que as leva pelos meandros da criminalidade, a urgência em arrecadar fontes de subsistência através de métodos duvidosos, ilegais. Ou apenas a preguiça dos que lêem na criminalidade a fonte de rendimentos fáceis, e todavia arriscados.

Haverá, em tudo isto, o miserabilismo da gente que nem percebe como uns parcos dinheiros do pequeno furto podem trazer graves danos corporais, ou até a morte. Pus-me a pensar: aquele homem teve discernimento para medir o risco que corria por tão pouco? Chegaria, sequer, a ter discernimento para alcançar aquele discernimento?

15.1.08

“O sonho de Cassandra” (de Woody Allen)


Os filmes de Woody Allen mudaram. Já não são exercícios de humor sublime, sarcástico, desarmante. Woody Allen remeteu-se ao papel de realizador, desaparecendo do elenco de actores dos seus filmes. E parece rendido à velha Albion. Os últimos filmes – “O sonho de Cassandra”, “Scoop” e “Match Point” – são filmados em Inglaterra, recorrendo a imagens que percorrem a Inglaterra típica: paisagens verdejantes, palácios sumptuosos, ou Londres cosmopolita. Uma dramaturgia que se afasta do sentido de humor que distinguiu Woody Allen: as relações humanas na sua complexa contemporaneidade, aqui e ali deixando vir à superfície a banalidade burguesa. E depois há uma insólita moralidade a preencher os derradeiros filmes.

Em “O sonho de Cassandra” Woody Allen retoma essa surpreendente mensagem moral. Porventura até uma antítese da ética que obedeça aos cânones da legalidade e da convivência pacífica em sociedade. O filme narra as desventuras de dois irmãos. Um deles teve, pela vida fora, aventuras financeiramente mal sucedidas. O outro, viciado em jogo, álcool e codeína, alternava a sorte ao jogo com rombos que o deixavam com os agiotas à perna. A salvação dos irmãos, em horas de aperto, sempre fora um tio milionário que era dono de clínicas de cirurgia plástica na China e nos Estados Unidos.

Numa visita do tio bem-sucedido, os irmãos preparam-se para mendigar outra generosa ajuda. Um está convencido a enterrar dinheiro em empreendimentos hoteleiros na Califórnia, caindo no logro de um investidor fantasma que se há-de evaporar assim que vir a cor do dinheiro. O outro está a braços com mais uma dívida de jogo, desta vez uma dívida assustadora. O tio ouve-os pacientemente. Desta vez a ajuda tem uma contrapartida. É o tio que está aflito. Confessa que a fortuna que amealhou nem sempre respeitou a lei. E teme por uma auditoria que se avizinha. Admite que a descoberta de podres nos seus negócios o levará por muitos anos à cadeia.

É então que entra a ajuda dos irmãos. Há um membro do conselho de administração das empresas do tio que está disposto a contar tudo o que sabe. O tio sente-se refém deste homem. Só vê uma possibilidade de resolver o problema: liquidar o homem que lhe faz frente. Para não ficar refém de outros – por isso não equaciona a contratação de assassinos profissionais –, convoca a lealdade familiar. Escolheu os sobrinhos para a tarefa. Chegara a hora dos sobrinhos retribuírem todos os favores que o tio lhes fizera para trás. A factura é a encomenda apresentada pelo tio, a morte do homem que o ameaçava levar à prisão.

Os irmãos ficam incrédulos. Primeiro, com a desonestidade que o tio confessa, eles que sempre viram no tio um modelo de virtudes (quem sabe, apenas porque era o sustento nas horas de aperto). Depois, o tio não hesitara em pedir-lhes algo que mexia com as suas convicções. A primeira reacção é a de impossibilidade de tirar a vida a outra pessoa. Depois são tomados pela vertigem das vantagens materiais. O tio prometera uma compensação generosa, ainda mais generosa do que em vezes anteriores. Nervosos e amadores, esboçam o plano do assassinato. No fim de várias hesitações patéticas, conseguem matar o homem que ensombrava o tio.

O dia seguinte é de fantasmas. Um deles não consegue dormir. O outro acorda sobressaltado por um pesadelo. Com a passagem dos dias, o primeiro vai apaziguando a consciência, excitado com as possibilidades de sucesso que se perfilam. O outro mergulha numa depressão profunda, a cada dia mais arrependido com o acto cometido. Mergulha na bebida e nos comprimidos e regressa ao deus que outrora renegara. Um certo dia, confessa ao irmão que se vai entregar à polícia. O irmão fica assustado, temendo que a polícia chegue até à sua co-autoria do crime. Decide contar ao tio, que fica contagiado pelo pânico. Não demora a elaborar um plano de contingência: um irmão tem que silenciar o outro, silenciar para sempre. O irmão, depois da incredulidade inicial, resigna-se. Planeia o acto, no barco que ambos compraram meses antes, baptizado “sonho de Cassandra”. No momento em que preparava um cocktail de comprimidos e cerveja para liquidar o irmão tomado pelos remorsos, é incapaz de levar até ao fim o envenenamento. Furioso, dispara acusações contra o irmão remoído pelo remorso. Lutam. Aquele que ia matar acaba por ser morto, numa queda que lhe fractura o crânio. O outro, desesperado, afoga-se.

A rir-se, fica o tio sem escrúpulos. Até se adivinha que apenas quis afastar do caminho um homem que lhe fazia sombra nas empresas, que toda a história contada era o pretexto para o afastar sem o demitir. Usou os ingénuos sobrinhos, que fizeram o serviço e acabaram, com a fratricida luta, por apagar o rasto da responsabilidade do tio. A surpreendente mensagem é a antítese da moralidade. O crime, compensa. Vingou a maquiavélica personagem que teve arte de congeminar um plano perfeito. Endossou a responsabilidade para os sobrinhos inebriados pela soberba. E depois jogou com os seus remorsos para os limpar do mapa. Varrendo todos os vestígios da sua responsabilidade no homicídio, ele que havia sido o mandante.

Razão tinha um dos irmãos, quando discutiam num momento de dúvida existencial do outro: a maior parte dos crimes fica por resolver.

14.1.08

Da erudição esmagadora


Mentes brilhantes. De uma refulgência ímpar. Passeiam dotes intelectuais com indisfarçável vaidade. De umas vezes, ostentatória. De outras vezes, sublime – o que é mais irritante, ainda. Esmagam-nos com a sua erudição que vai quase até aos limites do infinito. Elevam-se aos píncaros da maioridade intelectual, um lugar reservado aos eleitos com dotes dir-se-ia sobre-humanos (quando a inteligência é contabilizada). Devem adorar concursos de coeficiente intelectual.

E, todavia, esta erudição dá uns passos em falso. Ela tropeça nos seus passos. Os excitados espécimes da inteligência esmagadora não se cansam de exercitar uma inteligência pérfida. Esfregam-na na face dos outros, reduzidos à sua insignificante condição de vassalos das elites que levitam na áurea dos eruditos. Fazem gala da sua inigualável inteligência em frases assassinas, só decifradas depois da enésima leitura. E resguardam-se na ambiguidade das palavras cifradas que escrevem ou dizem. Em sua defesa, argumentam que não há segundo sentido nas palavras proferidas. Só que as palavras codificadas encerram a sua própria ambiguidade, os múltiplos sentidos com que podem ser lidas. A erudição servida no prato dourado, de braço dado com a ausente frontalidade.

Há nesta esmerada erudição um totalitarismo recalcado. Os sacerdotes da inteligência esmagadora empurram os outros, os pobres de espírito, contra a parede da sua reduzida expressão intelectual. É uma batalha de intelectos. Os que são desprovidos de especiais atributos de massa cinzenta sofrem derrotas humilhantes, vergados perante a inteligência que esmaga, como se esmaga um incómodo insecto. É: uma erudição insecticida.

A retórica ambígua, com muito palavreado cheio de significados múltiplos – ou não fosse esta ambiguidade traço da mais elevada inteligência – mistura-se com um refinado sentido de humor. Que, contudo, é humor de sentido único, em círculo fechado, tem remetente e destinatário na mesma pessoa. Percebe-se o esboço de humor refinado, que não passa de esboço disso mesmo. Em abono da verdade, deve ser refinado este acto de humor: só as limitadas capacidades dos que vegetam na rasteira intelectualidade impedem a percepção do exercício humorístico. Para os pobres de espírito, aquele humor refinado pertence ao domínio do ininteligível: olham para os arautos da esmagadora erudição quando soltam as pérolas humorísticas e contemplam-nos nas golfadas de riso abastado que soltam no instante imediato ao chiste disparado com intempestiva arte.

Há uma forma mordaz de os tratar: “adiantados mentais”. Andam à frente dos outros, uma verdadeira vanguarda que, sabendo-se possuída dessa condição, esfrega-a no rosto dos incautos que sucumbem vergados ao peso da sua enorme sabedoria. Quando ostentam as suas capacidades com as pinças sublimes, são mestres da dissimulação. Têm garbo em ser tão sublimes com a sua incomparável erudição. É quando mais esmagam os outros, quando mais se distingue no firmamento a sua elevada inteligência. Os tentáculos da ambiguidade que cercam as vítimas da sua inteligência, da inteligência aterradora. É quando se adiciona um ingrediente fatal: o cinismo, como se fosse refúgio onde se espelham as mentes brilhantes.

É como adiantados mentais que perseguem as vítimas que aparecem pelo caminho. Orgulham-se da condição de campeões da intelectualidade, através da qual vingam no campeonato da força da razão – que o seu estatuto intelectual permite e cauciona como incontestável porta onde se abriga a verdade e a razão que professam, elas tão incontestáveis com a sua superioridade intelectual.

A vaidade sublime é notória. Lá do alto do pedestal onde se colocam, olhando com soberba para os pobres de espírito, desfilam a envaidecida erudição. Fazem lembrar a história infantil em que uma bruxa inquiria o seu espelho, observando-se nele, impante. Estes peregrinos do escol da intelectualidade também se olham a um espelho fictício de cada vez que exercitam a esmagadora inteligência contra os outros. E perguntam, febris nas suas convicções: “espelho meu, espelho meu: há alguém mais inteligente que eu?

11.1.08

Ministro é que a profissão mais dura


Não é o mineiro, laborando horas a frio nas profundezas da terra, inalando poeiras que lhe hão-de roubar a vida antes do tempo. Nem o lixeiro, que recolhe os detritos que fazemos, suportando o odor fétido da imundice numa função a destempo. Ou o operário da siderurgia, cercado pelo ruído ensurdecedor das máquinas, suado como se fosse corpo deitado numa sauna infernal. Nem será a meretriz, de rua ou de bordel de luxo. A profissão mais ingrata é ser ministro. Se for teimoso, arrogante, com a certeza da sua providencial sapiência que o converte em fautor de políticas polémicas. Políticas que viram a turba contra si.

Fico angustiado ao ser observador de manifestações de rua contra o senhor ministro disto ou daquilo. É de uma injustiça atroz. Os descontentes abusam da democracia e da bondade dos governantes. Os governantes, que tanto se sacrificam para servir a pátria; que entregam as suas superiores capacidades intelectuais à causa nobre do serviço público – e depois vem a fraca recompensa de serem desafiados em público, com uma multidão folclórica em procissão pelas ruas, empunhando cartazes que beliscam o bom nome do senhor ministro. Da ingratidão em estado puro. Tamanha manifestação de ingratidão daria lugar a intervenção policial para dispersar os analfabetos incapazes de perceber o alcance das políticas escolhidas a dedo pelo iluminado ministro.

Quando alguém chega a ministro diz adeus à privacidade. Se o ministro vai ao cinema, sabe-se qual foi o filme escolhido. Se o ministro vai a um restaurante, as línguas viperinas apressam-se a circular os apetites gastronómicos de sua excelência. Os livros que compra, a música que ouve, os locais de férias – e com quem as passa –, o sítio onde compra a fatiota a preceito: andam de boca em boca. O aziago ministro tem a vida devassada pelos mirones que observam, registam com atenção e passam a palavra com a impressão que estão a contribuir para a andança da nação (quando só fazem dela uma pálida alegoria). Se alguém mantém uma vida paralela, com amantes e tudo, ou mete a vida nos eixos ou não pode almejar ser ministro. É que tudo, até pormenores, se descobrirá.

Vejo a horda a desafiar o frio da noite em mais uma manifestação contra a política obstinada do ministro. Não querem que feche o hospital da terra. Empunham cruzes, trazendo um ar clerical para a manifestação que, na minha escassa inteligência, não chego a discernir razão. Os cartazes habituais reclamam o contrário da decisão do ministro. Alguns exalam cinismo. Chamam nomes feios, enxovalhando o ministro em público e diante das câmaras de televisão, sempre atentas a captar o ruído de fundo.

A certa altura, um dinamizador do protesto toma conta do microfone e profere oratória. Longe de elogiar o ministro, como devia ser obrigação de qualquer cidadão de perfeito juízo – porque só esses é que ajuízam da bondade das medidas. Desenterra o machado de guerra contra o ministro. Deprecia a sua inteligência. E questiona a sua honradez. O ministro teve direito a uma alcunha pouco confortável: Gepetto. O orador fez uma pausa para a turba reagir ao diagnóstico. Silêncio a dominar, umas pateadas e escassas gargalhadas. O orador indagou a audiência: “vocês sabem que é o Gepetto?” E como a ignorância das gentes não soltava resposta convincente, o orador teve que oferecer resposta à sua interrogação: “é o pai do Pinóquio!” E soltou-se abundante gargalhada.

Tudo isto é lamentável. As gentes deviam aprender a respeitar quem as governa. Devia ser ensinado nos bancos da escola por mestres diligentes: que nunca se questionam os ministros e que em ocasião alguma devem ser ultrajados. E ainda é mais lamentável, porque a comparação do líder da manifestação deve ter confundido as massas: se o Gepetto é o pai do Pinóquio, haveria ali alguma alusão à protuberância nasal do primeiro-ministro? É que, nesse caso, o vândalo terminava por sugerir que o ministro da saúde é o inspirador do primeiro-ministro, numa intolerável inversão dos papéis. Não se pode duvidar da autoridade do timoneiro. Sugerir que um dos seus ministros o manobra devia ser punido com cadeia inapelável.

Não aprendemos a ser obedientes com os que albergam o poder. Será por isso que os senhorios do poder são medíocres de primeira apanha?

10.1.08

Emma Pollock, "Adrenaline"

A moda andrógina


Tenho que admitir: a espaços, necessidade de fazer a digestão do deslumbrante universo da moda. Dissecar as passerelles, as roupas tão imaginativas que nunca as vemos trajadas em plena rua, os desfiles de autómatos impassíveis, rostos fechados, passos maquinais, para trás e para a frente, repetitivos. E os rumores: as drogas, a parca alimentação que reduz os corpos à sua esquálida expressão. Tenho que admitir: o mundo da moda tem o dom de em mim causar irritação solene. Não sei se será por o associar à pura inanidade, o grito mais alto da futilidade.

A moda tem muitos modismos. Vão variando consoante a estação e os estilistas que atingem os píncaros. Entre o muito que me causa espécie na moda, a mania da imagem dos manequins masculinos que mais se assemelham a meninas. É a androginia na moda. Para além dos rostos inexpressivos, como se tivessem desaprendido de esboçar um sorriso, os rapazes que passeiam nas passerelles e se expõem diante das máquinas fotográficas têm rostos e corpos efeminados. Até uma certa moda que recorria a corpos masculinos mais musculados, muito trabalho de ginásio que adelgaçava os abdominais, entrou em desuso. Agora são corpos muito magros, desprovidos das pilosidades que distinguem um corpo masculino de um corpo feminino, corpos macilentos.

Para estes rapazinhos, até a barba parece ter sido definitivamente depilada – como, consta, fazem no torso e nas pernas, que assim deixam de ter trabalho para periodicamente rapar as excrescências capilares que teimam em irromper da epiderme. Para compor o ramalhete, consta que estes rapazes tomam hormonas (femininas?) para se acabar o incómodo dos traços masculinos que são obstáculo à imagem dos manequins que vingou no mundo da moda.

Ponto de ordem: é verdade que estes rapazes têm direito a parecer-se com raparigas. Longe de mim propor que uma brigada de costumes, guardiã do universo politicamente correcto, viesse tomar conta das leis e, implicando com os modelos andróginos, impusesse por decreto que a confusão de sexos deixava de ser admissível. Só que do mesmo modo que a moda triunfante tem direito a reservar para si as suas preferências estéticas, também estou no meu direito de não me identificar com elas. E de me interrogar por que meandros esquisitos anda esta moda que está na moda, que labirínticos caminhos palmilha, que mensagens subliminares traz nas entrelinhas.

Já em tempos admiti a admiração que tenho pelos transexuais. Admiração pela coragem em assumir que nasceram dentro de um corpo estranho. Deve ser angustiante o dilema que os consome. E a coragem que convocam quando decidem assumir o outro sexo com que não nasceram. Não é esta coragem que convive com a moda andrógina. Apenas ambiguidade. A ambiguidade que está na definição da androginia. Alguma covardia. Desconheço – e nem me interessa saber – a orientação sexual dos rapazinhos que se passeiam embrulhados nesta ambiguidade de sexos. Mas parece que estão na mesma categoria dos transformistas, só que não chegam aos seus calcanhares na coragem de se assumirem diferentes daquilo que nasceram. Ou então, nada disto. Apenas uma encenação – outra mais – do mundo da moda, uma imagem estética que manipula um rol de modelos masculinos que se assemelham a corpos femininos.

Há mais perplexidade: muitas mulheres embevecem-se com estes rapazinhos que desfilam nas passerelles e são retratados pelas câmaras fotográficas. Pelam-se por eles, suspiram pela beleza efeminada destes modelos. O que desnuda uma controversa opção interior, porventura um lesbianismo reprimido: pois elas ficam embeiçadas por homens (traço de heterossexualidade) que são um mostruário de feminilidade (vingando a homossexualidade feminina recalcada). Ou, afinal, bissexualidade sem o saberem. A mesma ambiguidade dos modelos andróginos marca as adolescentes e já não adolescentes que ficam enfeitiçadas por eles. Será que muitas delas chegam a perceber a sua homossexualidade reprimida?

Já foi tempo em que as mulheres gostavam de homens pelo que eles tinham de diferente, no espaço tão longínquo que separava os dois sexos. Isto não é a apologia do homem abrutalhado, sem maneiras, que se ufana de maltratar as mulheres. É apenas a estranheza por, em tão pouco tempo, viajarmos de um extremo ao outro, do homem retratado pelo hediondo perfil do marialva ao protótipo do rapazinho andrógino. Ou então sou eu que ando desalinhado do mundo.

9.1.08

E a ASAE não encerra a aldeia transmontana?


Há uma aldeia no concelho de Mirandela com uma provocante tradição: nos festejos do dia dos Reis, as crianças estão autorizadas a fumar – e pais e avós fornecem o tabaco. Houve uma criança de oito anos que em dois dias fumou vinte e três cigarros! Talvez por coincidência, só este ano é que a comunicação social descobriu a aldeia e a tradição ancestral. A fazer coincidir com a lei que proíbe o fumo do tabaco em locais públicos. Não fosse esta lei, mais um episódio do higienismo forçado que varre a santa terrinha de lés a lés, e a tradição insólita continuaria a ser um epifenómeno votado à clandestinidade. A aldeia nem aparecia no mapa.

Imagino o horror que invadiu os apóstolos da perfeição sanitária que se tem imposto via ASAE. (Sim, que há muitos que condescendem com a existência da autoridade paramilitar sanitarista: o argumento poderoso de que há por aí muita chafarica que é mostruário de imundice, inadmissível atentando à saúde pública. Espero não incomodar as consciências bem pensantes com a seguinte pergunta: e se acaso eu quiser ser frequentador assíduo de tabernas repugnantes, onde a palavra higiene não entra no vocabulário, porque se há-de impor a vontade dos apóstolos sanitários sobre a minha vontade?) Regresso ao horror estampado nos rostos dos fascistas do higienismo ao verem petizes de cigarro na boca. Como é possível? Só a tão grande ignorância dos progenitores, que inoculam prematuramente um vício tenebroso, o explica. Uma legião de juízes devia retirar a tutela paternal a estes pais inconscientes.

Eu acho que a ASAE devia meter-se ao caminho, atravessar os contrafortes do Marão e entrar na terra fria transmontana. Para colocar aquela gente na ordem. Como é possível, logo agora que deu entrada a lei que põe os fumadores em sentido, descobrir-se um longínquo reduto que teima em furar a sintonia que se impõe por força de decreto? Para contrariar a ignomínia destes aldeões, a ASAE faria o sequestro da aldeia. Invadiria a aldeia nos seus carros blindados, com um numeroso contingente de agentes armados até aos dentes, como se fossem combater os terroristas que destruíram o sonho lindo do Lisboa-Dakar. O ministro da tutela assinaria a ordem de quarentena. Os aldeões não poderiam sair de casa durante a quarentena. Seriam visitados por terapeutas que os convenceriam a abdicar da anacrónica tradição que rompe com um baluarte da modernidade de que é esteio o timoneiro do país. A quarentena só acabaria quando não houvesse vivalma a escapar à lavagem cerebral, sob pressão das baionetas da ASAE.

Tudo isto não passa de cenário fantasioso. É que uns escassos minutos após ter entrado em vigor a lei que ostraciza os fumadores, o apóstolo maior do higienismo impetuoso foi apanhado com a boca na botija, perdão, a fumar uma cigarrilha no casino do Estoril. Acho que o povo, que se acha especialmente sapiente nestes momentos marcantes, seria certeiro ao disparar um dos adágios que preenchem a sua sabedoria: “bem prega Frei Tomás”...

Não fosse o deslize do paramilitar sanitário que lidera a ASAE e o organismo que zela pela nossa saúde e ensina os costumes aceitáveis já teria feito incursão espectacular na aldeia de Mirandela. Por ora, limitam-se as vontades do fascismo higiénico a retocar a imagem beliscada do herói. Tanto que ontem tivemos o prazer de saber que há interpretações das leis feitas à medida de personagens importantes e que o director da ASAE é mesmo protagonista. Havia uma dúvida: a lei que proíbe o fumo em locais públicos sobrepõe-se à lei dos casinos? Queria-se saber se os casinos podem ser excepção à persecutória lei do tabaco. Por outras palavras, pretendia-se esclarecer de vez se o apóstolo chefe da autoridade sanitária tinha cometido um pecadilho inaceitável ao fumar dentro de um casino.

O director-geral da saúde, que no ocaso do ano passado ameaçou com a demissão caso a lei do tabaco não fosse escrupulosamente respeitada, anunciou ontem à pátria que afinal os casinos são uma excepção. No rescaldo, o director da ASAE passou incólume e nós aprendemos o contrário do que se ensina a quem aprende os rudimentos do direito: a lei geral não se impõe sobre uma lei especial. A lei pode ter sido torcida para perdoar o apóstolo da ASAE, é certo. E assim o homem há-de continuar a esfregar o seu imenso ego, julgando-se justiceiro de uma causa que nos evangeliza, nem que seja à força, contra vontades individuais que se lhe oponham. Aliás, ele já sentenciou os que teimarem em remar contra a (sua) maré, pois disse, em entrevista, que é “o rumo desta sociedade e nós, se não quisermos viver nesta sociedade, temos a hipótese de emigrar”.

Diante desta pesporrência, do desrespeito pelo livre arbítrio das pessoas, tenho uma súbita pulsão violenta (logo eu, que nunca andei à pancada com ninguém, ou sequer empunhei uma arma de fogo...): formar uma milícia que perseguisse a ASAE e só se contentasse no dia em que o seu director fosse exilado para bem longe, com bilhete de ida, apenas. E, diante desta pesporrência, uma vontade incontrolável de aplaudir uma tradição popular – logo eu, tão adversário de tradições populares anacrónicas e patéticas.

8.1.08

Afinal, não somos assim tão diferentes dos franceses


Muita tinta escorreu depois da anulação do Lisboa-Dakar. Entre a decepção dos concorrentes, sobretudo dos amadores que mais ficaram a perder (na carteira e no espírito) e comentadores desportivos e não só que subitamente descobriram a sua especialização em geopolítica, já ouvi e li muito acerca da bombástica decisão dos organizadores franceses. Lá vem o argumento usual dos Rambos de trazer por casa: foi uma vitória dos terroristas; uma lamentável cedência; uma capitulação perante as ameaças do terror sanguinário. E depois há as lucubrações fantasiosas: teorias da conspiração esplêndidas que metem ao barulho o danado governo francês que, invejoso, “forçou o cancelamento” (cito o Autosport) da prova.

Ontem, no habitual momento de meditação espiritual da semana (a leitura do Autosport, a minha bíblia semanal) o desvario atingiu o zénite. Metade do jornal desmultiplicava-se numa histeria descontrolada, no descontentamento pela anulação do Lisboa-Dakar. Começa logo na capa: “cedência a ameaça terrorista cria grave precedente” e “medo vence Dakar”. E vai por aí fora: “governo francês forçou cancelamento” – ainda que, nesse mesmo dia, em visita a Lisboa, o ministro dos negócios estrangeiros tenha garantido que não houve interferência do governo junto da organização da prova. (E se é verdade que os políticos mentem com todos os dentes, pergunto-me por que razões insondáveis haveria, nesta circunstância, perante as ameaças reveladas pelos serviços secretos, mentir um governante.)

À medida que as páginas do semanário se sucedem, mais análise toldada pelo irracional. Alexandre Correia, especialista do todo-o-terreno, assevera que foram “razões meramente políticas” que influenciaram o cancelamento do rali. É mais outro a engrossar o rol da teoria da conspiração, pois dá como certo que “a partir do momento em que o governo francês dá essa ordem [de anular a prova] as alternativas da A.S.O. são praticamente nulas (...)”. Na mesma página, sob a epígrafe “perguntas sem resposta”, há uma particularmente deliciosa – e reveladora do desacerto mental que invadiu muita gente: “se a prova se designasse Paris-Dakar – ou seja, se partisse da capital francesa – Nicolas Sarkozy tinha sido tão zeloso com a segurança dos seus cidadãos?” Ou, logo a seguir, num delírio que nem merece qualificação, interrogando se não “será uma demonstração do poder de Nicolas Sarkozy? Quiçá uma forma de se afirmar por uma acção política, quando tem sido a sua conturbada vida social a merecer a atenção da comunicação social?

(Estou mesmo a imaginar os feitores de imagem de Sarkozy, sussurrando-lhe ao ouvido: senhor presidente, as pessoas só se interessam pelo seu affaire com a cantora Carla Bruni; para desviar as atenções, e dar uma prova de força, vamos inventar ameaças terroristas sobre o Lisboa-Dakar e impor o cancelamento da prova.)

O desnorte contagiou-se até ao director do jornal. Rui Freire também dá por garantidas as ingerências políticas e reclama a cedência perante os terroristas como precedente grave. Adivinha que se abriu uma “caixa de Pandora”, ao indagar como “irão ser geridas outras situações de crise se pairarem ameaças deste jaez sobre o Mundial de Futebol, os Jogos Olímpicos, um Grande Prémio de Fórmula 1, ou uma prova do Mundial de Ralis”. Acrescento eu: como se o palco do Lisboa-Dakar fosse semelhante, perante o terreno aberto que o torna exposto a ataques terroristas, o que já não é tão provável nas outras competições desportivas exemplificadas. E depois ainda há Domingos Piedade a puxar os galões: “Eu, que todos os dias leio dezenas de publicações, em línguas diversas, garanto que nunca li nada sobre isso [as ameaças terroristas].” Descontando alguma fantasia – dezenas, no plural, implica pelo menos vinte publicações; e Domingos Piedade não faz mais nada ao longo do dia?! – sobra a seguinte interrogação: por acaso estas questões, tratadas pelos serviços secretos, não ficam reservadas ao secretismo tão típico dos serviços...secretos?

O momento mais hilariante estava reservado para uma moça que, ano após ano, recebe somas vulomosas de patrocinadores para arrastar a sua lentidão nas areias do deserto e nas savanas africanas ao volante de um camião. Elisabete Jacinto, frustrada pela decisão da organização, teve a sagacidade de concluir o seguinte: “se há problemas na Mauritânia, também os houve em Nova Iorque, em Madrid ou em Londres, mas as pessoas não deixaram de apanhar o metro ou de andar de avião.” A senhora professora de geografia, talvez por ainda estar “visivelmente irritada”, não foi capaz de discernir o seguinte: se acaso tivesse havido ameaças do que acabou por acontecer em Nova Iorque, Madrid e Londres, as autoridades não tinham evacuado o World Trade Centre, o Pentágono, as estações de metro e comboio atacadas pelos terroristas?

E se, afinal, a prova tivesse ido para a frente? E se houvesse vítimas a lamentar depois de covardes ataques terroristas? A quem se pediam responsabilidades? Podemos contemporizar com vidas humanas em risco, assim de forma tão leviana? No meio do burburinho, fica a triste imagem de um quinhão do país que é tão chauvinista como o pior dos chauvinismos que é idiossincrático em França.