“O coração do homem existe para sanar as contradições mais insanáveis”, David Hume.
Será a maquinal tendência para meter caminho pelas avenidas da complicação. Será, até, a atracção pelo abismo do conflito, mesmo sabendo que o conflito é o ingrediente do desconforto, da perturbação do espírito, das palpitações aceleradas do coração que consomem saúde. Pela vida, espalhados vestígios de confrontações acaloradas, divergências logo promovidas a protagonismo desmerecido, quando afinal não passam de pormenores. O pior é o restolho que fica por varrer.
A sentença de Hume é tentadora. O primeiro contacto com a frase trará a irresistível concordância. Diria: a imperativa concordância. Somos feitos de uma massa que convoca a abertura de espírito para ultrapassar as diferenças. No fundo, as diferenças que afinal nos unem. A tolerância é também acerca disso. Será lugar-comum confirmar que o património genético da espécie humana é a profunda diferença que distingue cada indivíduo. Pela imensidão do código genético, na expressão das infindáveis variáveis que tornam cada pessoa espécime único. Se Hume está certo na sua observação, as divergências encontram porto de abrigo na complacência que é capital de confiança de cada indivíduo. Recusar aquela que parece uma verdade insofismável é franquear as janelas ao conflito perene, dando passo, por vezes, a manifestações de estupidez servidas através de violência.
Há sempre um porém semeado no caminho a perturbar a clarividência dos diagnósticos vertidos na sua simplicidade. Descontando patologias que acamam no divã de psiquiatras, alguém no seu juízo desmente a asserção de Hume? Poderá alguém contrariar o entendimento que é de dentro de cada um que estão as forças para liquidar uma contradição que tenha entrado no umbral do insanável? Na negativa, a opção clara: o conflito que se adensa, o sono perturbado, a irascível reacção que sobe de intensidade, os olhares desconfiados que são um ensombrado cenário acossando espíritos atormentados. E tudo parece tão linear: quem ganha alguma coisa com uma via-sacra de divergências? E as contradições que julgamos insanáveis, terão atingido esse patamar?
Por vezes, há polémicas irremediáveis. Um choque de personalidades. Dar o flanco traz o travo amargo da cedência, como se o triunfo do oponente fosse um punhal cravado fatalmente na dignidade que não tem preço. Até pode o diagnóstico seja exagerado. Que não sejam insanáveis as contradições, nem venha mal ao mundo se, no rescaldo da divergência, haja anuência perante a razão do outro. O ensimesmamento tolda a visão das coisas. É quando se fazem as tempestades em copo de água. Escusadas tempestades. As ondas, inocente maresia, transfiguradas pela visão deformada das coisas. Transfiguradas em mar alteroso que se esmaga contra o peito que grita toda a sua dor. A convicção da sua alteridade, ou a entronização de si mesmo num lugar inacessível, como se houvesse um eu que vogasse acima dos outros, e a caução para a discórdia febril. Há quem acuse uma dor excruciante por um pequeno abanão na sua personalidade. Depois sucedem-se as reacções desproporcionadas. Conflitos que o não são, a não ser na sua fantasiosa visão.
Outras vezes, os lugares e as ideias navegam nos antípodas, e o choque de personalidades faz o resto. Espalha as contradições insanáveis. A certa altura, um laivo que seja de divergência, ainda que alimentado por insignificâncias, chega para libertar o arsenal de palavras que magoam, a belicista entrega dos guerreiros que se alimentam no seu antagonismo. É altura de convocar David Hume. Interiorizar as diferenças como manto natural do código genético acentuadamente diferente. Que as divergências são nutriente das pontes que se constroem, sabendo que o senão dos caudalosos rios que separam as duas margens é a dolorosa ferida que permanece aberta enquanto houver o arremesso de munições que magoam o outro.
A asserção de Hume parece arrebatadora na sua profundidade, como roteiro impreterível para uma vida apreciável, para o reencontro com a prometida plenitude da existência. E, todavia, Hume contornou uma pergunta que ficou sem resposta: quando saímos vitoriosos ao sanar as contradições que pareciam insanáveis, não ficam feridas abertas por sarar? E que o tempo venha cicatrizar essas feridas; não são as cicatrizes o mostruário das contradições de outrora, impedindo o olvido das avenidas divergentes que foram pasto para os dias atormentados?
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