Há tantas vezes cansaço da rotina. Tantas vezes promessas que a mudança será a bússola seguida. Os passos de sempre, mundanos ou não, trazem o corpo pelos mesmos sítios. Uma rotina, repetitiva como as rotinas são. As cores, sempre as mesmas. Até as paisagens por onde os dias se repetem são as mesmas, com as mesmas árvores, as mesmas nuvens, o céu indistinguível. Uma palavra que magoa com dores que não se acomodam a analgésicos: a palavra “mesmo”.
O apelo das coisas diferentes é irreprimível. Como se houvesse uma porta, dantes invisível, que se revela diante dos olhos. Para surpresa dos olhos. A curiosidade de abrir a porta, só para espreitar o que há do lado de lá. É a voracidade pela repressão das rotinas instaladas que desperta o espírito curioso. Por um momento, alguma sede de aventura. Um gérmen de mudança que verga os sedimentos da quietude instalada, do conhecimento repisado. Os olhos espreitam, a medo, o que se anuncia do lado de lá da porta. O conservadorismo latente, que se apoderou do sangue que corre nas veias, fermenta a prudência que leva os olhos a espreitarem, temerários. O corpo acanhado esconde-se do lado conhecido, ainda inerte do lado de cá da porta. Não seja o terreno desconhecido, a antítese da rotina estafada, um lugar pior para acamar as novas rotinas que hão-de vingar.
É o tirocínio da vida. Nunca um mergulho descomprometido por lugares não visitados outrora. Os passos lentos, cautelosos, como se houvesse metódica desconfiança no chão desconhecido que os pés palmilham. Faz lembrar o corpo que se aventura pela escuridão de um lugar, os olhos embotados pela ausente claridade, os dedos tacteando as paredes rugosas. O tacto que faz as vezes da visão, mapeando com lentidão o caminho pelo labirinto escuro e desconhecido, exercício de espeleologia em grutas húmidas onde as trevas são a única coisa certa, inóspitas.
O cansaço do habitual declina um espírito sequioso de suprimir os laivos de conservadorismo que são o altar onde só o conhecimento das coisas conta. Às vezes, um instante para interiorizar o tempo já gasto: de como é sintoma de desaproveitamento de um mundo inteiro ainda por conhecer. É então que apetece ir ao encontro dos lugares diferentes, das coisas na sua imensidão não revelada, sentir o ar diferente que se respira nos sítios nunca dantes visitados. Aportar num cais tranquilo, onde tudo em redor seja um convite ao que há de novo para oferecer aos sentidos. Ou apenas mudar rotinas, num singelo apelo à derrota do conservadorismo que acalenta a demissão do espírito com sede de conhecimento.
Só que, depois, a gratificação da mudança é efémera. As rotinas derrotadas depressa são lugares esvaziados, apenas lembranças dos hábitos desapossados. A transição é a adocicada expressão dos hábitos encerrados numa página já dobrada. Porém, uma transição. Fugaz; como todas as transições. Há-de uma nova habituação chegar, rotinas diferentes, mas rotinas à mesma. Uma dependência perene de rotinas. A revelação de que somos corpos dados aos passos habituais, às coisas que se desfilam todos os dias diante dos olhos, a palavras que assaltam o espírito na sua repetitiva eloquência, que depressa se desprende dela e ganha a espessura do que se repete a cada dia.
Em ciclos, a existência. A vida composta por capítulos. Que se encerram e renovam a cada passo em que o cansaço da rotina falou mais alto e a empurrou para a sua decadência. Ciclos, também eles repetitivos. Um singular destino: não há mudanças que se repitam, na voragem de combater o conservadorismo maquinal, que não sejam traço de uma rotina. Todas as mudanças desaguam sempre num lugar conhecido. É então que sobra o amargo sabor das mudanças que espalham rotinas diferentes, mas rotinas. O agridoce sabor de mudar para voltar ao mesmo, ainda que o mesmo seja efemeramente um odor de diferença.
No fim de contas, dominados por um conservadorismo irreprimível. As dores de parto afligem mais os que se condoem com o impante conservadorismo. Ingrata sensação de descobrirem que, por mais que mudem, tudo fica na mesma.
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