Por vezes, as palavras encavalitam-se numa coreografia de fascínios. Não é só com a poesia, aí mais na musicalidade das palavras que se entoam nas estrofes que compõem o poema. Há palavras que se combinam numa estranha metamorfose dos sentidos, dos sentidos que, isoladas, elas têm. Quando aprecem conjugadas, tecendo expressões idiomáticas que se revelam, pressente-se o fascínio das palavras. Essas expressões embelezam a nossa deambulação pelas palavras. Somos espectadores passivos das palavras encavalitadas que se passeiam diante dos olhos.
Por exemplo: lavagem de dinheiro. Na correcção da sintonia social pelas leis e costumes estabelecidos, esta é uma expressão que arrasta uma conotação negativa. Fala-se em lavagem de dinheiro e logo se pensa no refugo de actividades criminosas que tiveram a prodigalidade de proventos. Dinheiro sujo que carece de uma adequada lavagem. É a forma de branquear capitais que, de outro modo, haveriam de pôr a nu a origem criminosa. E poria também os seus titulares com a mala à porta da prisão.
Não me interessa aqui debater a censura social da lavagem de dinheiro. Nem tão pouco apetece libertar o aplauso aos justiceiros da nossa praça que não se cansam em denunciar crimes de colarinho branco e a fuga aos impostos das grandes fortunas, algumas delas nascidas com o opróbrio da dúvida. O que me encanta não é o fenómeno da lavagem de dinheiro; é a expressão “lavagem de dinheiro”. Se ele é sujo, há que o tornar imaculado. Como se, por sortilégio, existisse uma máquina de lavar onde o dinheiro à entrada imundo saísse com a mais pura alvura, e o seu odor pestilento se transformasse num aroma a detergente perfumado.
A expressão em língua inglesa é ainda mais fascinante: “money laundering”. “Laundering”, se for substantivo, vale para lavandaria. E assim fica demonstrado como existe uma lavandaria para fazer o branqueamento dos dinheiros duvidosos que se acumulam em certas fortunas, também elas duvidosas. Bancos, offshores e o sacrossanto sigilo bancário que é a alma mater do negócio dos bancos na Suíça são os ódios de estimação dos tais justiceiros que se insurgem contra a abastança construída à custa de crimes de colarinho branco, ou deploráveis fugas a impostos.
São necessárias caças aos talentos para iludir a vigilância das leis e delinquir com o propósito de reunir uma fartura de notas que depois exige tirocínio da lavandaria das fortunas duvidosas. São mestres no risco, sempre com o estigma da censura social a bater sob as suas cabeças, atormentando a consciência em sonos intranquilos (quando a consciência não é comprada pelas mordomias materiais do dinheiro a rodos). Outra vez, o que fascina não é a meticulosa engenharia da criminalidade que gera tantos dinheiros que trazem o rótulo da sujidade social. É a expressão “caça aos talentos”, à massa cinzenta que se conjuga para apascentar a delinquência. Há outro tipo de caça aos cérebros, lícita: as empresas farejam o mercado dos profissionais à procura do recrutamento dos génios disponíveis. Caçam-nos. Como se o mercado dos profissionais fosse uma selva onde há caçadores e caça. Com uma diferença que não é de somenos: ao serem alvejados, os cérebros tiram partido da caça. Partido material, pois como cérebros muito procurados exigem recompensas a preceito.
O que me leva à terceira expressão fascinante: fuga de cérebros. Os cientistas que se especializam no estrangeiro e nunca regressam à terra-mãe (o que é para alguns nativos uma reprovável traição da terra que os viu nascer). Ou os especialistas que se cansam da ingratidão da pátria, incapaz de reconhecer o seu mérito com justa recompensa, e emalam haveres oferecendo os préstimos intelectuais em terra estrangeira. Há quem diga que este é um sintoma da profunda crise da portugalidade contemporânea. Também aqui o que me interessa não é perorar sobre o fenómeno. Uma vez mais, o que é fascinante é a harmonia das palavras que se casam entre si numa expressão idiomática: “fuga de cérebros”.
É como se fosse possível a emigração da massa encefálica, desprendida da cavidade óssea que é seu leito. O crânio ficaria na terra-mãe. A massa cinzenta, a essência dos primores dos cientistas premiados, voaria para terras distantes, desmaterializava-se. Não acontece só aos cérebros o adeus à terra-mãe que se revela indigna, ou pelo menos ingrata, das suas capacidades. Também há muito dinheiro que foge ao cutelo dos impostos e voa para outras paragens, para a asa protectora dos offshores e bancos suíços que garantem confidencialidade e generosidade fiscal. Fuga de cérebros, fuga de capitais – emigração de uma terra que não se cansa de desperdiçar oportunidades por não saber ser grata. Ou por inépcia de quem traz o leme na mão.
Será isto alheio a incentivos para a profusão de crimes de colarinho branco, ou de crimes que proporcionam avantajados proventos, e para a lavagem de dinheiro?
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