Eu sei que, não há muito dias, prometi que não voltaria a desperdiçar um minuto que fosse com a personagem que se pavoneia como primeiro-ministro. Eu sei que de cada vez que gasto palavras com a personagem lhe dou uma importância que ele não merece. E sei que ao passar em revista as fantásticas elucubrações do meirinho desta paróquia me confesso importunado só pela sua simples existência. É uma verdade: como não tenho artes de simular a existência num mundo faz de conta, é para este que os olhos despertam todas as manhãs. Para esta terrinha paroquial, comezinha, a mediocridade tacanha a campear à solta.
O pior é que as novidades que apoquentam chegam logo pela alvorada, quando a teimosia de me querer informado esbarra nas desagradáveis notícias. O timoneiro foi entrevistado num canal televisivo. Hossanas obrigatórios. Excertos no noticiário radiofónico, uma síntese da entrevista. E se tudo isso não bastasse, a reprodução de uma anunciação solene pela voz solenemente irritante de sua excelência: podemos estar descansados que a excelência assegura o cumprimento de uma promessa que foi bandeira maior da campanha eleitoral que o trouxe para o cadeirão do poder. Garantiu: há-de chegar à criação dos 150.000 empregos.
Primeira observação: nunca consegui compreender como pode um governo – já para não dizer um primeiro-ministro – criar xis postos de trabalho. Os empregos só são criados pelo governo – e nunca por um primeiro-ministro – na administração pública. Ora sucede que este governo se ufana de ter posto em marcha a reforma da administração pública (outra fantasia para irmos no engodo): por cada funcionário que entra, saem dois antigos. A matemática não deixa mentir: na administração pública (a ser verdade aquela regra), há subtracção de empregos. Sobra o sector privado. Alguém compreende que sejam ministros, ou governos, ou messiânicos primeiros-ministros, a inventar empregos nas empresas que, sendo privadas, não lhes pertencem? De uma vez por todas: quem gera emprego nas empresas são os empresários, não os mentirosos primeiros-ministros que aparecem com uma varinha mágica com dotes de geração de emprego.
Segunda perplexidade: os ares de aprendiz de feiticeiro com que o maravilhoso meirinho aparece diante dos entrevistadores, manipulando números sem que os entrevistadores consigam esboçar uma réplica decente. O raciocínio lapidar foi este: ele “criou” (repito: as aspas porque ele não cria um único emprego) 96.000 empregos desde que caiu em sorte à paróquia tê-lo como timoneiro. Um jornalista retorquiu: “ainda faltam 54.000 para cumprir a promessa”. Como bom vendedor de banha da cobra, de permeio com uma falta de rigor matemático que lhe é conveniente, veio a réplica de sua excelência: “50.000, eu sei”. A diferença de 4.000, um detalhe que fura a matemática formidável que a personagem viria a desfiar logo de seguida. Em três anos e meio “criou” 96.000 novos postos de trabalho. Falta um ano e meio para o fim do seu mandato. Regra de três simples: em três anos conseguiu “criar” 96.000 empregos, no ano e meio que falta há-de conseguir “criar” metade daquela quantidade – sensivelmente os 54.000 que faltam para atingir a meta proposta.
É nestes momentos que me convenço que só há uma maneira de ler estes episódios da política: com humor. A rir, com gargalhadas sonoras e prolongadas. Correndo o risco de ser acusado de desrespeito de sua excelência. Que, é sabido, não tolera a falta de respeito e não admite que o questionem nas suas verdades insofismáveis. Do fim-de-semana, mais uma manifestação de como convive muito mal com manifestações públicas que beliscam a sua aura intocável. Um grupo de professores acampou às portas da sede do PS, onde sua excelência iria gastar tempo precioso numa reunião com professores socialistas, tentando apaziguar a contestação contra a avaliação dos professores. Perturbado com as vaias dos manifestantes, espumou a raiva à frente das câmaras que o filmavam. Indignado: na sua iluminada maneira de ver as coisas, não deviam ser permitidas manifestações à porta das sedes dos partidos quando elas são convocadas por gente alheia ao partido em causa. Porque condicionam. Faltaria perguntar-lhe: e veda-se o direito à manifestação? Não lhe soa a tempos sombrios que ficaram para trás? E as manifestações não são feitas para, à sua maneira, condicionarem? Fica no arquivo da já longa série de exibições de intolerância do primeiro-ministro.
Regresso à fantasia matemática dos empregos “criados” por sua excelência. É impressionante como desdobra um raciocínio tão simplista. Como quem diz: se conseguiu “criar” quase 100.000 empregos em três anos de mandato, manda a regra de três simples da matemática que no tempo que falta (metade dos três anos) haja a necessária “criação” de metade daqueles empregos. Uma regra mecânica, que a matemática não deixa mentir. E uma tirada digna de aprendiz de feiticeiro. Se a condição de feiticeiro não é abonatória, o que dizer da de aprendiz?
O registo humorístico ficou guardado para o final da notícia: o grande timoneiro inventou um tabu em torno da sua excelsa pessoa. Ainda não decidiu se vai para novo mandato à frente do governo. Primeiro: alguém, no seu juízo, acredita que isso seja verdade? Como pode personagem tão providencial para um país, que decide do alto das suas prescientes capacidades os momentos emoldurados na história, deixar de ser primeiro-ministro? Segundo: um elevado narcisismo desnudado, definitivamente. Percebe-se a táctica do tabu: ficar à espera de uma “vaga de fundo”, vinda do Portugal profundo, que se ajoelhe diante da personagem e clame pela sua continuidade ao leme da nau. Por mim, bem podia emalar os pertences e assentar arraiais numa qualquer sinecura internacional onde o seu enorme ego ficaria ainda maior. A bem da minha sanidade mental.
Como está na moda a avaliação dos professores, e como professor que vai passar à margem dessa avaliação, aproveito para avaliar a infausta personagem que, adivinho, vou aturar como primeiro-ministro por sei lá quantos anos mais: mau, muito mau. Mau de mais para ser verdade.
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